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quarta-feira, 22 de março de 2023

O IMPROVISO DE VIVER



 O improviso de viver. Lisboa: Poética, 2023


O improviso de viver é um a obra transversal à vida, tão abrangente quanto inteira na sua profunda incursão pela poesia e por todas as coisas que a convocam.  É uma deriva de ideias onde se misturam as memórias com o pensamento desafiante de uma escrita que pretende a simplicidade.

Cada poema segue o seu próprio rumo tanto naquilo que recorda, revisitando lugares e emoções, como nas palavras que dedica, trazendo para o presente anseios pressentidos ou imaginados, como ainda na tentativa de não ser uma voz passiva sobre o que acontece no mundo, sobre o que nos aflige e o que nos emociona.

 

Virgínia do Carmo

Sinopse do livro, Janeiro 2023




O improviso de viver, de Graça Pires

Da poesia mais limpa

Estar aqui, ao lado de uma poeta que admiro desde o primeiro verso – desde o primeiro verso seu que eu li, entenda-se – é de um encantamento incrível, e, ao mesmo tempo, de uma responsabilidade aterradora. Tenho um medo enorme de não interpretar bem as suas palavras, e esta é uma angústia que nunca me abandonará. Mas tranquiliza-me um pouco o próprio teor dúbio do conceito de “interpretação”: “sentido em que se toma o que se ouve ou o que se lê, e que se julga ser o verdadeiro; comentário; versão. Interpretar pode ser, até, entendido como traduzir. Então, peço-vos que entendam o que vou dizer como a tradução do que a Graça escreveu na sua depurada linguagem poética para a linguagem talvez mais pobre, mas honesta, do meu próprio sentir.

Poderá ser diferente este eco das suas palavras em mim e nos outros, em vós, que também lereis este livro maravilhoso, mas a poesia tem este dom de se moldar à nossa alma, de se “afazer” (uma palavra que nós usamos muito em Trás-os-Montes e que eu gosto tanto), à forma do nosso coração. E como o meu coração gosta da forma dos seus versos e de como se afazem ao meu peito.

Este livro que hoje nos junta para minha alegria (tão bom abraçar a Graça depois de tanto tempo!) é mais um dos que se me acomodou no íntimo.

Começa assim:

Um súbito enredo trespassa o olhar

em descritivas formas.

A nitidez do silêncio persegue os lábios.

Decifra as palavras inefáveis.

Ardor em sangramento na língua.

Mistura de linfa e de terra no branco baço

dos crisântemos.

A tracejar de nostalgia a memória desfocada

dos lugares no litoral da infância.

E assim partimos para a aventura de folhear ou devo dizer, “habitar” este livro pelo tempo que nos demorarmos na sua leitura. É autora que nos convida naquele que, a bem de verdade, é o verdadeiro início:

Vem

levar-te-ei para habitares comigo

o improviso de viver

(p.7)

É claro que este “convite” é maior do que o próprio livro, extravasa o seu conteúdo. Não sabemos se é um convite para a leitura, se para a vida. Talvez para ambos.

Mas assim é toda a poesia deste livro: uma incursão pela vida, pela sua intensidade, pelos seus meandros e enredos, pelas memórias, pelas coisas do mundo, também, pelo que dói, às vezes, no mundo.

Visitamos a infância, não a da Graça, mas a minha, a vossa, recordamos não o que foi, mas o que para sempre é em nós, sentimos a sede, saboreamos o pão, por momentos temos asas, e é verão tantas vezes nestes versos.

Diz a poeta:

No rigoroso itinerário da lembrança

a sombra de um lobo espera

instintivamente em teu olhar

que a montanha se erga intacta e branca.

A mesma que trouxeste da infância

e perpetua dentro de ti a neve imaculada.

Contudo foi com um sorriso

deslumbrado e breve

que começaste a amar

a imperfeição da luz perto do mar

enquanto o verão

entornava julho no teu nome.

(A imperfeição da luz, p.30)

E reparem como é sublime, esta poesia, que nos transporta para um plano tão etéreo que as coisas se tornam pequenas e a alma imensa. Talvez como numa experiência de levitação em que, leves, sobrevoamos o nosso ser, as nossas dores, as nossas mágoas, a nossas alegrias e tudo o que sentimos elevado a um estado de pureza tal que se transforma em claridade. E emocionados nesta transparência, vemos melhor.

Sendo pessoal tantas vezes (estou certa de que muitas vezes será), a sua poesia não cabe em si, na pessoa que é, ela torna-se nossa, de cada um de nós, de tão elevada a uma dimensão que transcende a voz para se tornar eco audível apenas por dentro.

E acontece também que às vezes os seus poemas, não sendo pessoais, porque sobre o mundo, sobre os seus gritos e as suas feridas abertas, se tornam também nossos, elevados da mesma forma a esse estado de pureza poética. E damos por nós a tornar nossas as suas perguntas:

Qual o som do mar me questiono

qual o som do mar tão saturado de mortos?

Que sinos soarão por eles?

Quem fará a oração o sinal da cruz o requiem?

(excerto do poema “Múltiplas mortes”, p. 57)

E há outras perguntas:

Olhem para nós. Ouçam-nos.

Não somos vultos sem identidade.

Somos mulheres.

Somos mães filhas irmãs amigas.

Temos um nome.

Indefesas frente ao terror

é silencioso o lamento o arrepio.

Qualquer gesto nos pode destruir.

Ficámos sem chão.

Avistamos a montanha

mas um deserto invisível

acorrenta-nos os pés.

O céu é um abismo.

Onde estão as estrelas

os anjos o nosso deus?

Não. Não choramos.

Temos o olhar parado nos livros proibidos

na inutilidade dos dias que hão-de vir

nas palavras reprimidas

na mais indecifrável prece

tão perto da descrença.

Quem poderá salvar-nos?

(Lamento das mulheres afegãs, p 63)

Este cuidado em cumprir uma espécie de missão poética que também consiste em dar voz aos que sofrem as atrocidades de um mundo assimétrico, marca também esta obra, que, como dizemos na sinopse que fizemos juntas, é uma obra “transversal à vida, tão abrangente quanto inteira na sua profunda incursão pela poesia e por todas as coisas que a convocam. É uma deriva de ideias onde se misturam as memórias com o pensamento desafiante de uma escrita que pretende a simplicidade.”

Desde sempre me recordo de ouvir a Graça falar de simplicidade. Essa simplicidade tão difícil porque exige tamanho trabalho de depuração, de talha da palavra, o burilar do verso até à exaustão para que nada sobre para além dessa vibração de luz a desbravar o silêncio, às vezes escuro.

Um trabalho que solidifica cada verso para nos emocionar de forma inigualável.

E sublinhar, ainda, o quão abrangente é esta obra onde até os outros cabem, os seus amigos, as pessoas dos seus afectos, e onde tenho a felicidade de me encontrar, também. Que privilégio indizível. A minha eterna gratidão, querida, Graça.

Termino como termina o livro, com o texto que remata este desfilar de poemas limpos, poemas sem ruídos e sem impurezas, como se tivessem sido coados pelo linho mais fino:

Pressentir a morte na desmesura de uma afronta

na opressão interminável de cada rua queimada

de cada disparo de cada cerco de cada agressão.

A revolta presa na arma do terror.

A coragem engatilhada nas mãos.

O susto das sirenes no rosto dos filhos

e na correria angustiada das mães.

O clamor sufocado nas lágrimas

e no sangue a quem dói violentamente

o exílio do chão onde nasceram.

A exaustão a golpear o corpo.

A força do silêncio a ensurdecer o grito.

Sem tréguas sem resgate sem sujeição

hão-de abraçar-se fortemente entre as ruínas.

(Entre ruínas, p. 64)

Virgínia do Carmo, escritora

 Na apresentação do livro, Lisboa, 18 de março de 2023






«O improviso de viver»
Graça Pires

Desde o primeiro momento, em que tive a honra de dizer um poema deste recente livro de uma poetisa que muito estimo e admiro, que a ansiedade de o ler totalmente aumentou num teor bem apelativo.

“Que nunca a vida me pareça um lugar indiferente”
José Tolentino Mendonça

Temático e amoroso Graça Pires traça em cada poema “Sentires” provocadores de reflexões pertinentes, no decorrer de cada página. E, se no título a simbologia do “improviso de viver” agarra o leitor, no imediato caminhamos por entre calendários onde acordamos e esculpimos
certezas em simultâneo com interrogações, e a poesia segreda:

- “Detenho no alcance das mãos
a precisão abstracta de cada recomeço.”

Nesta caminhada muito criativa, vemos uma autora ansiosa de traçar paralelos do seu acto de criar, além de eterna sonhadora no sorriso de cada abertura dita, e escultora de certezas puras e tão naturais:

- “E canto baixinho, com o som amarrado
na garganta onde as palavras
quase morrem sob a língua.”

Num olhar atento, cada leitura marca-nos vontades e sonhos … incluindo desafios de pensamentos paralelos onde dimensionamos belezas, e curiosamente improvisamos o calendário de viver sem colapsos temporais.
Permitam-me … num improviso de viver os mundos da escrita, num dizer presente opinando em temáticas futuras, a presente e excelente boa continuidade de Graça Pires, merece o meu aplauso e desejo de viver e continuar a ler-te estimada amiga, que muito admiro.

José Luís Outono, poeta

Comentário no blogue "Ortografia do olhar" 22 Mar 2023




Recebi no final da tarde de ontem seu livro, e fiz a leitura de imediato, não conseguindo desviar os olhos do livro até a última página.

Continua sendo a minha escritora favorita, e essa obra contém os elementos da sua poesia que sempre me fascinaram, mas com um acréscimo que se faz notar a cada página, além da sonoridade e de um senso de ritmo peculiares: é um livro pontuado por uma elegância notável. O passar dos anos tem dado a você uma inspiração fecunda e crescente.

Há inúmeros versos que surpreendem e encantam, como "hoje serei a corrente e a foz", "folhas secas coladas no desvão do telhado por um vento impaciente", "instantes que perturbam a incerta imensidade do tempo", "escolhemos o silêncio para nomear as flores", "perturbação de estrelas no meu olhar", "O choro e o riso na mesma moldura", "sei que cada nome pode ser uma emboscada", dentre tantos outros.

Difícil, praticamente impossível dizer qual poema mais me agradou: "Todos falavam disso", "Música" - cujo desfecho é magnífico, "Deixem-me só", "Palco", "Oferenda", "Dos desejos", "Noite", "A imperfeição da luz", "Rumo ao sul"...É melhor parar por aqui ou copiar o índice do livro. [...]

José d'Ângelo
e-mail 5 Abril 2023





Graça Pires
O improviso de viver


Depois de entre 2014 e 2021 ter publicado «Espaço livre com barcos», «Uma claridade que cega», «Fui quase todas as mulheres de Modigliani», «A solidão é como o vento» e «Antígona passou por aqui», Graça Pires (n.1946) surge com «O improviso de viver» (Poética Edições). Este livro de 64 páginas parte do «eu» («Qualquer barco me devolverá a infância») para alcançar o «nós»: («Não. não choramos./ Temos o olhar parado nos livros proibidos/ na inutilidade dos dias que hão-de vir/ nas palavras reprimidas/ na mais indecifrável prece/ tão perto da descrença./ Quem poderá salvar-nos?». Ou dito de outra maneira: parte de («Era a quinta dos avós./ Nós éramos crianças/ e subíamos às figueiras.») para chegar a «Mas que amor é este tão disponível/ tão inquieto tão discreto tão possessivo/ que resiste aos sobressaltos do sangue./ Um amor para sempre. Até ao fim da vida./ Para lá da vida. Que amor é este.». A organização do volume regista três poemas impressos a negrito (ou bold) de modo a ritmarem o conjunto em três sequências (páginas 8, 28 e 47) como se, num certo sentido, fossem «capítulos» desta narrativa em forma de poema. Passados 33 anos do livro de estreia que recebeu o prémio Revelação da A.P.E. este «O improviso de viver» vem confirmar a altura e e o timbre de uma voz poética em processo de plena consolidação.

José do Carmo Francisco, poeta e jornalista
Correio do Ribatejo, 5 de Maio de 2023




Querida Graça

[...] Estou quase a terminar o seu livro. Tenho-o lido vagarosamente, por vezes leio o mesmo poema três vezes seguidas. É uma belíssima obra poética, de profundo labor na linguagem e com imagens fortíssimas que pedem tempo para as contemplarmos. Fazendo uma retrospectiva, a voz poética das suas obras tem passado por uma metamorfose iniciática, de regresso à terra, ao coração bravio da floresta e à força indomável dos rios, uma voz cada vez mais sibilina, que sabe, vê e escuta, e que está além do tempo cronológico. É uma voz sem senhor, livre e selvagem. Lê-la é um maravilhamento a cada página. Obrigado por isso!

Samuel Pimenta, escritor
E-mail 18 maio 2023



A beleza efêmera da existência

 

O improviso de viver, Graça Pires: Poética Edições, 2023.

 

Os poemas desse livro transmitem uma variedade de sensações, como celebração, prazer, nostalgia, busca, avassalamento, paixão, intimidade e perplexidade. Eles despertam para a efemeridade da existência e a conexão com elementos naturais, como a luz, a terra e as palavras.

Neste primeiro poema, e acho que é um dos mais importantes, há o despertar de um novo dia, sem medo da transitoriedade da vida, abraçando a singularidade do momento presente. Sugere uma disposição para abraçar as novas oportunidades que a vida oferece. Essa sensação é comparada à “força de águas imensas na confluência de rios”, uma energia poderosa e dinâmica.

O poema encerra com a ideia de que qualquer barco que a encontre ao longo do dia irá devolvê-la à infância. Isso pode ser interpretado como uma metáfora da inocência, a alegria e a liberdade que se experimenta ao abraçar plenamente o presente, sem preocupações com o passado ou o futuro.

Encontramos muito sobre infância, rio e água na poesia da poeta Graça Pires. O poeta e professor Alexandre Bonafim Felizardo, da UFG, escreveu uma dissertação sobre a obra dela: “A metáfora da água na poesia de Graça Pires: memória, infância e solidão”.

 

Sensações de um dia claro

Amanheceu.
A janela do quarto inclina-se
sobre o milagre da paisagem.
Acordei festiva
sem recear
a singularidade
efémera da existência.

Detenho no alcance das mãos
a precisão abstrata de cada recomeço.

Semelhante à força de águas imensas
na confluência de rios
hoje serei a corrente e a foz.
Qualquer barco me devolverá a infância.

 

O segundo poema retrata um reencontro com a natureza através da última laranjeira plantada no caminho do vento, evocando a sensação de prazer e a brevidade da adolescência.


Reencontro

Pertence-te a última laranjeira
plantada no caminho do vento
no lado mais próximo do rio.

O aroma espalhado é um sopro
intenso no ar que respiras.

Passeias com prazer.
Cada passo é um convite
a urgentes demandas.

Em qualquer percurso existem
paragens ao acaso onde te reencontras
tão breve que foi a adolescência.

 

No terceiro poema, busca encontrar a nascente que suavize a sede da sua voz arável, no entanto, a busca é inútil. Toda busca é sempre no âmago da infância.

 

Inutilmente

Ignoro se alguma nascente
mitigou a sede em minha voz arável
no barro quente da infância
onde todas as falas eram possíveis.

Há um espaço vazio
nos pormenores desse passado
rasgado na clareira da memória
onde uma luz impiedosa
emerge de si mesma sem aviso.

Agora por mero acaso o procuro.
Inutilmente.


O quarto poema revela a conexão intensa com a terra, em que o cheiro e a presença do barro trazem uma sensação avassaladora.

 

O cheiro da terra

Na orla da luz uma linha contínua
de sombras em labirinto
prende meus pés ao barro do tempo.

O cheiro da terra alastra pela casa.
Mistura o pão com o sangue.
Deixa um rastro na parede e nos lençóis.
Avassala-me.

Como se eu pudesse nascer
incessantemente
no clarão dúctil da morte.

O quinto poema explora a imperfeição da luz e a paixão despertada por ela. A luz trazida da infância, claro.

 

A imperfeição da luz

No rigoroso itinerário da lembrança
a sombra de um lobo espera
instintivamente em teu olhar
que a montanha se erga intacta e branca.
A mesma que trouxeste da infância
e perpetua dentro de ti a neve imaculada.

Contudo foi um sorriso
deslumbrado e leve
que começaste a amar
a imperfeição da luz perto do mar
enquanto o verão
entornava julho no teu nome.

 

O sexto poema retrata a natureza poderosa e envolvente das palavras, capazes de despertar o espanto, revelando a força impactante da linguagem poética. As palavras têm um poder cativante, pois são capazes de envolver e marcar profundamente aqueles que as encontram.

 

Tão íntimas as palavras

Tremendamente obsessivas as palavras.
Permanecem íntimas em sua voz
porque ela lhes ampara a luz.
Porque acende nas sombras
os sinais da melancolia
dos poetas que celebra com amor
em repetido espanto.

Nenhum enigma altera em seu olhar
os poemas que a convocam
para que lhes fulgure
o rosto e o nome o silêncio e o grito.

Tão íntimas.
Tão tremendamente obsessivas.
As palavras.

Por fim, o último poema menciona o “infinito perene do instante”, indicando que mesmo um único momento pode conter uma imensidão de experiências. No entanto, esse instante se dissolve “no colapso do tempo”, gerando uma sensação de perplexidade, pois a transitoriedade é parte da existência.

 

Perplexidade

Nenhuma simbologia pode explicar
o halo da chama antes da cinza.

A luz queimada na estranheza
de tudo o que perece.

O infinito perene do instante
que se dissolve no colapso do tempo
e no mais evidente alvoroço da vida.

  

Texto de Solange Firmino - Rio de Janeiro (RJ). É Professora de Português e Literatura. Venceu dois grandes prêmios de literatura, sendo o último em 2021, com o 2º lugar no Prêmio da Biblioteca Pública do Paraná, na categoria Literatura Infantil. Possui 7 livros de poesia publicados.