O
improviso de viver é um a
obra transversal à vida, tão abrangente quanto inteira na sua profunda incursão
pela poesia e por todas as coisas que a convocam. É uma deriva de ideias
onde se misturam as memórias com o pensamento desafiante de uma escrita que
pretende a simplicidade.
Cada poema segue o seu próprio rumo tanto naquilo que
recorda, revisitando lugares e emoções, como nas palavras que dedica, trazendo
para o presente anseios pressentidos ou imaginados, como ainda na tentativa de
não ser uma voz passiva sobre o que acontece no mundo, sobre o que nos aflige e
o que nos emociona.
Virgínia do Carmo
Sinopse do livro, Janeiro 2023
Da poesia mais limpa
Estar aqui, ao lado de
uma poeta que admiro desde o primeiro verso – desde o primeiro verso seu que eu
li, entenda-se – é de um encantamento incrível, e, ao mesmo tempo, de uma
responsabilidade aterradora. Tenho um medo enorme de não interpretar bem as
suas palavras, e esta é uma angústia que nunca me abandonará. Mas
tranquiliza-me um pouco o próprio teor dúbio do conceito de “interpretação”:
“sentido em que se toma o que se ouve ou o que se lê, e que se julga ser o
verdadeiro; comentário; versão. Interpretar pode ser, até, entendido como
traduzir. Então, peço-vos que entendam o que vou dizer como a tradução do que a
Graça escreveu na sua depurada linguagem poética para a linguagem talvez mais
pobre, mas honesta, do meu próprio sentir.
Poderá ser diferente
este eco das suas palavras em mim e nos outros, em vós, que também lereis este
livro maravilhoso, mas a poesia tem este dom de se moldar à nossa alma, de se
“afazer” (uma palavra que nós usamos muito em Trás-os-Montes e que eu gosto
tanto), à forma do nosso coração. E como o meu coração gosta da forma dos seus
versos e de como se afazem ao meu peito.
Este livro que hoje nos
junta para minha alegria (tão bom abraçar a Graça depois de tanto tempo!) é
mais um dos que se me acomodou no íntimo.
Começa assim:
Um súbito enredo
trespassa o olhar
em descritivas formas.
A nitidez do silêncio
persegue os lábios.
Decifra as palavras
inefáveis.
Ardor em sangramento na
língua.
Mistura de linfa e de
terra no branco baço
dos crisântemos.
A tracejar de nostalgia
a memória desfocada
dos lugares no litoral
da infância.
E assim partimos para a
aventura de folhear ou devo dizer, “habitar” este livro pelo tempo que nos
demorarmos na sua leitura. É autora que nos convida naquele que, a bem de
verdade, é o verdadeiro início:
Vem
levar-te-ei para
habitares comigo
o improviso de viver
(p.7)
É claro que este
“convite” é maior do que o próprio livro, extravasa o seu conteúdo. Não sabemos
se é um convite para a leitura, se para a vida. Talvez para ambos.
Mas assim é toda a
poesia deste livro: uma incursão pela vida, pela sua intensidade, pelos seus
meandros e enredos, pelas memórias, pelas coisas do mundo, também, pelo que
dói, às vezes, no mundo.
Visitamos a infância,
não a da Graça, mas a minha, a vossa, recordamos não o que foi, mas o que para
sempre é em nós, sentimos a sede, saboreamos o pão, por momentos temos asas, e
é verão tantas vezes nestes versos.
Diz a poeta:
No rigoroso itinerário
da lembrança
a sombra de um lobo
espera
instintivamente em teu
olhar
que a montanha se erga
intacta e branca.
A mesma que trouxeste da
infância
e perpetua dentro de ti
a neve imaculada.
Contudo foi com um
sorriso
deslumbrado e breve
que começaste a amar
a imperfeição da luz
perto do mar
enquanto o verão
entornava julho no teu
nome.
(A imperfeição da luz,
p.30)
E reparem como é
sublime, esta poesia, que nos transporta para um plano tão etéreo que as coisas
se tornam pequenas e a alma imensa. Talvez como numa experiência de levitação
em que, leves, sobrevoamos o nosso ser, as nossas dores, as nossas mágoas, a
nossas alegrias e tudo o que sentimos elevado a um estado de pureza tal que se
transforma em claridade. E emocionados nesta transparência, vemos melhor.
Sendo pessoal tantas
vezes (estou certa de que muitas vezes será), a sua poesia não cabe em si, na
pessoa que é, ela torna-se nossa, de cada um de nós, de tão elevada a uma
dimensão que transcende a voz para se tornar eco audível apenas por dentro.
E acontece também que às
vezes os seus poemas, não sendo pessoais, porque sobre o mundo, sobre os seus
gritos e as suas feridas abertas, se tornam também nossos, elevados da mesma
forma a esse estado de pureza poética. E damos por nós a tornar nossas as suas
perguntas:
Qual o som do mar me
questiono
qual o som do mar tão
saturado de mortos?
Que sinos soarão por
eles?
Quem fará a oração o
sinal da cruz o requiem?
(excerto do poema
“Múltiplas mortes”, p. 57)
E há outras perguntas:
Olhem para nós.
Ouçam-nos.
Não somos vultos sem
identidade.
Somos mulheres.
Somos mães filhas irmãs
amigas.
Temos um nome.
Indefesas frente ao
terror
é silencioso o lamento o
arrepio.
Qualquer gesto nos pode
destruir.
Ficámos sem chão.
Avistamos a montanha
mas um deserto invisível
acorrenta-nos os pés.
O céu é um abismo.
Onde estão as estrelas
os anjos o nosso deus?
Não. Não choramos.
Temos o olhar parado nos
livros proibidos
na inutilidade dos dias
que hão-de vir
nas palavras reprimidas
na mais indecifrável
prece
tão perto da descrença.
Quem poderá salvar-nos?
(Lamento das mulheres
afegãs, p 63)
Este cuidado em cumprir
uma espécie de missão poética que também consiste em dar voz aos que sofrem as
atrocidades de um mundo assimétrico, marca também esta obra, que, como dizemos
na sinopse que fizemos juntas, é uma obra “transversal à vida, tão abrangente
quanto inteira na sua profunda incursão pela poesia e por todas as coisas que a
convocam. É uma deriva de ideias onde se misturam as memórias com o pensamento
desafiante de uma escrita que pretende a simplicidade.”
Desde sempre me recordo
de ouvir a Graça falar de simplicidade. Essa simplicidade tão difícil porque
exige tamanho trabalho de depuração, de talha da palavra, o burilar do verso
até à exaustão para que nada sobre para além dessa vibração de luz a desbravar
o silêncio, às vezes escuro.
Um trabalho que
solidifica cada verso para nos emocionar de forma inigualável.
E sublinhar, ainda, o
quão abrangente é esta obra onde até os outros cabem, os seus amigos, as
pessoas dos seus afectos, e onde tenho a felicidade de me encontrar, também.
Que privilégio indizível. A minha eterna gratidão, querida, Graça.
Termino como termina o
livro, com o texto que remata este desfilar de poemas limpos, poemas sem ruídos
e sem impurezas, como se tivessem sido coados pelo linho mais fino:
Pressentir a morte na
desmesura de uma afronta
na opressão interminável
de cada rua queimada
de cada disparo de cada
cerco de cada agressão.
A revolta presa na arma
do terror.
A coragem engatilhada
nas mãos.
O susto das sirenes no
rosto dos filhos
e na correria angustiada
das mães.
O clamor sufocado nas
lágrimas
e no sangue a quem dói
violentamente
o exílio do chão onde
nasceram.
A exaustão a golpear o
corpo.
A força do silêncio a
ensurdecer o grito.
Sem tréguas sem resgate
sem sujeição
hão-de abraçar-se
fortemente entre as ruínas.
(Entre ruínas, p. 64)
Virgínia do Carmo, escritora
Na apresentação do livro, Lisboa, 18 de março
de 2023
«O improviso de viver»
Graça Pires
Desde o primeiro momento, em que tive a honra de dizer um poema deste recente livro de uma poetisa que muito estimo e admiro, que a ansiedade de o ler totalmente aumentou num teor bem apelativo.
“Que nunca a vida me pareça um lugar indiferente”
José Tolentino Mendonça
Temático e amoroso Graça Pires traça em cada poema “Sentires” provocadores de reflexões pertinentes, no decorrer de cada página. E, se no título a simbologia do “improviso de viver” agarra o leitor, no imediato caminhamos por entre calendários onde acordamos e esculpimos
certezas em simultâneo com interrogações, e a poesia segreda:
- “Detenho no alcance das mãos
a precisão abstracta de cada recomeço.”
Nesta caminhada muito criativa, vemos uma autora ansiosa de traçar paralelos do seu acto de criar, além de eterna sonhadora no sorriso de cada abertura dita, e escultora de certezas puras e tão naturais:
- “E canto baixinho, com o som amarrado
na garganta onde as palavras
quase morrem sob a língua.”
Num olhar atento, cada leitura marca-nos vontades e sonhos … incluindo desafios de pensamentos paralelos onde dimensionamos belezas, e curiosamente improvisamos o calendário de viver sem colapsos temporais.
Permitam-me … num improviso de viver os mundos da escrita, num dizer presente opinando em temáticas futuras, a presente e excelente boa continuidade de Graça Pires, merece o meu aplauso e desejo de viver e continuar a ler-te estimada amiga, que muito admiro.
José Luís Outono, poeta
Recebi no final da tarde de ontem
seu livro, e fiz a leitura de imediato, não conseguindo desviar os olhos do
livro até a última página.
Continua sendo a minha escritora
favorita, e essa obra contém os elementos da sua poesia que sempre me
fascinaram, mas com um acréscimo que se faz notar a cada página, além da
sonoridade e de um senso de ritmo peculiares: é um livro pontuado por uma
elegância notável. O passar dos anos tem dado a você uma inspiração fecunda e
crescente.
Há inúmeros versos que surpreendem e
encantam, como "hoje serei a corrente e a foz", "folhas secas
coladas no desvão do telhado por um vento impaciente", "instantes que
perturbam a incerta imensidade do tempo", "escolhemos o silêncio para
nomear as flores", "perturbação de estrelas no meu olhar",
"O choro e o riso na mesma moldura", "sei que cada nome pode ser
uma emboscada", dentre tantos outros.
Difícil, praticamente impossível
dizer qual poema mais me agradou: "Todos falavam disso",
"Música" - cujo desfecho é magnífico, "Deixem-me só",
"Palco", "Oferenda", "Dos desejos",
"Noite", "A imperfeição da luz", "Rumo ao
sul"...É melhor parar por aqui ou copiar o índice do livro. [...]
Querida Graça
[...] Estou
quase a terminar o seu livro. Tenho-o lido vagarosamente, por vezes leio o
mesmo poema três vezes seguidas. É uma belíssima obra poética, de profundo
labor na linguagem e com imagens fortíssimas que pedem tempo para as
contemplarmos. Fazendo uma retrospectiva, a voz poética das suas obras tem
passado por uma metamorfose iniciática, de regresso à terra, ao coração bravio
da floresta e à força indomável dos rios, uma voz cada vez mais sibilina, que
sabe, vê e escuta, e que está além do tempo cronológico. É uma voz sem senhor,
livre e selvagem. Lê-la é um maravilhamento a cada página. Obrigado por isso!
A beleza efêmera da existência
O improviso de viver, Graça Pires: Poética Edições, 2023.
Os poemas desse livro transmitem uma variedade de sensações, como
celebração, prazer, nostalgia, busca, avassalamento, paixão, intimidade e
perplexidade. Eles despertam para a efemeridade da existência e a conexão com
elementos naturais, como a luz, a terra e as palavras.
Neste primeiro poema, e acho que é um dos mais importantes, há o
despertar de um novo dia, sem medo da transitoriedade da vida, abraçando a
singularidade do momento presente. Sugere uma disposição para abraçar as novas
oportunidades que a vida oferece. Essa sensação é comparada à “força de águas
imensas na confluência de rios”, uma energia poderosa e dinâmica.
O poema encerra com a ideia de que qualquer barco que a encontre ao
longo do dia irá devolvê-la à infância. Isso pode ser interpretado como uma
metáfora da inocência, a alegria e a liberdade que se experimenta ao abraçar
plenamente o presente, sem preocupações com o passado ou o futuro.
Encontramos muito sobre infância, rio e água na poesia da poeta Graça
Pires. O poeta e professor Alexandre Bonafim Felizardo, da UFG, escreveu uma
dissertação sobre a obra dela: “A metáfora da água na poesia de Graça Pires:
memória, infância e solidão”.
Sensações
de um dia claro
Amanheceu.
A janela do quarto inclina-se
sobre o milagre da paisagem.
Acordei festiva
sem recear
a singularidade
efémera da existência.
Detenho no alcance das mãos
a precisão abstrata de cada recomeço.
Semelhante à força de águas imensas
na confluência de rios
hoje serei a corrente e a foz.
Qualquer barco me devolverá a infância.
O segundo poema retrata um reencontro com a natureza através da última
laranjeira plantada no caminho do vento, evocando a sensação de prazer e a
brevidade da adolescência.
Reencontro
Pertence-te a última laranjeira
plantada no caminho do vento
no lado mais próximo do rio.
O aroma espalhado é um sopro
intenso no ar que respiras.
Passeias com prazer.
Cada passo é um convite
a urgentes demandas.
Em qualquer percurso existem
paragens ao acaso onde te reencontras
tão breve que foi a adolescência.
No terceiro poema, busca encontrar a nascente que suavize a sede da sua
voz arável, no entanto, a busca é inútil. Toda busca é sempre no âmago da
infância.
Inutilmente
Ignoro se alguma nascente
mitigou a sede em minha voz arável
no barro quente da infância
onde todas as falas eram possíveis.
Há um espaço vazio
nos pormenores desse passado
rasgado na clareira da memória
onde uma luz impiedosa
emerge de si mesma sem aviso.
Agora por mero acaso o procuro.
Inutilmente.
O quarto poema revela a conexão intensa com a terra, em que o cheiro e a
presença do barro trazem uma sensação avassaladora.
O cheiro da terra
Na orla da luz uma linha contínua
de sombras em labirinto
prende meus pés ao barro do tempo.
O cheiro da terra alastra pela casa.
Mistura o pão com o sangue.
Deixa um rastro na parede e nos lençóis.
Avassala-me.
Como se eu pudesse nascer
incessantemente
no clarão dúctil da morte.
O quinto poema explora a imperfeição da luz e a paixão despertada por
ela. A luz trazida da infância, claro.
A
imperfeição da luz
No rigoroso itinerário da lembrança
a sombra de um lobo espera
instintivamente em teu olhar
que a montanha se erga intacta e branca.
A mesma que trouxeste da infância
e perpetua dentro de ti a neve imaculada.
Contudo foi um sorriso
deslumbrado e leve
que começaste a amar
a imperfeição da luz perto do mar
enquanto o verão
entornava julho no teu nome.
O sexto poema retrata a natureza poderosa e envolvente das palavras,
capazes de despertar o espanto, revelando a força impactante da linguagem
poética. As palavras têm um poder cativante, pois são capazes de envolver e
marcar profundamente aqueles que as encontram.
Tão
íntimas as palavras
Tremendamente obsessivas as palavras.
Permanecem íntimas em sua voz
porque ela lhes ampara a luz.
Porque acende nas sombras
os sinais da melancolia
dos poetas que celebra com amor
em repetido espanto.
Nenhum enigma altera em seu olhar
os poemas que a convocam
para que lhes fulgure
o rosto e o nome o silêncio e o grito.
Tão íntimas.
Tão tremendamente obsessivas.
As palavras.
Por fim, o último poema menciona o “infinito perene do instante”,
indicando que mesmo um único momento pode conter uma imensidão de experiências.
No entanto, esse instante se dissolve “no colapso do tempo”, gerando uma
sensação de perplexidade, pois a transitoriedade é parte da existência.
Perplexidade
Nenhuma simbologia pode explicar
o halo da chama antes da cinza.
A luz queimada na estranheza
de tudo o que perece.
O infinito perene do instante
que se dissolve no colapso do tempo
e no mais evidente alvoroço da vida.
Texto
de Solange Firmino - Rio de Janeiro (RJ). É Professora de Português e
Literatura. Venceu dois grandes prêmios de literatura, sendo o último em 2021,
com o 2º lugar no Prêmio da Biblioteca Pública do Paraná, na categoria
Literatura Infantil. Possui 7 livros de poesia publicados.