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quarta-feira, 1 de junho de 2022

A METÁFORA DA ÁGUA NA POESIA DE GRAÇA PIRES: MEMÓRIA INFÂNCIA E SOLIDÃO

 








UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS CÂMPUS CORA CORALINA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTU

SENSU EM LÍNGUA, LITERATURA E

INTERCULTURALIDADE



 

 

 

LOURDES DIVINA ORTIZ DE CAMARGO

 

 

 

 

 

A METÁFORA DA ÁGUA NA POESIA DE GRAÇA PIRES: MEMÓRIA, INFÂNCIA E SOLIDÃO

 

 

 

 

 

 

 

 



GOIÁS-GO

2020








A METÁFORA DA ÁGUA NA POESIA DE GRAÇA PIRES: MEMÓRIA, INFÂNCIA E SOLIDÃO





Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Língua, Literatura e Interculturalidade (POSLLI) da Universidade Estadual de Goiás como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Língua, Literatura e Interculturalidade.



Área de concentração: Estudos de Linguagem e Interculturalidade.



Linha de Pesquisa: LP2 – Estudos Literários e Interculturalidade





Orientador: Prof. Dr. Alexandre Bonafim Felizardo









GOIÁS- O 2020









 A METÁFORA DA ÁGUA NA POESIA DE GRAÇA PIRES: MEMÓRIA, INFÂNCIA E SOLIDÃO



Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Língua, Literatura e Interculturalidade (POSLLI) da Universidade Estadual de Goiás como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Língua, Literatura e Interculturalidade, aprovada em de agosto de 2020 pela Banca Examinadora constituída pelos seguintes professores:












Prof. Dr. Alexandre Bonafim Felizardo

Universidade Estadual de Goiás Professor Orientador (Presidente)











 Prof. Dr. Adolfo José de Souza Frota

Universidade Estadual de Goiás (Membro)











Prof. Dr. Paulo Antônio Vieira Júnior

Universidade Federal de Goiás e Pontifícia Universidade Católica de Goiás (Membro)







 

 










Dedico este trabalho a Deus, autor de meu destino. À minha família que não mediu esforços para apoiar-me nesta etapa de minha vida. Aos professores do mestrado pelo incentivo e pela grande ajuda com o fornecimento de material teórico para a realização desta dissertação.














 
  AGRADECIMENTOS



A Deus por conceder-me a realização de um sonho.

A minha família que, direta e indiretamente, contribuiu com a realização desta pesquisa, abdicando da minha presença para que eu pudesse elaborar este trabalho.

À Universidade Estadual de Goiás-UEG – Câmpus “Cora Coralina” –, seu corpo docente, direção e administração pela oportunidade de realizar este Mestrado e pela confiança, profissionalismo e dedicação.

Aos professores e professoras do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Língua, Literatura e Interculturalidade (POSLLI) da UEG que, por meio das disciplinas ofertadas, possibilitaram o crescimento intelectual com as sugestões de obras para o embasamento teórico e as reflexões durante as aulas ministradas.

Ao meu orientador Prof. Dr. Alexandre Bonafim Felizardo, pelo suporte, as sugestões e o empenho dedicados ao meu projeto de pesquisa e a esta dissertação: direções, abordagens, bibliografias, paciência e outras luzes com as quais segui confiante pelos caminhos deste trabalho de investigação.

Ao meu filho amado, Leonardo, que é a razão maior de eu não desistir de todos os meus objetivos.








Eu te batizo em nome do mar,
Disse minha mãe com barcos na voz.
E as ondas enlearam nas águas o meu nome,
abrindo nas fendas do corpo
um impulso salgado que me brandiu o sangue.
Sei agora que há âncoras afogadas
nos meus olhos: nítido eco de todas as demandas.

Graça Pires






RESUMO

 Este trabalho de investigação tem como objetivo debater a metáfora da água na poesia de Graça Pires, poeta portuguesa contemporânea cuja escrita refaz, através da memória, os caminhos da infância e da solidão ao adotar a natureza como referente. Presença constante em sua produção, o elemento água simboliza a vida, a fluidez das coisas e as inquietações do ser. Tais tópicos serão examinados a partir das contribuições teóricas de Gaston Bachelard (1988; 1993; 1997), Hugo Friedrich (1991), Octávio Paz (1984; 1993; 2012) e Raíssa Cavalcanti (1999), entre outros, cujos pressupostos compõem a tessitura acerca da matéria-prima do poema: o lirismo, a linguagem estética, a autocontemplação e a sacralização da água como elemento de criação e sustentação da vida. Ainda ancorando-se nesse aporte teórico, iremos estabelecer relações entre os poemas analisados e o elemento água, tomado como índice fundamental de criação poética da autora. A análise se desdobrará, por fim, pelo fazer poético de Graça Pires cuja obra se encontra situada e construída a partir da semântica da água ligada aos sentidos de liberdade e solidão perante a experiência poética do sujeito lírico do texto, que se constitui na linguagem, em uma condição existencial ligada à memória da infância, aos amores e à solidão, refletindo e evidenciando as ações do ser humano no século XXI como índices formadores de sua poesia.

Palavras-chave: Metáfora da Água; Solidão; Memória; Infância; Natureza.




ABSTRACT 

This dissertation’s goal is to analyze the water metaphor in Graça Pires’s poetry, Contemporary Portuguese author whose writing remakes, through memories, her childhood and loneliness paths by adopting Nature as a reference. The water element, which is a constant presence in the author’s work, symbolizes life, fluidity of things and the concerns of the being. These topics are examined with the theoretical contribution of Gaston Bachelard (1988; 1993; 1997), Hugo Friedrich (1991), Octávio

Paz (1984; 1993; 2012) and Raíssa Cavalcanti (1999), among others whose presupposes compose the textual tessiture about the raw material of the poem: lyricism, aesthetic language, self-contemplation and the sacredness of water as an element of creation and sustaining life. In addition to that, based on this theoretical foundation, we seek to establish a relation between the poems we analyze and the water element, taken as a key index of poetic creation by the author. Finally, the analysis will unfold over the poetic work of Graça Pires, situated and built from the semantics of water linked to the meanings of freedom and loneliness before the poetic experience of the lyrical subject of the text. This movement, which is constituted in language in an existential condition connected to her childhood memories, loves stories and loneliness, reflects and shows the actions of human being in the 21st century, as indexes that form her poetry.

 

Keywords: Water Metaphor; Loneliness; Memory; Childhood; Nature.





8


8

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO....................................9

1.           APONTAMENTOS TEÓRICOS DE LITERATURA MODERNA E CONTEMPORÂNEA E LEITURAS PANORÂMICAS DA OBRA DE GRAÇA PIRES........................... 13

1.1            Características da poesia de Graça Pires no contexto da literatura portuguesa contemporânea.........................................13

1.2            Leituras panorâmicas da obra de Graça Pires.........................25

2.           FORMULAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A ÁGUA E A METÁFORA DA ÁGUA NA POESIA DE GRAÇA PIRES........................42

2.1            A metáfora da água e a lírica na poesia..................................................... 42

2.2            A água como matéria-prima semântica da poesia.................................... 52

3.           GRAÇA PIRES NA TRADIÇÃO DA POESIA PORTUGUESA.....76

3.1            O itinerário da construção poética de Graça Pires.........76

3.2            A metáfora da água e a solidão do ser perdido na multidão da cidade grande    83

CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................89

REFERÊNCIAS      91





INTRODUÇÃO

 No viés dos devaneios profundos e da aproximação íntima com o ato criador, realizamos um estudo da metáfora da água na poesia de Graça Pires, poeta portuguesa nascida na cidade de Figueira da Foz, distrito de Coimbra, em Portugal, no dia 22 de novembro de 1946. A poeta é licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Em 1988, recebeu o Prêmio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Poesia (APE). Em 1990 publicou Poemas; em 1993 recebeu o Prêmio Nacional de Poesia Sebastião da Gama com a obra Labirintos, publicada somente no ano de 1997, numa edição da Câmara Municipal de Murça que lhe atribuiu o prêmio Fernão Magalhães Gonçalves. No mesmo ano, recebeu o Prêmio Nacional de Poesia da Vila de Fânzeres com a obra Outono: lugar frágil, livro  publicado pela Junta de Freguesia de Fânzeres. Sua ampla bibliografia foi agraciada com diversos prêmios e é composta pelas seguintes obras: Ortografia do olhar (1995), Afectos conjugar (1996), Uma certa forma de errância (2003), Quando as estevas entraram no poema (2004), Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos (2007), Uma extensa mancha de sonhos (2008), O silêncio: lugar habitado (2008), A incidência da luz (2011), Uma vara de medir o sol (2012), Poemas escolhidos (2012), Caderno de significados (2013), Espaço livre com barcos (2014), Uma claridade que cega (2015), Fui quase todas as mulheres de Modigliani (2017), Uma vara de medir o sol (2018) e A solidão é como o vento (2020).

Objeto fundamental na poesia de Graça Pires, a água está no centro das temáticas dessa poeta portuguesa contemporânea. A escolha de sua obra para esta pesquisa se deve ao fato de que, relativamente, parcas pesquisas existem sobre sua produção. Seus poemas tematizam tópicos atuais de relevância ambiental, questionamentos sobre o mundo, fatos e coisas que envolvem o ser humano em suas incertezas e inquietudes na contemporaneidade. A solidão, a cegueira e o conformismo das pessoas relacionados a atitudes individuais e coletivas abrem possibilidades de reflexão com vistas às mudanças de atitude da espécie humana em relação à preservação da natureza e ao estado de apatia em que se encontra a sociedade contemporânea.

Embora haja autores(as) que tratem de questões afins, Graça Pires suscita estudos por ser uma poeta cuja obra recorre reiteradamente a elementos da natureza como água, mar, terra e ar. A ênfase recai na palavra lexical água, a qual cumpre, a partir de figuração, a expressão da subjetividade do eu lírico na construção de metáforas e imagens de lirismo expressivo, de simbologia marcante em sua produção. As análises da metáfora da água em seus poemas evidenciam uma poética da memória que encontra, ainda na infância, o lugar de felicidade e das alegrias que não existem no tempo presente.

Em sua obra, uma voz lírica emana do continente, abre as asas sobre o oceano e retorna para si mesma, onde a viagem mais inquietante e reveladora acontece. Ao viajar para dentro de si mesma, evoca memórias, constrói portos e símbolos metafóricos a partir do elemento água, evidenciando a mnemônica, marca da sua construção poética. A expressão poética do eu lírico se faz por meio de uma linguagem que se liquefaz ao revelar mergulhos vivenciais e constitui a obra de quem foi batizada em nome do mar.

Na composição do corpus teórico desta pesquisa bibliográfico-qualitativa, buscam-se as contribuições de Bachelard (1995; 1997; 2005), Friedrich (1991), Paz (1993; 2012) e Cavalcanti (1999). Esses teóricos postulam que a água, na semântica da poesia, adquire a plurissignificação da vida: fluidez do tempo, perda, amores, solidão, liberdade, memória, sonhos e devaneios. Em Bachelard, por exemplo, encontram-se os postulados sobre a simbologia da água e as referências a esse elemento de que se ocupam os estudos na literatura universal: da filosofia aos clássicos e aos textos contemporâneos, a água simboliza a vida, a origem e a purificação do homem. Buscam-se, nesses autores, sustentação para as discussões acerca das representações crítico-teóricas da literatura e da poesia contemporânea.

Assim, o objetivo desta dissertação é analisar a metáfora nos versos de Graça Pires que tematizam a fluidez da vida, tal como a fluidez da água com sua incontida sede do horizonte. A água, mesmo sendo fluida, fica presa quando estanque e, ao se libertar, não se contenta com o espaço diminuto, pois precisa extravasar para que possa ocupar novos lugares, em um movimento de ida. Na memória lírica da poeta também simboliza o movimento de volta: a água evoca a infância que se foi, os amores que não resistiram ao passar do tempo, as sensações que não podem ser encapsuladas.

A pesquisa se norteia pela problematização da inquietude poética e da solidão da poeta que procura se encontrar nos seus versos, e a hipótese é de que, ao escrever poesia, o eu de Graça Pires se reconstitua no eu lírico. Mas essa reconstituição não é sempre ideal, mas, muitas vezes, aquela que abre sulcos na alma: solidões que a água insiste em trazer novamente ao porto dos sentimentos da poeta.

O corpus analítico apresenta poemas povoados por um lirismo que evoca reminiscências, referenciando e reverenciando a água para construir as metáforas da existência. Trata-se de uma poesia da vida, do mar, do amor, da natureza, da solidão, da aventura errante do ser.

Epistemologicamente, as análises se assentam nos postulados de que a obra literária em verso se vale de uma arquitetura, um arranjo lexical responsável por construir um campo semântico no qual se imerge em busca dos sentidos subjacentes ao poema.

A estrutura argumentativa desta dissertação está disposta em três capítulos delimitados de modo a evidenciar a singularidade na expressão das múltiplas vozes presentes em sua poesia, cujo caminho é o da arquitetura poética da liberdade formal no contexto da literatura portuguesa contemporânea.

No primeiro capítulo, sob o título Apontamentos teóricos de literatura portuguesa contemporânea e leituras panorâmicas da obra de Graça Pires, as discussões teóricas remetem a uma abordagem da literatura portuguesa contemporânea com exclusividade à obra poética de Graça Pires. De forma abrangente, descreve-se seu estilo permeado por uma linguagem imageticamente expressiva em que se desenham a infância, os tempos idos e as questões ambientais e sociais a partir da recorrência de elementos da natureza (água, rios, mar, céu, lua, vento), temas que se conectam para compor os sentidos e o lirismo poético.

No segundo capítulo, Formulações teóricas sobre a água e a metáfora da água na poesia de Graça Pires, as abordagens e as discussões se ancoram nos postulados acerca da água. Busca-se, nos teóricos da literatura universal, conceitos, formulações e referências que sustentam as noções da água como metáfora abrangente. As discussões focalizam as formulações de Bachelard (1995; 1997; 2005) sobre a água, a fim de que se construa um caminho para a compreensão da questão central da pesquisa: a metáfora da água na poesia líquida de Graça Pires, autora que não se prende ao rigor formal da poesia clássica, ao mesmo tempo em que dialoga com a tradição: versos de medida clássica se intercalam com versos em métrica livre. 

No terceiro capítulo, Graça Pires: Leituras de Poemas Portugueses, de natureza essencialmente analítica, o construto textual se vale de teorias que contribuem para a compreensão de sua poesia a partir da problematização de que a infância habita as inquietações nostálgicas, das questões ambientais as quais evocam uma consciência incômoda, da solidão que se mostra na constatação de uma necessidade recorrente de revisitar o passado e das questões sociais, as quais expõem um quadro de perturbação do eu que fala no poema. As análises dos poemas escolhidos expandem, dissecam a linguagem, o estilo e as temáticas presentes na obra da poeta portuguesa contemporânea Graça Pires.



1. APONTAMENTOS TEÓRICOS DE LITERATURA ODERNA E CONTEMPORÂNEA E LEITURAS PANORÂMICAS DA OBRA DE GRAÇA PIRES

 

1.1   Características da poesia de Graça Pires no contexto da literatura portuguesa contemporânea


A extensa obra de Graça Pires apresenta características intimistas, e seu perfil poético revela uma memória sensorial. A autora prima por temas que remetem ao território da infância, povoado por elementos da natureza, e a tempos primevos ao mito. Revela-se, através da sua poesia, o exercício da memória em busca das sensações perdidas em outro tempo, que ressurgem na evocação de objetos, lugares e elementos do seu contexto social relacionados à presença da água, que emoldura a paisagem de suas reminiscências.

Com destaque para temas sobre a solidão, o mar, a infância, o amor e o cotidiano, a leitura de sua obra demanda adentrar o labirinto de metáforas que remetem ao desassossego de um eu lírico errante em busca da consciência social e dos valores humanistas. A metáfora da água desvela as consequências dos conflitos que marcam o homem do século XXI e, ao mesmo tempo, a memória do sujeito lírico, em que imagens do passado e do presente se mesclam, no tempo infinito das sensações.

A revelação de imagens que compõem e ilustram os desígnios encantadores da lírica mnemônica desta poeta pode ser constatada no poema a seguir, que faz parte do livro intitulado Uma claridade que cega (2015):


Espreito pelos dedos a memória 

mais longínqua da infância.

Procuro-a intensamente.

Nas árvores, nas latadas, 

nos vãos de escada, 

nos telhados, nos rochedos.

E retalho a pele dos seios. 

Rapo o cabelo.

Envolvo-me de fumo.

Soletro as palavras maternas. 

Mas um sopro invisível 

dispersou o berço e os brinquedos 

como um eco sem volta.

Coloco na ara sacrificial 

a candura recortada 

de um cenário imaginado, 

para que me seja paisagem na lembrança. 

(PIRES, 2015, p. 19)


Neste poema, composto de dezassete versos, verifica-se a inquietação do sujeito lírico que procura algo intenso, sai em busca do objeto de desejo, mas essa procura é interrompida por uma inspiração que altera sua rota. Nele, a memória sensorial da audição e da visão é ativada juntamente com o desejo de reviver o cenário da infância, mesmo que seja através da paisagem imaginária.

O tom mnemônico é recorrente no poema e o arranjo da linguagem revela tessituras que resultam em uma semântica de revisitação do passado, da busca pela infância ancorada em paragens dantes navegadas: a paisagem acalentada por berços e brinquedos que agora são apenas a “candura recortada”. Nota-se que o sujeito lírico refaz a lembrança a partir de vestígios e impressões que, para Halbwachs (2013, p. 91), são “uma reconstrução do passado com a ajuda de dados tomados de empréstimo ao presente e preparados por outras reconstruções feitas em épocas anteriores”.

A “ara sacrificial” é imperativa, irrevogável e instaura uma espécie de ansiedade por algo que só se recupera e revive na instância da memória: “Espreito pelos dedos a memória/ mais longínqua da infância”, e desse espreitar, tudo o que resta são frestas através das quais apenas se vislumbra o que foi e já não mais pode ser, senão no seio no poema. De acordo com os postulados bachelardianos, no retorno ao tempo primevo da infância imaculada é que acontecem os devaneios mais ternos, é nesta solidão cósmica que a memória e a imaginação se unem para revelar o fazer poético: “E o sonhador bem sabe que é preciso ir além do tempo das febres para encontrar o tempo tranquilo, o tempo da infância feliz em sua própria substância” (BACHELARD,1988, p. 105).

O poema em questão mostra o quanto a linguagem recupera do passado, ao mesmo tempo em que causa certa angústia: dualidade de sensações construídas na arquitetura lexical. Memória, infância, palavras maternas, berço, brinquedos e lembrança são nominações cujo atributo semântico é reconstruir a paisagem de que composto o tempo pretérito. O poema toma para si o universo real e o recria a partir da mobilização emocional do eu lírico.

A análise dos versos converge para a compreensão das temáticas elucidadas, tais como o intimismo, a introspecção, o silêncio demorado com propositura de construir um tecido metafórico-simbólico com o qual se reveste a realidade cotidiana.

O crítico Fernando Guimarães (2008) diria do poema de Graça Pires o que disse sobre a obra de António Ramos Rosa: há nela o poder latente da imagética de sensações, da intersecção entre o invólucro chamado poema e o espaço ideológico da linguagem. É possível debater, portanto, a respeito das influências de A. R. Rosa na obra de G. Pires, identificando-se uma situação do homem delineada na instância da arquitetura poética.

 

Ramos Rosa não deixa de ressalvar que, seja qual for a experiência do poeta, o valor da sua poesia “reside não no que nos diz ou explica sobre a condição humana, não nas ideias, crenças ou atitudes que propõe, mas em nos tornar presente essa mesma condição fundamental, possibilitando a cada leitor o acto de recriação poética”. (GUIMARÃES, 2008, p. 14, grifos do autor)

 

O “acto de recriação” está para a estrutura do poema do mesmo modo que está para uma espécie de desvendamento da palavra, destituindo-a de uns sentidos para instaurar outros. Graça Pires, Pode se dizer, dialoga com R. Rosa ao esvaziar a palavra de sentidos denotativos a fim de preenchê-la de sentidos simbólicos. Não se trata, entretanto, de uma acuidade excessiva e meramente formal, mas sim de uma postura de precaução contra a eventual imposição da duplicidade interpretativa da obra poética (GUIMARÃES, 2008).

Pela memória e pela linguagem poética, o eu lírico põe-se em atitude contemplativa: direciona a memória para vivências que exprimem a solidão e a infância plasmadas pelos elementos da natureza mar, terra, água, fogo. De maneira enfática, essas presenças expõem a nostalgia, o encantamento, a mobilização do pensamento que põe sob leitura as questões que envolvem a condição humana.

Constata-se que a memória é o princípio balizador para se buscar o que é passado e afirmar que algo foi realidade. Ela volta-se sempre para algo, para um objeto e, segundo Ricoeur (2007), isso constitui o caráter objetal da memória. Assim, ao voltar-se para a água, o mar, a terra, entre outros elementos presentes na poesia de Graça Pires, a linguagem poética articula o que compõe o passado com os sentimentos latentes no presente: a solidão, a angústia, a nostalgia.

Outra questão evidenciada no labor poético de Graça Pires é a natureza, que é fundamentalmente uma essência em sua poesia, como pode ser constatado no poema a seguir, extraído do livro Uma claridade que cega (2015).



Não era uma simples sombra a que recuava
no interior da claridade espelhada nos lagos.
Incidia nas águas mais fundas
– onde a geometria dos seixos
se enrola nas raízes dos juncos –
e alongava-se pelas margens,
com a noite mais crua e molhada
a invadir-lhe os contornos.
Era a sombra do poente,
num horizonte que se olhava a pique, 
tão incendiado como um cântico solar
(PIRES, 2005, p. 16) 

Os elementos da natureza e a projeção do espaço externo como um reflexo do espaço interno são abundantes no tratamento poético dado por uma lírica que não enfatiza a subjetividade do poeta, mas que a expõe em igualdade na descrição física do espaço paisagístico. Nesse ponto, a intersecção da poesia de Graça Pires com a poesia moderna se desfaz de certa forma, já que o modernismo rompe com a afinidade entre o poeta, a temática e a vida natural. O que ocorre é que, em Graça Pires, essa afinidade com a natureza se mantém, embora o tratamento dado não romantize, não idealize, e sim inscreva uma lírica pungente, por vezes dolorosa, reveladora de feridas não cicatrizadas. Esse distanciamento da atitude romântica é revelador de um sujeito fora de si que, segundo explicita Collot

 

Estar fora de si é ter perdido o controle de seus movimentos interiores e, por isso mesmo, ser projetado para o exterior. Esses dois sentidos da expressão parecem-me constitutivos da e-moção lírica, que perturba o sujeito no mais íntimo de si mesmo e o leva ao encontro do mundo e do outro. (COLLOT, 2013, p. 222)

 

O sujeito fora de si de que fala Collot (2013) é a ausência do controle de suas capacidades de autocontrole à medida que passa a construir a “e-moção” lírica, ou seja, a expressão do lirismo no poema. O sujeito lírico seria, dessa forma, uma entidade que toma posse do eu do poeta e, por meio dele, se manifesta.

No poema em questão, identifica-se tanto uma elucidação da paisagem exterior quanto do espaço interior, cuja subjetividade da água reflete a materialidade do mundo, é um espelho desse ser. As duas instâncias coexistem: constrói-se uma rede descritiva do espaço fora para trazer, nos interstícios da linguagem, alguma informação daquilo que vai no interior de quem fala na terceira pessoa. Não é preciso se colocar à frente, adotando-se o ponto de vista da primeira pessoa, para deixar transparecer o que seria a expressão de um “eu”, mas o que mais se enfatiza aí são as características da geografia física, ainda que para dar, de forma sutil, lugar à expressão de um “eu”.

Ancoramos novamente no porto da linguagem, da “lírica moderna que exclui não a pessoa particular, mas também a humanidade normal” (FRIEDRICH, 1991,

p. 110), porque não se prende a modelos, ainda que a modernidade seja uma forma de reprodução de comportamentos e atitudes que nega os modismos. Nesse sentido, a lírica não é uma espécie de entusiasmo em si e por si; se assim fosse, recorreríamos ao princípio fundamental nomeado por Mallarmé de “lírica absoluta”, ou seja, “a elaboração precisa de palavras, a fim de que se tornem uma ‘voz que oculte tanto o poeta quanto o leitor” (MALLARMÉ apud FRIEDRICH, 1991, p. 111).

O sujeito lírico da modernidade se revela em uma nova configuração, assim como neste poema de Graça Pires, em que ele não aparece na estrutura enquanto pessoa do discurso. Friedrich (1991) e Collot (2013) explicam que as líricas da modernidade, de modo geral, não costumam manifestar a presença de um eu lírico ou um lirismo advindo de uma formação autobiográfica, como ocorria no romantismo, por exemplo. Sua elaboração poética consiste no rigor formal do trabalho apurado com a linguagem. Embora Graça Pires contemple, neste poema em específico, esta assinatura da tradição moderna, sua subjetividade se exprime, de modo geral, pela fluidez do sujeito representado na simbologia da água tomada em sua espacialização.

Em Graça Pires, o intimismo revela-se na intrincada construção metafórica que emana das múltiplas vozes de que ela é portadora. Essas vozes captam ventanias, leitos de rios, ondas marítimas, embarcações, marinheiros, os sentidos de solidão, a infância. Por meio do simbolismo da metáfora, evoca-se a infância, esse espaço de vivências que despertam lembranças. O rememorar traz de volta a menina que viveu no limite geográfico do continente com o mar – dois lugares de partidas e vindas – assim como o movimento ondular das águas.

A recordação, o recordare, o trazer de volta ao coração, conforme assinalado por Emil Staiger em Conceitos fundamentais de poética (1993), é a essência da lírica. Dessa maneira, o ato de recordar para o eu lírico é trazer de volta ao coração tudo aquilo que o representa. Um belo passado, construção imagética recuperada a partir dos objetos e dos elementos naturais, por exemplo, propicia ao sujeito reconstituir e recompor sua essência.

A água, dessa perspectiva, revela, através da sua fluidez no espaço do poema, a imagem de uma embarcação a navegar rumo à solidão. E em um gesto de busca, o eu lírico faz do passado e o do presente um tempo uno via memória que remete à infância e às lembranças cujas inquietações agitam a existência do ser. Como um mar revolto, as palavras e seu jogo com a linguagem remetem ao sentimento de desassossego que, somente através da escrita poética, permitem ao sujeito lírico ser livre para cristalizar o momento sublime de devaneio, como também podemos verificar no poema subsequente, da obra intitulada Quando as estevas entraram no poema 2005.



De um instante para o outro, 
saíram barcos do meu peito, 
à procura do mar da minha infância:
o sangue paterno agitando o coração. 
Acumulo imagens sobre imagens.
Entrecruzo palavras antigas.
Um imenso arco-íris humedece-me
o rosto de cores garridas.
Aves costeiras nascem-me na boca,
como se uma tempestade ardesse, 
imensa, em minha língua.
(PIRES, 2005, p. 28) 
No poema destacam-se os temas mais recorrentes da obra de Graça Pires: o mar, a infância e as aves, todos povoados pelo lirismo das imagens que remetem à vastidão das águas que não está lá fora, mas que se encontra dentro do eu lírico. Na instância da poesia, as águas não se abrem sob o sentido da visão, mas nos recônditos do onirismo mnemônico, das luzes que se acendem para iluminar a infância (“...mar da minha infância”). Sob o domínio da imensidão espacial da água do mar, a imagem interior de rememoração se constrói em uma intersecção de fora e dentro, para representar a infinitude do ato de retornar ao passado do sujeito lírico. Conforme Bachelard (2008, p. 201), 

[p]ara Baudelaire, o destino poético do homem é o de ser o espelho da imensidão; ou, mais exatamente ainda, a imensidão vem tomar consciência de si mesma no homem. Para Baudelaire, o homem é um ser vasto. 

A imagem que se constrói no plano da memória e na tessitura da palavra é de forte carga lírica e exerce uma pressão de tempestade no peito de onde saem os

barcos que buscam os portos da infância. Toda uma rede de metáforas leva ao mar, evoca a água como a simbologia do tempo e do espaço fluido. A água traz a memória porque leva, e leva para depois trazer: eis o que se pode chamar movimento mnemônico ondular.

A lírica da poesia de Graça Pires tem sua gênese na lírica dos grandes poetas para os quais a palavra sacraliza a existência, os devaneios e os sonhos. Em sua palavra, o mundo põe-se em êxtase, mostra-se fecundo: “as coisas resgatam sua áurea feérica sacralizada; o homem encontra sua condição de ser transcendente, irmanado das fontes genesíacas da natureza, às pulsões cósmicas do corpo” (BONAFIM, s/d1). Esse autor postula que, entre os temas tratados pela poeta portuguesa, são recorrentes a busca pela infância perdida, a solidão e a exaltação da natureza.

Nesse sentido, sobre a presença da natureza na poesia de Graça Pires, pode se dizer que ela contempla o mar como Narciso se contempla ao se ver refletido no espelho criado pela água, como sugere o mito fundamental da Antiguidade. Enquanto ele se enamora de sua própria imagem refletida na água, o eu lírico se enamora de sua infância, porque a presença do mar evoca-lhe satisfações. Para Narciso, a água representa o espelho diante do qual acontece a autocontemplação. Para Graça Pires, a água representa o mergulho na memória de onde se extraem vivências e alegrias, refúgio do agora que busca alento. De acordo com Bachelard (1997, p. 23, grifos do autor), “a água serve para naturalizar a nossa imagem, para devolver um pouco de inocência e de naturalidade ao orgulho da nossa contemplação íntima”.

O construto poético no poema em questão evidencia o trabalho da autora portuguesa com a linguagem de modo insólito. O sair de barcos do peito e o entrecruzar de palavras antigas, o umedecer-se de arco-íris e a aparição de aves costeiras nascendo da boca do eu lírico instauram o inusual sobre o qual fala Friedrich (1991), isto é, refere-se à manifestação metafórica da linguagem no texto – à despersonalização do eu lírico do poema, quando nos referimos anteriormente à ideia do sujeito lírico moderno.

Desta maneira, os postulados de Friedrich dizem que, na linguagem, as proposições têm, cada uma a seu tempo e simultaneamente, várias significações. A

técnica mais importante é a que funde o significado de uma palavra ao da palavra que está próxima: “As palavras resplandecem em seus mútuos reflexos” (FRIEDRICH, 1991, p. 117). Barco, mar, arco-íris, aves costeiras e tempestades por si só remetem ao campo semântico da paisagem, mas distribuídas nos versos do poema, se juntam para construir novos sentidos. Há aí o que o autor chama de mutualidade e de reflexos semânticos tão importantes à poesia moderna e ao poema.

O dado real por si só, quando objeto da escrita, é insuficiente para a concepção da poesia, formulação a partir da qual Friedrich chega à noção da existência de um “Nada”, quer dizer, a poesia vale-se da palavra, muito mais que do fato, do dado real e seu sentido. “Assim está fundada, por via ontológica, a moderna hegemonia da palavra, mas também da fantasia ilimitada” (FRIEDRICH, 1991, p. 126). Destarte, figura-se uma espécie de fulguração: “[...] (a) magia linguística pode manifestar-se na força sonora dos versos, mas também num impulso de palavras que dirige a criação poética” (FRIEDRICH, 1991, p. 134).


 

1 BONAFIM, Alexandre. Ortografia de um olhar apaixonado. Escritos avulsos do autor sobre a obra da poeta Graça Pires. Texto inédito, cedido pela própria autora.



Faz-se importante, assim, recorrer às noções de estilo, de originalidade e de individualidade artística para compreendermos melhor a obra da poeta portuguesa Graça Pires.


O estilo lírico que até hoje domina o século XX nasceu na França, na segunda metade do século XIX. Este modelo foi traçado a partir de Baudelaire, depois de ter sido pressentido pelo alemão Novalis e pelo americano Poe. Rimbaud e Mallarmé haviam indicado os limites extremos aos quais a poesia pode ousar lançar-se. A lírica do século XX não traz mais nada de fundamentalmente novo, por mais dotados que sejam alguns de seus poetas. (FRIEDRICH, 1991, p. 141)

 

O teórico explica que tais ponderações não diminuem ou invalidam o fazer poético dos autores mencionados, ao contrário, evidenciam o reconhecimento de que suas obras estão interconectadas por uma unidade de estilo que as interliga ao estilo de seus predecessores. Se, por um lado, nada de novo há sobre a lírica moderna, é certo que ela é uma espécie de estética e de metodologia condutora dos estilos.

Graça Pires, por exemplo, apresenta, do ponto de vista da estética formal, a inovação da linguagem. Essa característica, entretanto, não tem uma finalidade por si só; ela carrega, em seu âmago, significações que se constroem a partir da metodologia associativa e da simbologia. Trata-se de um construto legitimado pelo anseio da liberdade formal e semântico-temática. Fazer literatura contemporânea

significa, portanto, associar forma e função sem que, para isso, seja necessário vestir as camisas de força do buril que lapidou a tradição literária da poesia europeia (GUIMARÃES, 2008).

Pode se dizer que a partir da celebração dessa dimensão forma/função livre é que a poesia portuguesa abriu caminho para a inovação experimentada pelos poetas nacionais. Entre eles figura Vitorino Nemésio, cuja expressão poética se assenta nas bases da linguagem, instrumento organizador da manifestação imaginária, da valorização da imagem e da metáfora. Segue-se então uma linha que valoriza a linguagem poética inserida no conjunto das formas simbólicas, ressaltando-se a expressividade dentro daquilo que o texto poético pode dizer. Isso equivale a ponderar que, quanto à poesia e à linguagem, identifica-se uma associação imaginativa de forte presença também nos poetas José Bento, António José Maldonado, Alberto de Lacerda ou, mais tarde ainda, Ruy Belo (GUIMARÃES, 2008).

Ainda consoante Guimarães (2008), no início dos anos 50, um rumo diferente é esboçado com as publicações das folhas de poesia Távola Redonda. Um de seus representantes mais significativos, David Mourão-Ferreira, defende a ideia de que toda poesia é, antes, uma obra lírica. Mesmo quando se afasta do lirismo, volta a sê- lo nos seus mais altos momentos. Posta sob essa perspectiva, quanto mais lírico o poema se revela, mais nobreza no sentido clássico ele possui. Assim, tanto na poesia como na vida, as formas de depuração estabelecem uma hierarquia no texto literário. Poesia e lirismo, na visão de D. Mourão-Ferreira, não acontecem dissociados da lírica, (apud GUIMARÃES, 2008). Tal evidência dessas ponderações sobre a lírica moderna surge no seguinte poema de Graça Pires: 


Neste momento dou ao meu perfil
a configuração de uma haste 
que, ao primeiro sopro do vento,
adivinha um fogo posto nas palavras.
Conheço o rigor das noites 
e o alarmante traço da obsessão 
pelas trevas que me cingem 
os braços quando o reflexo do luar
incide nas manchas do meu rosto
e com os mais antigos olhos 
posso rever o passado:
tantas vezes vida, tantas vezes morte. 
(PIRES, 2015, p. 17)

 

Neste poema da obra Uma claridade que cega (2015), há um ritmo e uma cadência que marcam a liberdade formal e estética iniciada no movimento literário modernista. Esse processo, no entanto, ganha vozes e projeção no Modernismo e nos poetas contemporâneos.

O poema apresenta um rigor formal no sentido de uma sintaxe inquestionavelmente respaldada pela tradição: a pontuação ao estilo da prosa, texto fluido, com as instâncias da pontuação regidas pela normatividade da língua escrita padrão: “Neste momento dou ao meu perfil/ a configuração de uma haste/ que, ao primeiro sopro do vento/ adivinha um fogo posto nas palavras”. A fruição e a disposição dos versos, por si só, dariam conta de uma intercalação, sem que fossem necessários o uso das vírgulas.

No último verso, “tantas vezes vida, tantas vezes morte”, a pontuação marcando o limite da construção antitética corrobora a noção semântica de extrema oposição: vida/morte. A poeta optou pela não “translineação” da segunda metade do verso, “tantas vezes morte”, e fez questão de, num só verso, justapor as imagens extremas de vida e morte, criando uma noção de que a fluidez da vida é abruptamente interrompida pela morte.

As análises validadas pelo rigor da pontuação revelam uma produção artística contemporânea que, no lugar de preferir a sintaxe e as construções contrárias à normatividade da língua escrita, opta pela estética do rigor. Numa e noutra situação, o poema moderno e contemporâneo mostram-se livres, uma vez que se pratica o rigor porque se é livre para fazê-lo, e não por uma imposição da liberdade.

A leitura do poema atesta que Graça Pires mantém uma unidade de estilo. Porém, isso não implica, por exemplo, a existência de uma monotonia ou que não exista qualidade:

 

Unidade de estilo não significa monotonia. É um elemento comum da atitude linguística, da maneira de ver, da temática, das parábolas internas, que abrange as diferenças entre os vários autores. Goethe e Trakl estão ligados por uma unidade de estilo, enquanto líricos como Trakl e Benn o estão, apesar da dificuldade de se comparar um com o outro. (FRIEDRICH, 1991, p. 141)

 

A unidade de estilo, como debatida por Friedrich, existe em um mesmo autor ou entre autores. De acordo com os postulados de Friedrich sobre unidade de estilo, não é necessário o poeta manter esta unidade, porém o mais relevante é a

originalidade da sua obra que revela sua individualidade artística. Noções similares podem se dizer a respeito da originalidade:

 

Originalidade é uma questão de qualidade, e não é decidida pelo estilo. Este, porém – neste caso a unidade estilística da lírica moderna –, facilita a cognição. O reconhecimento desta unidade de estilo é até mesmo a única via de acesso àquelas poesias que se apartam intencionalmente da compreensão normal. Então, certamente, dever-se-ia penetrar na individualidade artística dos poetas, o que só pode ocorrer aqui por alusões. (FRIEDRICH, 1991, p. 141)

 

Estilo, qualidade e originalidade, por conseguinte, não têm relação com modismos, imposições, regras, tradições. São questões individuais a serviço do poema, da poesia. Na poética contemporânea, que se situa no final do século XX e no século XXI, há uma nova recepção: a estética passa a constituir um hibridismo formal a partir das experimentações com o uso de métricas livres, da assimetria, dos versos brancos, da variação temática.

Graça Pires é representante de um fazer poético que não dissocia poesia e lirismo, estilo e qualidade. Sua obra apresenta, como vimos a respeito do intercambiamento entre autores, traços de outro poeta português, António R. Rosa. Ambos exploram a imagem, trazendo-a para dentro da palavra, bem como o fato de reiterar, repeti-la, prolongando-a a partir da presença de outras palavras com as quais são construídos sentidos. Essa premissa pode ser constatada no livro Ciclo do Cavalo, publicado em 1975 e composto por 72 poemas nos quais há uma extensão semântica da palavra-chave do título (cavalo). Guimarães (2008) destaca que a extensão da imagem poética suscitada pelo substantivo “cavalo” deve-se à presença de substantivos como salto, galope, cascos, garupa, cauda etc, em uma reiteração de palavras do mesmo campo semântico, acessando a dimensão simbólica da poesia.

Essa aptidão para construir, na linguagem, os sentidos do poema, também está presente em outros autores contemporâneos, e tem em Graça Pires a exposição de um corpus poético em que é recorrente o substantivo água, responsável pela sedimentação mental da imagem poética: 


Sem possibilidade de fuga 
habito a luz intensa da treva
e guardo, no olhar, a líquida sombra, 
que sobrevive na memória dos barcos, 
quando a madrugada se rasga, 
devagar, na plenitude dos mastros.
Eu não sei a cor dos navios,
quando os marinheiros avistam as dunas
e o cheiro quente da areia arde em suas bocas. 
Apenas sei a cor agressiva de meus olhos,
 condenados à errância das sombras.
(PIRES, 2007, p. 34)

 

Nestes versos, extraídos da obra Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos (2007), o agrupamento lexical líquida, barcos, mastros, navios, marinheiros e dunas constrói o campo semântico de palavras como natureza, mar, água e movimento. A recorrência de termos semanticamente conectados expande o significado para fora da palavra isolada e de seu sentido usual, trazendo-lhe uma série de possibilidades interpretativas e visuais. A unidade não tem o mesmo alcance que a coletividade e, no poema, as escolhas no âmbito da linguagem revelam extraordinário vigor imagético.

Os termos fuga, treva, sombra, rasga, condenados e errância juntam-se para imprimir a noção de que a infância se encontra aprisionada em um simulacro temporal, pois a temática da memória, que busca o reencontro com os acontecimentos pretéritos, ocupa a linha central do conjunto dos versos.

No arranjo da linguagem, pode se ainda analisar a sintaxe dos termos, predominantemente na ordem direta (sujeito + verbo + complemento) e a pontuação, que segue a norma padrão nos versos deste poema. Essa análise leva à assertiva de que as divagações interpretativas se reduzem, contribuindo para o entendimento do leitor. Além dessas considerações, é possível formular que as metáforas são a base da construção poética como em “neblina no olhar”, em que a neblina metaforiza uma cortina que impede o acesso às memórias, à infância. Logo, o que se pode dizer é que Graça Pires tem um estilo predominante imagético, metafórico, que recorre aos elementos da natureza para seu construto poético.



1.1    Leituras panorâmicas da obra de Graça Pires

 

Em Graça Pires, a lírica percorre os planos da fluidez mágica, histórica e relativista da existência, das consciências em estado de conflito, uma vez que sua obra poética pode ser interpretada como um espaço no qual a fragilidade e a solidão do ser, a denúncia social e a infância perdida de forma saudosista e reminiscente estão presentes. Sua poesia se move pela lírica subterrânea e de superfície, simultaneamente trabalhando com o movimento de ir e vir ao ritmo das vagas marítimas, elemento recorrente em sua escrita.

De acordo com as explanações de Oliveira (2009, p. 45) a respeito do momento atual da produção artística e intelectual,

 

Vivemos numa época das grandes investigações, vivemos no tempo das navegações existenciais, sejam elas mágicas, históricas ou relativistas. Em verdade, o que procuramos é a fusão ou superação destas três consciências conflitantes.

 

Desta forma, poderíamos dizer que em Graça Pires uma espécie de equilíbrio, pois não prevalece nenhuma dessas forças, visto que sua poesia não se prende a modelos, trafegando entre a lírica de superfície e a subterrânea. Da superfície, ela seleciona elementos do cotidiano que trata com profundidade, mergulhando na complexidade dos acontecimentos que tocam a existência humana e chegando ao subterrâneo através das questões ligadas às inquietações do ser.

Essa forma de escrever confirmaria as alegações de Oliveira (2009) de que a poesia de superfície designa o conjunto da obra poética de autores que abordam o mundo externo, o cotidiano, a vida doméstica e os eventos pitorescos e, por outro lado, a poesia subterrânea evoca formulações acerca de elementos complexos da existência e do universo sentimental das vozes que falam no poema. Desta forma, o trabalho de Graça Pires traz elementos do mundo antigo e moderno refletidos no eu lírico que vivencia e traduz suas impressões do mundo exterior para o interior, propondo a inquietação como algo mais importante do que a compreensão dos fatos.

A análise de sua produção conduz ao aporte nos postulados de Baudelaire citados por Friedrich, o poeta que inaugura a despersonalização da lírica moderna: 

Com Baudelaire começa a despersonalização da lírica moderna, pelo menos no sentido que a palavra lírica já não nasce da unidade de poesia e pessoa empírica, como haviam pretendido os românticos, em contraste com a lírica de muitos séculos anteriores. Não se pode levar suficientemente a sério o que o próprio Baudelaire diz a respeito. O fato de que suas afirmações se reportem a outras análogas de E. A. Poe não diminui seu valor, ao contrário, situam-nas na linha certa. (FRIEDRICH, 1991, p. 36-37)

 

De acordo com Baudelaire, foi Edgar Alan Poe quem separou a lírica da expressão sentimental. Para Baudelaire, entretanto, o poema é uma formulação concebida pela “capacidade de sentir a fantasia” e não como “capacidade de sentir do coração”.

Da mesma forma acontece na poesia de Graça Pires: há certa ruptura com o sentimento. Embora no poema em questão as imagens construídas pelas escolhas lexicais remetam ao sentimentalismo, sua escritura é também uma experimentação da fantasia que condensa a presença de um jogo de ideias inconscientes. A partir daí, interessa sobretudo que o poema mobilize a imaginação do leitor, e não o apelo ao seu sentimentalismo.

Com Baudelaire, tem início na lírica a despersonalização: contrária à lírica anterior, que se caracterizava pela sensibilidade exacerbada e romântica, agora o poeta deve ser guiado sobretudo pelo intelecto, devendo ser, portanto, mais racional que sentimental. Baudelaire propõe uma postura poética mais voltada para a criação que provém do intelecto que do coração.

A lírica em Graça Pires expressa-se na reverberação do toque que afaga, quando o substantivo “mão” imprime, reiteradamente, a noção do sublime. O poema transcrito do livro de poesias Uma certa forma de errância (2003), valida nossa leitura:



Para que saibas. As tuas mãos vogando 
como barcos: incessante navegação 
pela liquidez dos lábios
As tuas mãos. Digo. Para que saibas.
Pássaros incendiados a sobrevoar-me
o sangue. Um tropel de luz a demandar meu corpo. 
As tuas mãos: o arado, a terra, a fome, o celeiro.
Digo as tuas mãos. Para que saibas. 
As tuas mãos próximas de tocar a lua. 
(PIRES, 2003, p. 81)

No poema, a recorrência do substantivo “mãos” exerce a função de levar o leitor a fruir a alteridade lírica no texto: a mão esboça a relação entre o eu e o tu na ação do toque através das sinestesias táteis e constrói a imagem no poema.

Podemos afirmar que as mãos são fluidas, nômades, pois, ao se aventurarem no espaço em que se situam os elementos metafóricos que referenciam e reverenciam a natureza (água, ar, terra e fogo), elas cumprem e realizam a busca do inatingível. O eu lírico, assim, reinventa a realidade a partir da fantasia poética e, desse modo, dialoga com as teorias de Baudelaire no processo da sua criação poética, em sua contribuição com os postulados sobre a fantasia.

 

A fantasia decompõe (décompose) toda criação; segundo leis que provêm do mais profundo interior da alma, recolhe e articula as partes (daí resultantes) e cria um mundo novo. Na deformação reina a força do espírito, cujo produto possui uma condição mais elevada do que é o deformado. (FRIEDRICH, 1991, p. 55)

 

Usando a técnica da decomposição e deformação do todo para isolar-lhe a parte (o corpo pelas mãos), a poeta trabalha também com o processo de abstração, termo utilizado por Baudelaire para definir a essência da fantasia. O teórico define a fantasia como a capacidade de movimentos abstratos do espírito livre, isto é, “o devaneio independente de todo o objeto” (FRIEDRICH, 1991, p. 57).

Ao analisarmos esse poema de Graça Pires, constatamos que seus instantes poéticos configuram a metáfora do processo criativo, processo de transformação, elevação da imagem observada, evocação e imaginação, desde o enquadramento na palavra poética, levando o leitor a interagir e quase que o obrigando a comungar o seu olhar das coisas com o olhar do eu lírico. Isso expõe uma cumplicidade mútua a partir do uso da linguagem criativa.

Em um movimento vertical e crescente dessas “mãos frenéticas”, o eu lírico faz uso de figuras de linguagem como a metáfora, a comparação e a hipérbole: “...As tuas mãos vogando/ como barcos...” são versos que se constroem a partir do recurso da metáfora comparativa ou comparação metafórica; “Pássaros incendiados a sobrevoar-me/ o sangue” constroem e imprimem impacto, vigor imagético e “As tuas mãos próximas de tocar a lua” acende a imagem hiperbólica que exprime o anseio etéreo do eu lírico, a conexão com o inatingível, o escapismo. Todos os sentidos, desse modo, constroem-se no âmbito da linguagem portadora de noções, representações, simbolismos, imagens, como podemos verificar no excerto a seguir:


O navio não voltou – gritaram as mulheres.
O arpão dos gemidos sangrando suas bocas.
Foi o vento – disseram os homens
e desenharam na areia o madeiro e a vela.
Foi o escuro – falaram os meninos.
Tinham sonhado toda a noite com piratas.
E o velho sábio, antigo como as tempestades, 
que sabia de cor a braveza dos marinheiros, 
há muito que avisara:
ninguém se salva de um naufrágio
com a bagagem às costas.

(PIRES, 2015, p. 24, grifos da autora)



Do livro Uma claridade que cega (2015), este poema apresenta uma noção recorrente na obra de Graça Pires: o vigor imagético construído a partir de imagens que buscam, nos elementos da paisagem natural, recompor internamente os estados de quem é representado nos versos. Pode se assegurar, assim, que o espaço interno é projetado no espaço externo, como mencionado no tocante à sua poética. Interioridade e exterioridade intercambiam-se para construir e estabelecer a conexão do ser com o não ser: o homem e a natureza. No verso, O navio não voltou – gritaram as mulheres” a ausência da embarcação provoca uma reação de desespero: mulheres, homens e meninos se veem apartados daquilo que é vital, a própria existência (navio). A linguagem, por conseguinte, passa a ser reveladora de ausências, distanciamentos fantasiados, decomposições, deformações, tal como analisa Friedrich a partir da obra de Baudelaire:

 

A mais importante contribuição de Baudelaire ao nascimento da lírica e da arte modernas situa-se, por certo, em suas discussões sobre a fantasia. Esta é, para ele, que a equipara aliás ao sonho, à capacidade criativa por excelência, “a rainha das capacidades humanas”. (FRIEDRICH, 1991, p. 55)

 

Poderíamos afirmar que a decomposição de determinada realidade é a base da fantasia. O gemido do arpão sangrando as bocas das mulheres, dos homens e dos meninos ante a ausência daquilo que é iminentemente rotineiro e se ausenta em determinado dia é o simulacro da fantasia de que fala Baudelaire. No poema analisado, a decomposição, o esfacelamento do que um dia se mostrou perene (a presença do navio) culmina com uma reflexão: “...ninguém se salva/ de um naufrágio com a bagagem às costas”. Identifica-se, portanto, um movimento ondular interno: em determinado momento, se tem; depois, já não mais. O navio que foi, já não é mais; ora presença ora ausência. uma inconstância do que se pressupõe constante, porque a bagagem nas costas impele à inevitabilidade das intempéries.

É pertinente observar, entretanto, que a decomposição do elemento real de que fala Baudelaire deve ser entendida no sentido positivo, visto que nela reside “a força do espírito, cujo produto possui uma condição mais elevada do que o deformado” (FRIEDRICH, 1991, p. 55). Não se trata, pois, de eleger a deformação em si como o objeto de maior relevância, e sim de dar ênfase ao espírito deformador, diríamos. O mundo novo construído no ato de deformar não representa “um mundo ordenado realisticamente. Será uma imagem irreal que não se deixará controlar pelas ordenações normais e reais” (FRIEDRICH, 1991, p. 56).

A decomposição do real em Graça Pires se vale recorrentemente de imagens externas para recompor as imagens internas, seja nos poemas em que o eu se revela na forma, seja nos poemas em que outros eus são revelados pela voz narrativa. Na primeira ou na terceira pessoa, imageticamente, a poeta portuguesa esquadrinha por dentro para recompor do lado de fora:


Começou o ritmo da folhagem
ao sabor da seiva,
As árvores escolhem o tom de verde
que o sol prefere dispersar nos troncos.
É primavera.
As aves regressam em bandos
e os amantes ajustam a paixão
nas grutas do corpo.
As crianças trazem no olhar
uma cintilação quase divina
e os descrentes procuram um deus
no claustro da morte
Os poetas ofertam-nos as primícias
com os frutos a gretarem-lhes a boca.

(PIRES, 2015, p. 36)


O excerto mostra a tessitura paisagística que resulta dos frutos a gretarem a boca dos poetas, que diluem o real e o reconstroem no próprio imaginário ao dialogar com o imaginário do terceiro ser a compor a instância da poesia: o leitor. A noção de diluição revela-se no instante em que “As árvores escolhem o tom de verde/ Que o sol prefere dispersar nos troncos”, quando é primavera. A dispersão do verde expõe a dispersão da vida, o movimento existencial em que nada é fixo e inerte. O que é unidade se faz muitos: as árvores que escolhem o verde, as aves que regressam em bandos, os amantes que ajustam a paixão nas grutas do corpo, as crianças com olhar cintilante, os descrentes à procura de um deus, os poetas que  ofertam-nos os seus frutos (a poesia).

Observa-se, ainda, uma justaposição de elementos que tece, verso a verso, a técnica da paisagem observada, porque, para a poeta, o mundo não se divide, nem se define em gêneros, não se rende à categorização. Ao contrário, assume-se metamórfico: tudo é movimento o tempo todo; nada é fixo e imutável. Mesmo o real se transfigura na tessitura da poesia (CANTINHO, s/d2).

Em seu livro, Uma vara de medir o sol (2018), Graça Pires elege um elemento primordial da vida, o sol, como a metáfora-título. Assim, as estrelas mais importantes do universo passam a ser Alfa e Ômega, justapondo a dicotomia homem e natureza. Não se trata de uma sobreposição destituída de sentidos, ao contrário, ao se colocar lado a lado um e outro é possível perceber quão conectados estão: o homem é a natureza, ao mesmo tempo que a natureza é parte do homem, ainda que, por vezes, essa conexão se rompa. Importa, contudo, que exista uma simbiose irrevogável entre os dois:


Os rituais da infância não nos deixam esquecer:
Era verde a sombra das árvores  no pátio da escola. 
Eram verdes os trigais pejados de papoilas.
Eram verdes os pássaros que traziam um prado colado 
ao voo rasante, nas tardes de verão.
E os rios tão verdes. Tão verdes as águas.
Tão verdes os peixes. 
Tão verdes os barcos invisíveis. 
Tão verdes as mãos 
com que agarrávamos o tempo.

(PIRES, 2018, p. 27)


Pode se principiar uma análise deste poema a partir da noção de que o corpo é um invólucro de memórias e que o eu lírico, recorrentemente, revive no poema a sua infância, como se fizesse desse momento da existência um lugar paradisíaco para onde vai em busca de refúgio: “Os rituais da infância não nos deixam esquecer”. Dessa maneira, o fato vivido não é mais o mesmo; no entanto, ao ser revivido, a vida de outrora é recriada. O retorno à infância pela rememoração é a maneira como o eu lírico volta ao passado, cujos sentimentos são despertados, principalmente, pela referência ao verde: sombra das árvores, trigais, pássaros, rios, águas, peixes, barcos, mãos. O verde que remete à multiplicidade simbólica, à esperança que é retomada pela linguagem poética.


2 CANTINHO, Maria João. Desta embarcação possessa que é poesia e chamamento. Escritos  avulsos da pesquisadora sobre a obra da poeta Graça Pires. Texto inédito, cedido pela própria autora.


Destarte, na instância da linguagem, a reiteração das formas verbais “Era” (verso 2) e “Eram” (versos 3 e 4) abre uma fenda temporal pretérita e é lá, no passado da infância, que o eu poético encontra a sua natureza verde: tudo era verde, porque não prenunciava o porvir. Com o amadurecimento vieram as desilusões e o flagelo do tempo. Referir-se ao verde é, ao mesmo tempo, uma forma de afirmar a ingenuidade pueril, a inexperiência, as boas lembranças, como também a perspectiva de que a vida pode ser melhor se revivida no espaço imagético do poema.

A despeito da cor verde que irrestritamente toma conta da memória do eu que fala no poema – “Tão verdes as mãos com que agarrávamos o tempo” – (grifo nosso), podemos nos servir do fato de que as cores só se realizam aos olhos humanos mediante a luz que, por sua vez, quando natural, emana da radiação solar: o sol está no centro do livro Uma vara de medir o sol (2018). De acordo com o Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos, costumes, gostos, formas, figuras, cores, números (2012), a vara simboliza o poder, a autoridade, e se alia à metáfora da luz, calor e vida: o próprio sol que viabiliza o verde como a instância da infância.

Identifica-se, desse modo, um silêncio no poema, que não é o calar dos acontecimentos rememorados, mas sim o da contemplação que faz avivar a infância verde, tempo de sol (avivamento) e tempo do próprio tempo, quando não se parecia que a roda da vida giraria e acabaria ancorando-se noutras paragens, as do futuro, momento em que os “barcos invisíveis” não passariam disso: um evento que existiria apenas mnemonicamente.

No poema ora analisado constata-se, também, a maturação que resulta de uma depuração da linguagem simples. Dessa simplicidade resulta a imagem cristalina tal qual as águas verdes. Trata-se de um exercício de escrita em busca da condensação absoluta da linguagem com que a poesia portuguesa contemporânea se alimenta (LOURENÇO apud ROSA, 2018).

A imagem cristalina é construída também na técnica descritiva, como nas passagens: “verdes a sombra das árvores”, “verdes os trigais pejados de papoilas”, “verdes os pássaros”, “voo rasante”, “os rios tão verdes”, “tão verdes os peixes”, “tão verdes os barcos invisíveis”, “tão verdes as mãos”. O verde mostrado reiteradamente não poderia deixar de culminar com o termo intensificador “tão” (versos 6, 7 e 8), para categorizar o avivamento da memória do eu lírico. Isso reforça a solidão e o silêncio por viver em um tempo que outrora escapara das “mãos com que agarrávamos o tempo”. Contudo, conforme debate a pesquisadora Gisela Rosa, a solidão não adquire o sentido literal da palavra na obra de Graça Pires.

 

Apesar da solidão e do silêncio sempre presentes na escrita da autora, esta nunca está só, no sentido literal da palavra. Acompanham-na todas as nuances do mundo vivido, por viver e, ainda, o dos leitores presentes neste círculo próximo da palavra poética que ao leitor é oferecido, uma espécie de “encarnação sensível do Infinito no finito”, uma das descrições do acto poético como nos refere Eduardo Lourenço. (ROSA, 2018, p. 16)

 

Destarte, a solidão não existe literalmente, porque ao revisitar o passado, a autora encontra nele os eventos de que necessita para não se sentir solitária no sentido atormentador. A poeta transita do evento concreto/real que expõe o quotidiano e alcança algo de utópico, diríamos, à medida que faz a realidade se transmutar em imaginário, em lembranças.

Podemos formular, ainda, que existe um jogo de oposição no interior do mesmo substantivo: solidão. Se a solidão existe, é para não a sentir que se busca abrigo na memória. Logo, ela deixa de existir. Paradoxalmente, existe e inexiste ao mesmo tempo. Há um movimento de sentidos contrários, uma construção semântica a partir da antítese solidão / não solidão, do silenciar e rememorar, aspectos nitidamente visíveis em sua obra. Há uma mágica poética emanando-se em A vara de medir o sol. Nesse sentido:

 

A magia poética do livro “Uma Vara de Medir o Sol” é produzida com a matéria-prima do silêncio e das lembranças. Em sua décima terceira obra a poetisa portuguesa compõe seus versos entre as fronteiras da vida natural e da elaboração cultural. Nela o espaço da saída é também o da volta, que por sua vez é a instância da infância; em seus ritos é impossível perder o fio da memória. (SANTANA, 2013, p. 1)

 

Não se trata de uma memória puramente saudosista, mas de um relembrar contínuo que busca alento para as vicissitudes dos fatos inscritos no presente. Se o agora não é o melhor porto em que se ancorar, o antes representa o ancoradouro seguro. E esse antes é recuperado por um processo mnemônico.

Outro aspecto relevante no poema de Graça Pires é o animismo, ou seja, a poeta recorre à natureza como fonte de elementos com os quais constrói a simbologia poética. Contudo, tal como ocorre em outro poeta português com o qual dialoga, Ramos Rosa, o animismo em Graça Pires não é mera alegoria para retomar o passado saudosista. A construção simbólica na obra piresiana abre muitas possibilidades e sentidos diversos (GUIMARÃES, 2018), que discutiremos a seguir.

Na trilha da simbologia piresiana, Santana (2013) formula que existe uma expectativa da iminência de que o leitor está à beira de um despenhadeiro no fundo do qual se encontram aflições primitivas. Essas aflições, entretanto, acendem luzes

sobre o passado e, ao mesmo tempo, uma claridade que vislumbra o futuro. Pode se dizer que reside um campo abundante para a lírica moderna a respeito da qual fala Adorno, ao identificar uma idiossincrasia do pulsar da lírica ante as coisas.

 

A idiossincrasia do espírito lírico diante do predomínio das coisas é uma forma de reação à reificação do mundo, ao domínio da mercadoria sobre o homem, que desde o início da era moderna se estendeu e, desde a época da Revolução Industrial, se alargou como poder dominante da vida. (ADORNO, 2003, p. 44) 

Os postulados de Adorno (2003) apontam para uma reação da lírica moderna que se torna vizinha de uma forma de protesto e negação do mundo e das coisas a partir de uma poesia que dialoga com a utopia do mundo, onde tudo seria de outra forma: um mundo mais humanizado. Entretanto,

 

[o] conteúdo de uma poesia não é, com efeito, apenas a expressão de afetos e experiências pessoais. Estes só alcançam a arte se conseguirem participar do universal, graças à sua forma estética específica. Não é preciso que a mensagem de uma poesia lírica seja uma realidade que todos percebam imediatamente em si mesmos. [...] O que eleva a poesia lírica ao universal é a imersão numa realidade individualizada. [...] A figuração lírica busca atingir o universal por meio de uma individualização implacável. (ADORNO, 2003, p. 47)

 

Decididamente, a noção do que é universal e coletivo perpassa o sentido do que é individual: a experiência individualizada é de domínio vivencial de quem a vive apenas. Mas, a partir do instante em que outros indivíduos partilham de experiências idênticas ou semelhantes, o universal e o coletivo se fazem do que é individual. A experiência lírica, de acordo com Adorno (2003), individualiza o que é universal e ou, ao mesmo tempo, universaliza o que é individual.

Dessa forma, estabelece-se um vínculo entre o mundo poético e o universo da realidade, entre as instâncias da estética e da história, levando-nos a compreender que a obra poética, embora não seja resultado de um delírio, não seja uma elucubração, transcende o real e se realiza na transfiguração da realidade.

A realidade no poema, assim, torna-se uma segunda realidade, considerando- se o fato de que o objeto de que trata não é mais, pura e simplesmente, aquilo que está sendo retratado. Cada elemento da instância semântica do poema não é mais o mesmo elemento que serviu de inspiração ao poeta. Isso equivale a dizer que, no poema, não existe realidade senão uma outra que existe apenas no domínio do poeta.                                                    


O viajante ajoelhou-se sobre a terra
e cantou e cantando rezou.
Carregava nos ombros o afluente de um rio
para o largar no longo chão das lavouras.
O pão ázimo lhe sufocava a fome.
A chuva lhe aquecia a sede.
Seu coração emudecia quando um denso nevoeiro
(quase lágrimas) lhe gravava na boca
o clamor dos glaciares desmoronados.


(PIRES, 2018, p. 40)


 Ainda que a realidade reproduzida no poema retrate um cotidiano reconhecidamente vivenciado pelo homem que se vê aprisionado por Cronos e pelas garras do tempo das quais não pode se desvencilhar, tampouco se pode ver livre do peso do tempo sobre seu ombro. No excerto anterior, o real retratado é do domínio do poeta, adquirindo contornos de imaginário, porque a linguagem, ao metaforizar o fato, o reconstrói de outra forma, redimensionando seus significados. Carregar nos ombros o afluente de um rio, por exemplo, tem, na metáfora hiperbólica, a magia da linguagem que reconfigura o fato objetivo e dá-lhe status de subjetivo e novo.
Neste poema de Graça Pires, a experiência individual do sujeito que se ajoelha sobre a terra (homem/natureza), apesar de ser obtida a partir de uma vivência individual, revela uma experiência universal. A linguagem utilizada é a responsável por essa transmutação: o viajante não é identificado pelo nome, sendo tão-somente nomeado como “o” viajante. Embora seja utilizado o artigo definido diante de todos os substantivos presentes no poema – “a terra”, “o afluente”, “o pão”, “a chuva”, “a sede”, “o clamor” – não existem elementos que concretizem uma experiência individual por parte do eu lírico.

Isso se deve ao fato de que não é propriamente de interesse do sujeito lírico particularizar tais experiências que remetem à relação homem/natureza, podendo ser elas consideradas coletivas e universais, visto que se trata da representação de uma comunhão entre o eu que enuncia e o ambiente que o cerca. Nele, a dor de um é a dor de todos, trata-se de uma experiência de partilha por parte da poeta.

Dessa forma, os glaciares desmoronados não são uma metáfora que retrata uma particularidade, mas sim um recurso poético que emoldura a condição humana universal. A obra de Graça Pires não tematiza, portanto, apenas as suas memórias: ela também aborda temas sobre as vivências de terceiros.

Em Uma vara de medir o sol (2018), a autora elege a estrela que está no centro do sistema solar e a coloca como um ponto nevrálgico de sua poesia: o sol é o tempo que envolve a vida e a conduz para o fim. A vara com que se mede o sol pode ser interpretada como a própria vida inserida no tempo. Ela se prende à inclinação da estrela e vai, paralelamente, das sombras às luzes, sendo levada ao destino conforme o tempo determina.


De pé, demoradamente invocando 
o grito do destino, somos a sombra 
de uma vara, presa à inclinação do sol, 
que define a vertigem que nos derruba
e que nos ergue. 
(PIRES, 2018, p. 37)

Nesses versos, a poeta se inclina à inevitabilidade do tempo marcado pelo movimento solar e se reconhece impotente porque presa simultaneamente à sombra e à luz (metáforas das intempéries, das condicionantes do existir). Ao prefaciar a 1ª edição de 2018 de Uma vara de medir o sol a convite de Graça Pires, Gisela Gracias Ramos Rosa disse que se sentiu desafiada e feliz pelo privilégio de ter que tecer ponderações acerca do que chamou de “a intensa claridade que a autora nos oferece” (ROSA, 2018, p. 11).

A claridade de que fala Rosa respalda-se na metáfora do tempo nitidamente posto sob o caminhar do sujeito, conduzindo-o, irrevogavelmente, a um destino cujo epílogo é a morte, a finitude das coisas e, concomitantemente, o sentido da vida. Viver é ter a certeza da morte; morrer é a imposição da saudação da vida antes do fim inevitável. A vara, metáfora da vida “presa à inclinação do sol”, nutre-se da luz, que por sua vez sucumbe às sombras do incontrolável movimento solar e, na roda do existir, é incapaz de controlar as coisas.


Queria prender no cabelo
uma haste de sol ou um pássaro,
mas ninguém retirou as trepadeiras secas 
para que a hora de verão retocasse 
a cal dos muros sulcados pelas chuvas.
Ninguém indagou o brilho deslumbrado 
do olhar quando o golpe da noite 
desafiava o vulto dos corpos.
Apenas o azul silencioso dos cumes
se abrigou no regaço onde as meninas 
escondem o abraço das mães
para que o mel regresse às colmeias silvestres.
 
(PIRES, 2018, p. 24)


           Na instância da linguagem, o emprego da forma verbal no pretérito imperfeito do modo indicativo (queria), no primeiro verso, antecipa a consciência de que não é possível ter controle sobre as coisas, porque à vara (vida) de medir o sol (tempo) não foi dado o poder de qualquer controle sobre si mesma. Por essa razão, o poema põe-se como um grito desesperado ante a tempestade do existir: “prender no cabelo/ uma haste de sol ou um pássaro” está no âmbito da intenção, não é um fato. A realidade factual é uma antítese da metáfora de pássaro e de haste de sol (liberdade, escolha). A existência é tempestuosa, marcada pelo incontrolável. “As trepadeiras secas” e os “muros sulcados pelas chuvas” são a efetivação de uma sentença: o tempo tudo devora; nada é perene no abraço temporal. “O golpe da noite” é incisivo e permite apenas à memória o abraço das mães: a infância para a qual não se pode mais retornar.

Neste poema, a construção imagética é impactante, repleta de simbologias representativas do que o sol (tempo) é capaz de fazer com a vida (vara). A luz é certa, mas “o golpe da noite” é imperativo. Essa ideia é enfatizada pelo emprego do pronome indefinido “Ninguém” (versos 3 e 6). Ninguém foi capaz de retirar as trepadeiras secas para que o verão retocasse a cal dos muros; ninguém percebeu o brilho do olhar diante do golpe da noite. Intensifica-se a negação, a desconstrução do mel cujo regresso às colmeias é apenas um desejo, pois se sabe que o sol tem mais poder que a vara de o medir: o tempo impõe-se sobre a vida.

Pode se dizer que existe, no poema, um profundo lamento pelo que se perdeu no tempo e que não pode mais ser recuperado. Viver é certo, mas perder a vida é a certeza mais angustiante: trepadeiras secas, muros sulcados, golpe da noite, vulto dos corpos... Tudo que resta é o azul silencioso dos cumes, ou seja, a memória da infância, o desejo de que “o mel regresse às colmeias silvestres”.

A linguagem em Graça Pires é muitas vezes inquieta, provocando angústia e dor. As escolhas lexicais compõem a tessitura do lamento – “trepadeiras secas”, “muros sulcados”, “golpes da noite”, “vulto dos corpos” e “azul silencioso” – e juntam- se para construir o campo semântico da dor, das perdas evocadas pela memória.

De acordo com Rosa (2018), Uma vara de medir o sol (2018) é uma obra poética sobre o lugar da consciência, sobre a dinâmica da criação poética. Nessa dinâmica, incluem-se questões ligadas ao meio ambiente, à natureza sob o jugo do homem, questões que aludem às relações de vínculo quase sempre conflituoso no tempo moderno. Para a pesquisadora, aos poetas não deveria ser dada a escolha de não tratar das temáticas ambientais, visto que a arte literária não pode se furtar à manifestação dessa consciência. Esses sentidos construídos na linguagem encontram ressonância em suas formulações a respeito do poema analisado:

 

A palavra mede aqui a inclinação do sol na terra e no humano, revelando a extensão da sombra, mas, essencialmente, o seu contraste. Reflexo de si e dos outros, a autora cria a partir de uma geografia de sentidos de um quotidiano assimilado e vertido na água do poema. (ROSA, 2018, p. 16)

As ponderações da autora legitimam a noção de que, se a vara (vida) mede o sol (tempo), a palavra mede “a inclinação do sol na terra e no humano, revelando a extensão da sombra” (ROSA, 2018, p. 16). A semântica da palavra sol remete à linguagem capaz de materializar na memória o passado, mas incapaz de torná-lo um fato objetivo. Há, desse modo, uma solidão e um silêncio azulado dos cumes, em que as meninas escondem o abraço das mães, desejando que ele retorne: “o mel regresse às colmeias silvestres”. Acrescentando à análise do poema, Gisela Rosa conclui: “[...] Graça Pires recorre a instrumentos antigos, move o seu arado, lavrando a terra poética com a transparência e a intensidade de autores como Daniel Faria, Herberto Helder ou Rilke” (ROSA, 2018, p. 16-17).

Desse modo, a pesquisadora Gisela Rosa (2018) evidencia a existência de uma instância dialógica entre a obra poética de Graça Pires e a produção dos autores citados. Segundo sua leitura, Herberto Helder e Graça Pires mostram um componente de alucinação, ainda que na obra do primeiro exista uma tênue conexão do mítico com o utópico, enquanto na da poeta portuguesa haja uma assimilação de um fluxo poético que parte do dado concreto quotidiano e se instala no utópico. De Helder, temos, por exemplo, a título de validação do que diz Rosa:

 


Um poema cresce inseguramente na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo. 
Fora, a esplêndida violência ou os bagos de uva 
de onde nascem 
as raízes minúsculas do sol. [...] 
(HELDER apud Rosa, 2018, p. 17) 

 

 

O componente de alucinação e utopia em Helder se entrevê na noção de que o poema emerge e tem origem na profundidade biológica do poeta, de onde nasce ainda sem palavra: é uma pulsação, uma espécie de libido da linguagem. O poeta

contrapõe, usando o tempo verbal no presente, as duas dimensões da existência: seu mundo físico-espiritual e o mundo físico-material (o interno e o externo). É da confusão da carne e dos canais do ser que nasce o poema, mas é da esplêndida violência da vida que nasce o sol.

Em Graça Pires, o caminho inverso é identificado por Rosa (2018): a poeta parte de sua própria exterioridade, de suas vivências para alcançar a instância do poema (sua interioridade). O fato vivido, por conseguinte, transforma-se em matéria- prima do poema:

 

Do lado distante das noites, 
a lua acesa sobre os muros ilumina o rosto 
daqueles que sempre entenderam o trajecto 
escolhido pelos pássaros e pelos rios
e pelos amigos que nunca voltaram.
Os dias foram cerzindo em seu olhar
o caminho esquecido das mais antigas dores, 
onde guardam agora o destino de suas mãos 
declinadas sobre as estacas.
(PIRES, 2018, p. 30)

 

Identifica-se uma dor, um vazio do eu lírico: a poesia está no olhar, nas relações com a vida geradora do poema. As experiências da infância revelam-se sob a luz da memória: o tempo verbal pretérito evidencia a noção de que o sujeito lírico se transporta para o passado e dali busca elementos para a construção do poema.

Quanto à aproximação de Graça Pires com o poeta Daniel Faria, Rosa (2018) identifica que:


Da leitura da obra de Graça Pires, reconheço na dinâmica pulsante da sua poesia um fluxo veloz, “um grito do destino” “que define a vertigem que nos derruba/ e que nos ergue” e esse movimento ou força em que progride o poema aproxima-a mais de Daniel Faria com os seus instrumentos de lavoura e a sua arte metafórica tão próxima do sol, como um “candeeiro branco” “que se ergue entre as mãos (Daniel Faria, em Poesia), onde julgo encontrar algumas afinidades entre escritas e vocações. Se não consegues mudar o teu mundo, imagina essa possibilidade com a tua solidão. (ROSA, 2018, p. 18) 

 

Ao aproximar Daniel Faria e Graça Pires, a pesquisadora identifica que ambos fazem da metáfora pulsante a seiva do construto poético:

 

Escrevo do lado mais invisível das imagens
Na parede de dentro da escrita e penso erguer 
à altura da visão o candeeiro 
branco da palavra com as mãos
como a paveia atrás do segador.
Vejo os pés descalços dos que correm.
E escrevo para os que morrem sem nunca terem provado o pão
Grito-lhes: imaginai o que nunca tivestes nas mãos
Correi. Como o segador seguindo o segador
Numa ceifa terrestre, tombando. Digo:
Imaginai
(Daniel Faria apud Rosa, 2018, p. 18)

    Em Daniel Faria, o âmago da palavra é o útero do poema. É na intimidade da linguagem que residem, em estado de latência, a poesia e o poema. O poeta trabalha o poema como quem trabalha a terra e ambos, terra e poema, tornam-se um só, à medida que os dois se produzem nas mãos do sujeito que os trabalha. Ao recuperar o passado na metáfora recorrente, tem-se a imagem flamejante e, por isso, a formulação da noção de que a obra de Graça Pires queima aquele que a toca, que com ela faz contato, que se torna conhecedor dela.

Nesta obra Uma vara de medir o sol (2018), a poeta portuguesa evidencia a ruptura do homem com sua origem, à medida que se identifica, nas relações com o espaço natural, um desequilíbrio responsável por subverter o paraíso. Essa subversão provoca uma cisão homem/espaço e uma destituição marcada pelo lamento, o murmúrio: o que era lugar de sacralização da existência passa a ser, agora, um problema. 


Antes do homem havia a terra: 
geografia mágica, sagrada que,
 na luz e na treva, explodiu
de espanto e guardou, milenarmente, 
os mistérios da vida e da morte.
Depois da terra veio o homem.
E o homem tornou-se um morador incauto 
e perdeu o paraíso onde agora os deuses, 
quando passam, desviam o olhar.
(PIRES, 2018, p. 46)
 


Ao perder o paraíso, seu lugar de origem, o homem expõe sua condição de criatura incapaz de salvaguardar o espaço natural original: a Terra. Assim fazendo, torna-se alvo do desprezo dos deuses: o paraíso original é deixado à mercê da indiferença da criatura humana.

Pode se dizer, então, que Graça Pires mostra-se inquieta ante essas questões de ruptura do humano com o natural e revela seu estado de consciência e

angústia em relação ao desmonte desses dois elementos: de um lado a decomposição do próprio homem que se tornou o “morador incauto” da Terra e, de outro, a Terra ignorada pelos deuses (BUCIOLI, 20123).

De acordo com Bucioli (2012), Graça Pires expõe sua angústia no tocante ao o universo em decomposição, à medida que o espaço original vem sendo destruído pela ação humana que ignora sua ancestralidade. E, ao ignorar isso, perde-se, pois não preservando, não se preserva também.

Uma vara de medir o sol (2018), portanto, é uma eternização do que se foi e, ao mesmo tempo, uma projeção do devir. Somos a terra ardente sobre a qual caminhamos, somos mocinhos e algozes aprisionados na trilha do destino e o tempo nos devora a cada passo: “O chão arde em nossos passos, vítimas/ e culpados do desvario dos caminhos” (PIRES apud Rosa, 2018, p. 20), tema igualmente presente no seguinte poema:



Regressei com a lentidão de quem vem de longe
do mar com pedras na boca para cuspir nos lugares 
onde o vento envolve a gruta das nascentes.
Só a palidez das minhas unhas denunciava
o sinal de alarme que me atravessava os pulsos 
mordidos por meus dentes 
quando a dupla sombra dos barcos 
me roubou, em golpes certeiros,
o trigo onde se afundaram as foices. 
(PIRES, 2018, p. 23)

 

A caminhada apresenta-se longa e o caminhar é ardente, os pés queimam, as foices sulcaram o existir. Nada foi brisa, exceto a infância recorrente no poema de Graça Pires. O eu lírico é incisivo: o algoz é ele mesmo, muito mais do que o herói da própria história. Trata-se de uma usurpação da vida pelas sombras dos barcos: “... a dupla sombra/ dos barcos me roubou, em golpes certeiros, / o trigo onde se afundaram as foices”. Logo, o trigo (fertilidade/alimento/prosperidade) deu lugar à dor (os golpes de foice). Tal lamento é uma canção constante no poema e na produção da poeta.

Pode se afirmar, a partir dos postulados e das análises apresentadas neste capítulo, que a obra poética de Graça Pires expõe suas próprias inquietações a respeito das relações do homem com a natureza e consigo mesmo. Isso fica evidente a partir da constatação de que o passado ressurge como a possibilidade de refúgio ou de recuperação do paraíso perdido.


3 BUCIOLI, Cleri Aparecida Biotto. Uma vara de medir o sol: canção de alerta ao homem. 2012. Escritos avulsos sobre a obra poética de Graça Pires. Texto inédito, cedido pela própria autora.


Ora, a atitude de se predispor a recuperar algo ou de reviver o passado recorrentemente confirma que o agora causa certo incômodo e, desse modo, faz-se necessário reconstruir na memória o tempo e o espaço das experiências prazerosas, da real felicidade.

Em um movimento de ir e vir no tempo, tal qual o da água presente em seus poemas, a escritora abre os interstícios da memória e se transporta para o passado, em uma ação incessante, conduzindo o leitor para esse lugar do fazer poético.

A água como elemento recorrente em sua poesia e, sobretudo, na construção da metáfora, será o foco da análise no capítulo dois. Nesse sentido, podemos postular que a metáfora da água na poesia de Graça Pires possui relação íntima com as experiências de quem reside diante do mar português, referência histórica de todo o construto poético que referenda o espaço idílico dos grandes nomes da literatura desse país.


2.    FORMULAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A ÁGUA E A METÁFORA DA ÁGUA NA POESIA DE GRAÇA PIRES

 

1        2.1   A metáfora da água e a lírica na poesia

Falar sobre a metáfora da água na poesia de Graça Pires requer que mobilizemos alguns conhecimentos de base teológica, filosófica e mítica. Faz-se produtivo também buscar entendimento acerca dos três tipos de consciência: mágica, histórica e relativista (OLIVEIRA, 2009).

Do ponto de vista teológico, formulações teóricas sobre a água compõem uma tessitura discursiva cuja linearidade recorre à gênese desse elemento. Nesse sentido, a água está na história primeva da Criação. O livro do “Gênesis” da Bíblia relata que no princípio o “Espírito de Deus pairava sobre as águas”. De acordo com Goedert (2004) sobre a simbologia da água na teologia, deve se levar em conta dois aspectos antagônicos: um é sinal de vida, a purificação, a presença de Deus. O outro é destruição, os perigos existentes na água pelos monstros que nela habitam, o caos, a ausência de Deus. “Na maioria das tradições religiosas a água é considerada a ‘prima matéria’, a matéria-prima da criação” (CAVALCANTI, 1999, p. 15).

O conhecimento filosófico, nas formulações de Bachelard (1997), postula que certas formas materializadas a partir dos devaneios poéticos representam a intimidade e os devaneios com os atos criadores. Nesse sentido, pode se dizer que a poesia é resultado do ato criador, fluida como a água, considerando-se a interpretação bachelardiana. Na obra poética de Graça Pires, a poesia emerge da visão e da vivência com a água a partir do instante contemplativo do eu lírico.

Sob a perspectiva do conhecimento mítico acerca da água, Cavalcanti (1999,

p. 17) assim se posiciona:

Considero que os mitos da água, assim como os mitos relacionados aos cinco elementos, constituem no seu conjunto uma discussão sobre as questões espirituais e, portanto, essenciais do ser: sua origem, desenvolvimento e finalidade última. Falar sobre a água, a terra, o fogo e o ar é falar da cosmogêsene, do princípio e do final da realidade da matéria, do ciclo cósmico de nascimento, morte e renascimento espiritual.

O conhecimento mítico, de acordo com Cavalcanti (1999), está na base das formulações que envolvem a essencialidade do ser: perpassa a origem, o desenvolvimento e a morte. Abarca o início, o meio e o fim. É alfa e ômega.

Todas essas interpretações convergem para as afirmações de Oliveira (2009) em seu estudo a respeito das consciências pré-histórica, histórica e pós-histórica. A fusão dessas três consciências é a busca irrevogável na lírica dos românticos, simbolistas e surrealistas. Assim, sobrepõem-se, no plano dos devaneios poéticos, os universos objetivo e subjetivo, da materialidade e da espiritualidade, da consciência e da inconsciência (OLIVEIRA, 2009). A poeta objeto deste estudo acessa, por meio da linguagem, a voz da comunidade ao colocar a atenção em tudo que se passa à sua volta e ressignificar seu mundo interior numa vivência íntima da realidade subjetiva, reinventando a realidade dentro da consciência pessoal.

A poesia de Graça Pires pode ser compreendida como uma viagem, um mergulho vivencial. Consoante suas palavras, sua poesia é a expressão intimista que traz luz à solidão, que debate o amor e os acontecimentos do dia a dia. Há uma simbiose do pessoal com o social em compromisso com a linguagem estética e o sentimento.

Sua linguagem é a voz da sua comunidade e, em consonância com a declaração de Octavio Paz em O arco e a lira (2012, p. 48) sobre o poema que “se alimenta da linguagem viva de uma comunidade, de seus mitos, seus sonhos e suas paixões, ou seja, de suas tendências mais secretas e poderosas”. A essência da linguagem na poesia de Graça Pires é o simbolismo obtido a partir metáfora da água, elemento que figura como uma espécie de força construtora de sua obra poética e, consoante Bachelard (1997, p. 6) 

é também um tipo de destino, não mais apenas o vão destino das imagens fugazes, o vão destino de um sonho que não se acaba, mas um destino essencial que metamorfoseia incessantemente a substância do ser. 

Desta forma, constatamos que, neste cenário aberto à paisagem natural voltada para o mar, o sujeito lírico se alimenta e potencializa a imaginação poética numa conexão tripla: poeta, natureza e comunidade.

Menano (2014, grifos do autor)4 corrobora essa ideia, ao sentencia

 

A voz da poesia de Graça Pires é do seu tempo, do seu lugar, é líquida, ocupa o seu espaço, por vezes um não-espaço (metafórico), preenchido por barcos e falésias. [Trata-se de] ‘uma linguagem líquida a inundar todas as margens’, a sua poesia será um ‘fantasma’, no sentido platônico, da realidade.

A água, componente da matéria mineral e da vida, está em toda parte e constitui o invólucro, ou seja, se contém em si mesma na condição de matéria nos estados sólido, líquido e gasoso. Por outro lado, embora fluida quando se liquefaz, pode ser contida, aprisionada, viver de modo estanque nos lagos, nas represas, nos poços. Assim, ao mesmo tempo em que é fluida e, por isso, representa a liberdade, é também sujeita ao aprisionamento.

De acordo com o Dicionário de Símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2012), a água, entre suas significações simbólicas, pode resumir-se a três temas dominantes: a) fonte de vida; b) meio de purificação e c) centro de regenerescência.

Ao considerarmos a água no estado líquido, fluida, sua representação metafórica relaciona-se diretamente com a lírica líquida da poesia de Graça Pires. A simbologia das imagens poéticas apresenta-se, a partir da expressão subjetiva do eu lírico, transversalmente pelas imagens da água em sua criação poética.

Na base da matéria e na base da vida, o termo água designa o elemento da natureza, destituído de todo e qualquer uso que dele se faça.

 

 

 

 


4 MENANO, António Augusto. Sobre a poesia de Graça Pires. Escritos avulsos do autor sobre a obra da poeta Graça Pires. Texto inédito, cedido pela própria autora.


Nesse sentido, esse elemento é um bem natural que viabiliza a vida. Por essa razão, é objeto de pensamento, devaneio, imaginação (REBOUÇAS, 2002). “A água é o símbolo das energias inconscientes, das virtudes informes da alma, das motivações secretas e desconhecidas” (CHEVALIER, GHEERBRANT, 2012, p. 21-22).

No sentido de sustentação da vida, encantadora de sentidos, pura, a água é essência, está na matéria humana (corpo) e no imaginário (mente); é o elemento que garante o estar na realidade concreta. Sem a água, a existência esgota-se e finda-se. Ela não é somente a fruição da vida. É a própria vida. É mais que um elemento carregado de simbologias: mais que sua significação, ela é, e sendo, carrega sentidos; transcende a si mesma. É matéria por vezes incontida, inquieta, avessa à prisão, evade-se livremente; outras vezes permanece contida, aprisionada. De uma e de outra forma, sua sentença maior é fluir, porque mesmo aprisionada, evapora e escapa para, depois, seguir outros cursos, infinitamente. No seu rastro por onde passa, a vida brota.

Gaston Bachelard em sua obra A água e os sonhos, ensaio sobre a imaginação da matéria (1997), postula que esse elemento é inconstante: 

As “imagens” de que a água é o pretexto ou a matéria não têm nem a constância nem a solidez das imagens fornecidas pela terra, pelos cristais, pelos metais e pelas gemas. Não têm a vida vigorosa das imagens do fogo. As águas não constroem “mentiras verdadeiras”. É necessária uma alma muito perturbada para realmente se deixar enganar pelas imagens do rio. (BACHELARD, 1997, p. 21)

 

As interpretações bachelardianas da água tomam por referência os elementos terra e fogo, cristais, metais e gemas. Ao citá-los, o teórico opõe a sua materialidade constante, sólida, o vigor flamejante à fluidez da matéria líquida da água. Por ser fluido, esse elemento é arredio, poucas vezes se permite estancar. A água evoca e, ao evocar, acessa a memória, produz e reproduz imagens, mobiliza a imaginação, faz erguerem-se fenômenos das profundezas de sua natureza fluida (devaneios).

Desta forma, constatamos que as imagens fluidas fornecidas pelas águas nunca são as mesmas: dentro de instantes se formam novas imagens num processo infinito de criação que se renova no imaginário. 

Os fenômenos da água iluminada por um sol de primavera proporcionam assim metáforas comuns, fáceis, abundantes, que sustentam uma poesia subalterna. Os poetas secundários abusam delas. Poderíamos acumular sem dificuldade versos em que jovens ondinas brincam, sem fim, com imagens muito velhas. Tais imagens, ainda que naturais, não nos cativam. Não despertam em nós uma emoção profunda, como o fazem certas imagens, embora igualmente comuns, do fogo e da terra. Como são fugidias, transmitem apenas uma impressão fugidia. Uma olhada para o céu ensolarado entrega-nos às certezas da luz; uma decisão íntima, uma vontade súbita devolve-nos às vontades da terra, à tarefa positiva de cavar e construir. Quase automaticamente, pela fatalidade da matéria grosseira, a vida terrestre reconquista o sonhador que dos reflexos da água toma apenas o pretexto para suas férias e seu sonho. (BACHELARD, 1997, p. 21-22)

 

No sentido proposto por Bachelard, o que a água possui de mais incomum em relação à terra e ao fogo é sua natureza fluida, fugidia, às vezes incontida, inquieta, ainda que essas características evoquem imagens pouco ou nem um pouco cativantes, uma vez que podem simbolizar lugares-comuns como o banho das ondinas.

Por outro lado, o autor discorre sobre uma certa consistência presente no elemento água, que nos conduz a uma segunda via de interpretação: 

Todavia, certas formas nascidas das águas têm mais atrativos, mais insistência, mais consistência: é que intervêm devaneios mais materiais e mais profundos, e nosso ser íntimo se envolve mais a fundo, e nossa imaginação sonha, mais de perto, com os atos criadores. (BACHELARD, 1997, p. 22) 

A partir da fluidez e consistência presentes na metáfora da água abordadas por Bachelard, podemos afirmar que a matriz condutora da obra poética de Graça Pires é formada por esse elemento. A representação do mar presente em suas poesias opera como essência de sua criação poética, sendo responsável pela força mítica, pictórica e espiritual de sua produção. O mar, assim, é o espaço que permite ao eu lírico encontrar inspiração nos devaneios materiais e profundos, promovendo o fulgor das imagens trazidas pela água para a composição da sua obra poética. Sua escrita capta o exterior para mostrar o interior revolto, revelando a sensibilidade de sua escrita.

Ainda sobre o construto poético, Bachelard (1997) alega que é importante, na elaboração das imagens, sua associação ao sentimento proporcionado em sua criação, o que o filósofo qualifica como devaneio, termo que será discutido adiante.

Consoante Octávio Paz em O arco e a lira (2012), ao considerar a água e suas representações no fazer poético, pode se inferir que são a simbologia de sua expressão:



Como uma água profunda brotando, como
o mar cobrindo a praia, as presenças voltam à superfície. 
Tudo se pode ver, tocar, apalpar. 
Ser e aparência são a mesma coisa.
Nada é escondido, tudo está presente, radiante, pleno de si. 
Maré do ser. E levado pela onda de ser, eu me aproximo, 
todo em seus peitos, roço a sua pele, 
mergulho nos nos meus olhos. O mundo desaparece. 
Não existe nada nem ninguém: as coisas e seus nomes 
e seus números e signos caem aos nossos pés.
(PAZ, 2012, p.159)

 

A imagem do mar em seu movimento constante evoca a experiência amorosa da esfera, da incerteza, da solidão que se abre à nossa frente. Ao mesmo tempo desinstala o abismo e resgata o ser para dar-lhe a certeza de que se morre enquanto se vive e se vive enquanto se morre (PAZ, 2012).

A extensa obra de Graça Pires possui características intimistas com um perfil poético representativo de uma memória sensorial, em uma espécie de atração umbilical por elementos da natureza, com preponderância ao mar, às águas, que podem ser relacionados ao amor, à solidão, à infância. É a vida e as coisas que vão lhe acontecendo e também aos outros, segundo suas próprias palavras.

A definição de memória sensorial é explicitada por Mourão Júnior e Faria (2015, p. 780-788) no excerto a seguir:

 

[...] a memória sensorial é aquela que nos permite reter as informações que chegam até nós através dos sentidos, podendo ser estímulos visuais, auditivos, gustativos, olfativos, táteis ou proprioceptivos.

 

Esse tipo de memória permite que registremos muitos estímulos que podem ser resgatados com a evocação de uma informação ou ser inscritos no pré- consciente. Assim, a ênfase dada aos sentidos e às sensações despertadas por eles tem relação sinestésica com os elementos e objetos.

Para ler a obra intimista de Graça Pires, faz-se mister que o leitor se silencie demoradamente, a fim de compreender a intrincada tessitura das metáforas que vagueiam pelos labirintos do realismo cotidiano.

Na trilha de sua poesia, os caminhos se constroem com metáforas que emanam das múltiplas vozes de que ela é portadora. Essas vozes portam os ventos, rios, barcos, marinheiros, a solidão, a existência, a infância. O olhar iluminado da poeta surpreende o banal, iluminando as vivências do cotidiano revividas com a capacidade e a sensibilidade imputadas por esse olhar inaugural:

 

Entre a inconsistência de um presente que desliza à superfície das coisas e o charme de um passado do qual nos separamos tragicamente, a lembrança e, em particular, as experiências privilegiadas da memória afetiva fornecem a matéria de uma verdadeira vida, libertada das contingências e agarrada na pureza de sua essência. (RAIMOND apud CAMARGO, 2009, p. 150)

 

Dessa maneira, por meio da metáfora, Raimond (apud Camargo) declara que há uma evocação da infância, espaço das vivências que povoa a memória, agora nostálgica. “O importante, para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência” (BENJAMIM, 1994, p. 37).

 

Na obra poética de Graça Pires, o rememorar traz de volta a menina que ficou e viveu no limite geográfico entre o continente e o mar, esses dois universos de partidas e chegadas. Sua poesia adquire, então, os contornos metafóricos de embarcação em cujo interior viaja a solidão.

No poema a seguir, que integra o livro intitulado Quando as estevas entraram no poema (2004), a busca pela infância é tratada como se fosse uma fase da vida semelhante a “um imenso arco-íris”, onde a presença das cores remete a um tempo alegre e cheio de beleza, depreendido da presença dos vocábulos barcos, mar, tempestade que remetem à metáfora da água.


De um instante para o outro, 
saíram barcos do meu peito,
à procura do mar da minha infância:
o sangue paterno agitando o coração. 
Acumulo imagens sobre imagens.
Entrecruzo palavras antigas.
Um imenso arco-íris humedece-me
o rosto de cores garridas.
Aves costeiras, nascem-me na boca, 
como se uma tempestade ardesse, 
imensa, em minha língua.
(PIRES, 2005, p. 28)

Nesses versos, a vastidão do mar não está apenas “lá fora”, suas águas não se abrem somente sob o sentido da visão. Antes, o mar é uma presença mnemônica, um acúmulo de signos oníricos que projetam luzes sobre a infância (“...mar da minha infância”) do eu lírico. Conforme explica Camargo (2009, p. 54),

 

o papel da recordação é resgatar as imagens conservadas na e pela memória através de percepções de variada espécie. Essas percepções podem ser, sobretudo, sensoriais – olfato, audição, tato e gustação – [...].

 

A imagem que se constrói no plano da memória e na tessitura da palavra é de forte carga lírica e exerce uma pressão de tempestade no peito, de onde saem os barcos que buscam o porto da infância. Toda essa rede de metáforas leva ao mar ao evocar a água como a simbologia do tempo e do espaço fluidos. A água traz porque um dia levou, e levou para um dia trazer, eis o que se pode chamar de movimento ondular da memória.

 

Porque o que de memória na recordação é um vazio: a força do acontecimento, que, não sendo senão força, sensações sem conceitos busca desde logo a que ligar-se, um abrigo para o seu vazio, a linguagem. O instante do acontecimento é por isso um instante cindido o irreparável da perda é o que se transfigura em beleza e assim sobreviverá na condição de perdido e presente. Só há relação com o que já se perdeu, só se perde aquilo com que houve relação: não é possível dissociar o acontecimento da memória dele, e esta da concretização de uma forma. (LOPES, 2003, p. 62)

 

A lírica de Graça Pires tem sua gênese na lírica dos grandes poetas para os quais a palavra sacraliza a existência, em um existir construído com devaneios e

forjado na chama flamejante dos sonhos. Em suas palavras, o mundo se põe sob as vestes do êxtase da fecundidade e os temas de sua escrita remetem à busca da infância perdida, à solidão e à exaltação da natureza com precedência às paisagens marítimas.

Nesse sentido, Graça Pires contempla o mar como Narciso o faz com o espelho d’água. Enquanto ele se enamora de sua própria imagem refletida, a poeta se encanta por sua infância. Para Narciso, a água representa o espelho diante do qual acontece a autocontemplação; para Graça Pires, a água representa o mergulho na memória de onde se extraem lembranças. De acordo com Bachelard (1997), a água serve para naturalizar a autoimagem, retomar a inocência e possibilitar a contemplação íntima.

Assim, o sujeito refaz, através de vestígios e impressões, a lembrança que, para Halbwachs (2013, p. 91), é “uma reconstrução do passado com a ajuda de dados tomados de empréstimo ao presente e preparados por outras reconstruções feitas em épocas anteriores”. Observa-se que, diante do espelho de águas calmas, Narciso revela-se ideal e perfeito. Por outro lado, Graça Pires diante do mar, cujas águas são, por natureza, mais agitadas, evoca um turbilhão de sentimentos e vivências. Na primeira situação, pode se dizer que a água irrompe como a metáfora do agora ideal e, na segunda, como o antes a ser revisitado como o lugar da felicidade.

A poesia de Graça Pires se liquefaz como a água: é livre, liberta e libertária. Livre e liberta porque se sabe incontida na forma assimétrica dos versos, libertária porque busca na vastidão da água o seu espaço, o sentido da vida. Ser e água são um só a um só tempo, como nos versos do poema transcrito do livro intitulado Quando as estevas entraram no poema (2004):

 

Era o tempo das colheitas. 
Coroada de silvas, uma mulher 
dançava, nua, no meio do trigo.
Tão líquida, a luz, contornava-lhe 
o olhar, num movimento lento, quase discreto, 
como se lhe pusesse, nos olhos, 
o improvisado vôo das estrelas. 
Nunca se soube o que aconteceu.
Mas, às vezes, de noite, 
ainda um rumor de solidão 
se confunde com o vento. 
(PIRES, 2005, p. 56)

 

As metáforas na base dos versos desse poema aludem à fluidez: a forma verbal “dançava”, o adjetivo “nua” e o substantivo “trigo” exprimem movimento, liberdade e vida, consecutivamente. A dança é a expressão da liberdade interior: só se dança quando há um fluir por dentro. A nudez é o desprendimento, só se despe o corpo quando a mente se despe de valores que aprisionam. O trigo é o símbolo da germinação: germinar é originar vida. No percurso do verso “dançava, nua, no meio do trigo”, a imagem é fluida, é movimento, é liberdade.

Essa noção se amplia para o sentido da vida que representa o corpo feminino: a mulher germina, como o trigal, a vida, e de seus frutos emerge a existência em profusão. Por esse motivo tudo se liquefaz, mas não no sentido de que se esvai ou se desmancha, e sim no de uma liquidez-liberdade. A vida é livre como a liquidez da água que evoca o incontido. Ainda sobre a fluidez, na obra Modernidade Líquida Bauman (2001, p. 8), corrobora sobre “os fluidos se movem facilmente. Eles “fluem”, “escorrem”, “esvaem-se”, “respingam”, “transbordam”, “vazam”, “inundam”, “borrifam”, “pingam”; são “filtrados”, “destilados”; [...]. A extraordinária mobilidade dos fluidos é o que os associa à idéia de “leveza”.

A liquidez está na poesia de Graça Pires não apenas nas metáforas da água, mas também nas escolhas, nas sensações. Enquanto no poema citado o motivo do quadro imagético flagra a mulher dançando nua no meio do trigal, líquida como a luz que contorna seu olhar, em outros momentos de sua produção a poeta fala de sua solidão, essa prisão feita de tormentas.

No poema a seguir, da obra A incidência da luz (2005), a metáfora da água, obtida por meio das escolhas vocabulares, é utilizada para elaborar o sentimento de de solidão do sujeito lírico:

 

Presa às marés, 
outras margens me circundam. 
Procuro os teus braços.
Esgota-se em cada dia, lentamente,
a viagem do tempo que expõe 
a rigorosa proa no vértice dos dias.
A densidade do sal partiu-me os remos
e entranhou-se-me nas veias como um tormento. 
Tenho um barco parado a obstruir-me os lábios 
colados à rugosidade dos mastros.
Procuro o teu rosto. 
(PIRES, 2005, p. 33)

A temática da água surge, mais uma vez, marcada pela presença dos vocábulos “marés”, “remos” e “barcos”, porém demarcando uma imagem de contraponto da liberdade: no plano do léxico, o adjetivo “presa”, o substantivo “margens” e a forma verbal “circundam”, no primeiro verso, inscrevem-se na semântica da solidão, do isolamento. A metáfora da fluidez, resgatada pela água, agora se mostra estanque, fechada, presa. O eu lírico, em tom confessional, abre-se para o horizonte fechado de si, para si e em si.

Deflagra-se uma tormenta interior, uma busca por algo que se perdeu: na metonímia dos braços e do rosto, o ser amado que não mais está presente. O tempo, tão fluido como “cada dia”, não se curva, não se submete à força da “proa” que tenta irromper “as marés”; a prisão é inexorável ante a súplica do eu lírico entre as “margens”: a solidão é irrevogável, a tormenta é certa.

A culminância da solidão do eu lírico é o silenciamento da sua voz, quando o sal lhe partiu os remos. Sem remos, sem rumo, sem norte, sem horizonte, somente a solidão obstrui tudo; os mastros não apontam o caminho, eles sinalizam a ausência entranhada nas veias. A voz que lamenta ainda procura, entretanto, o rosto, o sentido da vida.

Nesse poema a imagem criada é a de um ser que se encontra imobilizado, preso às marés e que, mesmo em tormentas, ainda procura o objeto de desejo. No primeiro verso, “Preso às marés outras margens me circundam”, o substantivo marés, que dá a ideia de movimento de subida e descida, metaforiza a vida em seus ápices e declínios: o sujeito lírico, mesmo preso às marés, se vê diante de uma força que o impele a movimentar-se. É a água que o prende e, ao mesmo tempo, o arremessa, pelo ímpeto das marés, para outra margem, uma imagem que pode ser compreendida como a prisão do próprio eu lírico, cativo devido às circunstâncias da vida que o conduzem à solidão. Simbolicamente, ocorre um movimento de transformação, de mudança de um estado para outro, posto que a água, em um novo movimento, o impulsiona e acende o desejo de mudança, da busca infindável que se renova, assim como a vida.

Bachelard (1997, p. 7) confirma nossa interpretação ao elucidar que a “água é realmente o elemento transitório. É a metamorfose ontológica essencial entre o fogo e a terra. O ser voltado à água é um ser de vertigem”, uma vez que, já em sua profundidade, o ser humano tem o destino semelhante ao da água que corre.


         
                          

2.2   A água como matéria-prima semântica da poesia

               

Ainda sobre a transitoriedade e o movimento da água, Raíssa Cavalcanti, em sua obra Mitos da água (1999), formula:

 

As águas do Mar, sempre em movimento, marcam simbolicamente o seu caráter de transitoriedade. As suas águas não são águas paradas, eternas como as águas do Oceano na sua qualidade de eternidade. As águas do mar estão sempre em ebulição, representando este estado dinâmico e transitório de todas as coisas da vida. O seu movimento representa sua qualidade de agente transitivo e mediador entre o não-formal e o formal, entre o céu e terra, entre os deuses e o homem, entre o self e o ego. O movimento é o melhor símbolo para a transformação, que é a sua característica principal. (CAVALCANTI, 1999, p. 43)

 

No sentido abordado por Cavalcanti, a água do mar representa o sagrado que transforma, o local de passagem de um lugar para outro. Trata-se de uma passagem que simboliza as transformações da própria existência. Por conseguinte, a emersão e a submersão nas águas são sinonímia do movimento de fazer morrer o velho homem para que ressurja em uma nova vida, purificando-se no processo. A passagem pelas águas do mar, dessa forma, representa a libertação do cativeiro: “Foi através do Mar, que se abriu ao meio, que Moisés levou o povo hebreu do Egito, do cativeiro, para a Terra Prometida, para a liberdade” (CAVALCANTI,1999, p. 42).

No poema a seguir, também retirado de A incidência da luz (2005), os versos remetem à recorrente temática da água. A metáfora da água está presente nas imagens construídas a partir desse elemento líquido, penetrando e fecundando a terra para que haja vida. Há, ainda, o intercâmbio entre a paisagem terrestre e a incursão da água que verte dos céus e entranha a terra, fazendo-a gestar.

            

Será transparente a paisagem, obsessivamente vegetal,
que encaminha as aves regressadas do norte? 
Nenhuma ânfora guarda o desencanto 
consentido pelas algas que se abandonam
à corrente e, de muito longe, 
vêm morrer nas praias à míngua de mar.
É-nos familiar o reverdecer dos campos
e o sussurro dos canaviais seduzindo as águas. 
Temos a boca invadida pela verticalidade das heras. 
Pelo som do vento adivinhamos o dano dos insectos 
ou a fértil colheita da azeitona em novembro, 
quando todas as árvores celebram 
nas entranhas da terra a lenta penetração das chuvas.
(PIRES, 2005, p. 43)

Verifica-se, no excerto, que a natureza compõe a imagem: do céu à terra e ao mar, três elementos que se intercambiam e erigem um corpo físico em que as partes se conectam, irrevogavelmente. A paisagem, obsessivamente vegetal, abre-se à contemplação da poeta: as algas, que se abandonam à corrente; as praias, à míngua do mar; o sussurro dos canaviais e as entranhas da terra penetrada pelas chuvas. Tudo se movimenta e caminha para o êxtase da natureza e do eu lírico, em sensações que se fundem.

O poema suscita a latência da memória em Graça Pires, que relembra os tempos vividos de frente para o mar em Portugal, extraindo de sua experiência contemplativa os construtos de sua poesia. Nota-se que a memória é o princípio balizador para se buscar o que é passado e afirmar que algo foi realidade.

Paz debate a noção de que entre o poeta e o objeto de sua contemplação existe uma relação simbiótica deflagrada no encontro com a natureza anímica e a alma do sujeito lírico:

Em sua introdução à Poética de Aristóteles, Garcia Bacca destaca com persistência que a concepção aristotélica da natureza é animada por um hilozoísmo mais ou menos oculto. Assim, o “lampejo” poético não brota do nada, nem o poeta o tira de si mesmo: ele é fruto do encontro entre essa natureza animada, dona de existência própria, e a alma do poeta. (PAZ, 2012, p. 167, grifos do autor)

 

O mesmo fenômeno simbiótico constata-se na união dos elementos terra e água, de acordo com Bachelard (1997, p. 115-116): 

Teremos a mesma impressão da união orgânica da terra e da água ao meditar esta página de Claudel: “Em abril, precedido pela floração profética do ramo da ameixeira, começa sobre toda a terra o trabalho da Água, acre serva do sol. Ela dissolve, mastiga, mistura, e quando a base está assim, preparada a vida parte, o mundo vegetal, por todas as suas raízes, recomeça a puxar o fundo universal. A água ácida dos primeiros meses torna-se pouco a pouco um espesso xarope, um trago de licor, um mel amargo carregado de poderes sexuais...” 

 

Na poesia de Graça Pires, a água desempenha o importante papel de transfiguradora da paisagem, seja incentivando o movimento migratório dos pássaros, a leveza das algas levadas pelas ondas, o reverdecer dos campos, os canaviais, o som do vento, até “a lenta penetração das chuvas” nas entranhas da terra. A água está associada ao feminino, ao sensual e maternal. Ela é fonte de fecundação da terra e de seus elementos, o que reforça a citação de Bachelard no sentido de ser a gênese da vida. 

Nota-se que o eu lírico se deixa entrever sutilmente no verso “Temos a boca invadida pela verticalidade das heras”, e a “boca”, atribuída a um sujeito plural oculto, subentendido na desinência da forma verbal “temos” (nós), metaforiza a experiência universal da qual todos compartilham. As heras podem ser interpretadas como “a paisagem excessivamente vegetal” e hirta, ereta, que se levanta na direção dos céus e inunda o espaço; assim como os canaviais, as oliveiras se nutrem de seiva no instante em que houve a conjunção da água com a terra e, desse fenômeno natural, a colheita se avoluma. É uma cena que, podemos dizer, é épica na sua significação, ou seja, designa aquilo que é grandioso: a metáfora da vida que demanda uma aventura prolongada do existir.

Para a pesquisadora Raíssa Cavalcanti, a superfície infinita do mar simboliza a vida com suas bonanças e intempéries e a 

chuva é concebida como a doação de um deus masculino, como o seu sêmen. Ela é vista em sua essência como mais ligada à polaridade masculina do que à feminina, embora em algumas culturas lhe atribuam uma origem ou qualidade mais feminina, uma natureza mais yin do que yang, pelo fato de a chuva se originar na Lua, que é feminina e é considerada o astro regente da fertilidade da terra. (CAVALCANTI, 1999, p. 138) 

Essa conexão, esse movimento da natureza saltam à expressão poética também neste poema que evidencia elementos da natureza como a lua, a névoa, o mar e as aves. Constata-se novamente a supremacia do elemento água que liquefaz os versos deste poema, por meio do arranjo lexical realizado por Graça Pires:



A lua abriu um sulco no telhado
e uma estranha névoa cobriu todas as casas.
As aves marinhas alteraram seu rumo.
Algumas mulheres atiraram-se ao mar 
e seguiram as embarcações
até se transformarem em gaivotas. 
Houve homens que enlouqueceram
Com o excesso de luar e acorrentaram 
os filhos com medo de os perderem.
Os vasos da varanda alagaram-se de vento 
e os gerânios vermelhos secaram.
As crianças esconderam-se
por trás dos espelhos para não verem 
o rosto fascinante da morte.
(PIRES, 2011, p. 52)


Nesse poema, a luz que incide sobre a imagem poética é acesa no âmbito da linguagem e, mais uma vez, no plano lexical são erigidas metáforas que convergem para a metáfora-base do poema: a água como o curso da vida, e não apenas como

o líquido que segue o leito entre margens e desagua no oceano. De acordo com Chevalier e Gheerbrant (2012, p. 592),

 

águas em movimento, o mar simboliza um estado transitório entre as possibilidades ainda informes, as realidades configuradas, uma situação de ambivalência, que é a de incerteza, de dúvida, de indecisão, e que pode se concluir bem ou mal.

 

Acrescentando à interpretação de Chevalier e Gheerbrant, Cavalcanti (1999, p. 148) assevera que “a luz é sempre considerada como uma intensa experiência religiosa, como uma epifania que produz a ruptura, modificando totalmente a vida do sujeito, porque lhe revela o mundo do espírito”. Para a autora, a luz simboliza a experiência mística transformadora do sujeito, à medida que o conecta com as dimensões espirituais da existência. Recordemo-nos que os versos iniciais do livro de Gênesis dão preeminência à luz como instância criadora, que permite o nascimento dos demais elementos da criação: a luz, a terra, os animais, os homens.
Os homens enlouquecem com o excesso de luz e os substantivos arrolados no fenômeno – luz, gaivotas, luar e correntes – podem aludir ao mito platônico da caverna: quando a luz se projeta na escuridão da existência representada pela casa em cujo telhado se abre um sulco para a entrada da luz, gaivotas (crianças) voam e, por isso, precisam ser acorrentadas.

Os versos do poema transcrito, em métrica livre, podem ser interpretados tal qual a fluidez da água: ambos se caracterizam por um movimento assimétrico. A poeta é remissiva: os verbos empregados no pretérito perfeito exprimem, em tom narrativo, a mobilização da memória. Os fatos estão no passado e vêm à luz na forma de natureza em movimento: a lua “abriu” um sulco no telhado e, mesmo assim, sua luz não impediu que a névoa cobrisse as casas. O vocábulo névoa no poema em questão traz a imagem de um instante sombrio que evoca certa tristeza no olhar, a falta de luz suficiente para que os olhos vejam algo que procura.

A metáfora final nos versos: “As crianças esconderam-se/ por trás dos espelhos para não verem/ o rosto fascinante da morte” alude, mais uma vez, ao mito de Narciso. Ironicamente, entretanto, o objeto (espelho) cuja função é refletir a imagem de quem se põe diante dele, no poema de Graça Pires.

A obra Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos (2007) está dividida em duas partes. A primeira, intitulada “11 cartas de Marta para Maria”, traz onze poemas em prosa que são cartas e a segunda, denominada “Sombras”, recupera mnemonicamente a infância. No poema escolhido para análise, constatamos o mergulho que o sujeito lírico faz no tempo primevo e, mesmo de forma intrínseca, verifica-se também o elemento água através do uso do vocábulo neblina, fenômeno concebido pela transformação da água em vapor.

Sem pressa, formulo a urgência 
de sombras inquietas  na neblina do olhar,
como se recuperasse um tempo 
tão decisivo como a infância.
Circunscrevo recordações sem voz 
e perdem-se-me, nas mãos, 
os gestos de menina. 
Persigo-lhe a imagem, 
ou a sombra dessa imagem.
Os meus olhos doendo nos dela.
O meu rosto medindo, no seu rosto, 
toda a intensidade da inocência. 
(PIRES, 2007, p. 25)

Sintaticamente, a construção do poema apresenta os termos predominantemente na ordem direta e a pontuação, rigorosamente gramatical, impede possíveis divagações interpretativas no plano formal, o que imprime certa objetividade às recordações. Entretanto, as metáforas estão expressas na escolha lexical do termo neblina como a imagem de uma cortina que se abre sob a luz fosca da névoa e por onde o eu lírico alcança o simulacro do tempo em que está aprisionada a infância que busca recuperar. Consoante Le Goff (1992), a memória está relacionada à capacidade de conservar determinadas informações que nos remetem a um conjunto de funções psíquicas, possibilitando o homem atualizar ou representar suas impressões ou informações passadas.

A neblina, entretanto, é a recordação fosca e perseguida na sua forma imagética. No instante final do poema, identificamos um eu empírico/lírico diante de um eu inscrito no pretérito: a mulher adulta encontra, mnemonicamente, a criança que foi: “Os meus olhos doendo nos dela./ O meu rosto medindo, no seu rosto,/ toda a intensidade da inocência”.

Segundo Arnold (1960, p. 187), 

A memória afetiva é a documentação da história da vida emotiva de cada pessoa, não registrando somente os fatos, mas as emoções conexas a ele. Quando um determinado fato é registrado na memória juntamente com sua carga emocional, que mesmo com o tempo venham a ser esquecidos os acontecimentos, as emoções que eles provocaram ou que estão de alguma maneira ligadas a eles, não serão esquecidas.

Observa-se que na poética de Graça Pires há a recorrência metafórica da água, como também da infância, que é uma temática evidenciada. Sob essa ótica, o tempo pretérito afigura-se, ainda que sob “a neblina do olhar”, como recordações sem voz,/ [qu]e perdem-se-me, nas mãos,/ os gestos de menina”, restando, então, as sombras da infância.

Sobre o tempo pretérito da infância, Bachelard (1988, p. 95) afirma que

 

Uma infância potencial habita em nós. Quando vamos reencontrá-la nos nossos devaneios, mais ainda que na sua realidade, nós a revivemos em suas possibilidades. Sonhamos tudo que ela poderia ter sido, sonhamos no limite da história e da lenda. Para atingir as lembranças de nossas solidões, idealizamos os mundos em que fomos criança solitária.

 

As lembranças do eu lírico alcançam suas solidões e, por meio da metáfora da água, ao buscar o passado, encontra-se a pureza perdida, as recordações ancoradas juntamente com o barco (suas vivências de menina). A água metaforiza o clarão de eternidade e a grandeza do mundo que já não mais está no presente, concretamente; está na memória. A neblina no olhar é a água em estado de vapor, que metaforiza a lembrança fugidia da infância: “Persigo-lhe a imagem / ou a sombra dessa imagem”.

Ainda de acordo com Bachelard (1998, p. 96-97):

 

Sonhamos enquanto nos lembramos. Lembramo-nos enquanto sonhamos. Nossas lembranças nos devolvem um rio singelo que reflete um céu apoiado nas colinas. Mas a colina recresce, a enseada do rio se alarga. O pequeno faz-se grande. O mundo do devaneio da infância é grande, maior que o mundo do oferecido ao devaneio de hoje. Do devaneio poético diante de um grande espetáculo do mundo ao devaneio da infância um comércio de grandeza. Assim, a infância está na origem das maiores paisagens. Nossas solidões de criança deram-nos as imensidades primitivas. 

A infância ressurge sob a forma de devaneios à medida que vão e vêm as imagens, acionadas pelo sentimento de perda, de recuperação, de nostalgia. Rememorar, entretanto, não é apenas imergir nas águas do passado; é, também, fazer emergir a solidão, porque a certeza de não mais poder reviver o passado causa dor e sentimento de perda.

Assim, as sombras perseguem os caminhos da poesia de Graça Pires, bem como a água, que representa a memória que se esvai, líquida, como se pode averiguar neste poema sem título do livro Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos (2007):


Sem possibilidade de fuga 
habito a luz intensa da treva
e guardo, no olhar, a líquida sombra, 
que sobrevive na memória dos barcos, 
quando a madrugada se rasga, devagar, 
na plenitude dos mastros. 
Eu não sei a cor dos navios, 
quando os marinheiros avistam as dunas 
e o cheiro quente da areia arde em suas bocas. 
Apenas sei a cor agressiva de meus olhos, 
condenados à errância das sombras.
(PIRES, 2007, p. 34)

Nesse poema, a noção de água aparece apenas uma vez. O adjetivo “líquida”, ao caracterizar o substantivo sombra, diz muito: tudo se esvai na memória fluida, porque nada mais é. O adjetivo se inscreve no tempo do que foi e não mais será, a não ser no plano das reminiscências. A liquefação das sombras em água é tema recorrente em Graça Pires, em um movimento que traz, mas também leva, como o mar, no vaivém de suas ondulações ininterruptas. Trata-se de um ciclo que se mantém na natureza e se repete na lembrança da poeta.

Além de líquida a sombra, líquido também é tudo que se inscreve no plano da abstração: sombra é substantivo abstrato e, nessa condição, é intangível, não possuindo a materialidade das coisas concretas. É tão líquida, metaforicamente, como a água. “A sombra é, de um lado, o que se opõe à luz; é, de outro lado, a própria imagem das coisas fugidias, irreais e mutantes” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2012, p. 842).

Outra interpretação que se soma à de Chevalier e Gheerbrant é a de Bachelard (1997) que, ao analisar a obra de Edgar Alan Poe, postula que a sombra vive enquanto presa às águas, que por sua vez absorvem a matéria ausente de luz. Essa ausência de luz faz incidir a sombra sobre o que não mais pode ser. Nesse sentido, em uma perspectiva junguiana, a sombra está relacionada àquilo que o sujeito recusa admitir ou reconhecer, e que, no entanto, sempre se impõe a ele. Na poesia de Graça Pires, as sombras remetem às impressões e incertezas do futuro.

Em seu artigo intitulado “A água e a vida” (1993), José Carlos Bruni, professor do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo), conta que, em uma das primeiras aulas de Filosofia a que assistiu, se inquietou quando o professor citou o

filósofo Tales de Mileto atribuindo-lhe a afirmação “Tudo é água”. No século VI a. C., esse filósofo grego cunhou a expressão que, por meio da tradição aristotélica, passaria a ser considerada a primeira frase filosófica do Ocidente que remete à ideia de uma filosofia da natureza. Nessa perspectiva, a água adquire um sentido amplo:

 

Sendo preocupação dos primeiros filósofos a determinação de uma substância material primordial, concebida como princípio, origem e matriz de todas as coisas. Para Tales, essa substância, a physis, seria a água, e todos os seres existentes seriam, essencialmente, produtos da transformação da água ou água transformada. (BRUNI, 1993, p. 53) 

Bruni, entretanto, não se deu por satisfeito com a explicação de Tales de Mileto sobre a água. De acordo com o professor, tal explanação contrariava a percepção comum flagrante que desmentia a afirmação filosófica: na natureza, por exemplo, os seres não são, visivelmente, resultados da transformação da água ou a água transformada. Embora contestasse esse conceito, o pesquisador não ignorou a frase, como se ela fosse um disparate qualquer e não merecedor de alguma atenção.

 

Ela sempre me perturbou, nunca deixei de pensar no desafio que ela significa para a compreensão, pela sua radical brevidade, pela brutal distância que estabelece com o senso comum, pelo mistério e beleza que a envolvem na sua pureza e no seu isolamento. “Tudo é água!” O que isso quer dizer? (BRUNI, 1993, p. 54) 

As reflexões de Bruni o levaram a ir buscar ajuda em outros filósofos, e foi em Hegel que ele encontrou uma explicação plausível: “só há um universal, o universal ser em si e para si, a intuição simples e sem fantasia, o pensamento de que apenas um é” (HEGEL, 1973, p. 15). Hegel entende que a afirmação filosófica “Tudo é água” quer dizer que tudo é um, contrariando a percepção comum da dispersão do pensamento e a percepção sensível que vê o mundo como uma multidão de coisas distintas e distantes de serem uma unidade (BRUNI, 1993).

Ainda na trilha do pensamento filosófico, Nietzsche, no entanto, entende que a água de Tales é apenas um recurso metafórico para comunicar o “pressentimento da solução última das coisas” e “o acanhamento dos graus inferiores do conhecimento” (NIETZSCHE, 1973, p. 18).

Contudo, ao inspecionarmos o nosso cotidiano, somos impelidos a entender que a água é tudo no dia a dia. Na manutenção da higiene pessoal, no preparo da terra, no plantio, no preparo dos alimentos. Ela é essencial à ordem doméstica, tanto na limpeza das nossas casas, quanto na lavagem das vestimentas, na prevenção a

doenças. Logo, é difícil concebê-la apenas como um ser unilateral ou como uma metáfora.

A água é tudo, de fato. Se presente em tudo, como quer a filosofia, a água está na poesia de Graça Pires mesmo quando o tema não é a água, e sua presença é patente no poema a ser interpretado na sequência, transcrito do livro Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos (2007).


À espera de um momento de luz retorno, 
sem hesitar, ao itinerário secreto do silêncio 
e cultivo a solidão multiplicando as sombras.
Peregrina de outras luas, resgato a música
que me restou da infância, como um sobressalto,
ou uma canção de embalar,
ou água fresca a ferir-me a boca, de tanta sede.

(PIRES, 2007, p. 36)

Nesses versos, o eu lírico se recolhe em si mesmo, percorrendo um itinerário em que a atitude é silenciar-se, sentir a solidão, outro tema recorrente na poesia de Graça Pires. Para a filosofia, o silêncio não pode ser confundido com a ausência de som, posto que, paradoxalmente, pode ser considerado como aquilo que existe de não humano no homem. E, como vimos anteriormente, a voz que fala no poema deflagra o ser solitário; resta-lhe, mais uma vez, refugiar-se na memória da infância, nas sombras, essa canção de embalar como água fresca, mas não sem ferir, pois a sede é voraz que chega a ferir.

Além disso, a água é o elemento que mata a sede, sua frescura fere: “água fresca a ferir-me a boca, / de tanta sede”. Observa-se aqui o antagonismo da água, ela é bem e mal. Ela fere porque sacia momentaneamente a sede, mas nunca a fará cessar para sempre. Metaforicamente, a água adquire um valor dúbio: deflagra a presença e a ausência. Presenças de vivências remotas, aprisionadas no tempo.

E neste devaneio de uma poesia que vai da superfície ao subterrâneo para buscar na zona profunda da água a existência humana e sua solidão, o eu lírico tem na memória o acalanto para o repouso, no seio materno. “As águas que são as nossas mães e que desejam tomar parte em sacrifícios vêm até nós seguindo os seus caminhos e nos distribuem o seu leite” (BACHELARD, 1998, p. 122).

A vertente lírica de Graça Pires, de acordo com Cantinho (s/d), dá-se sobretudo a partir de seu livro intitulado Conjugar Afectos, de 1997. na obra Quando as estevas entraram no poema, de 2005, a poeta exibe características oníricas e força telúrica que lhe conferem, muitas vezes, violência alegórica notável, como se pode notar nos versos a seguir:


Nas horas mais nocturnas, desenho um círculo 
e rastejo, através dele, até à sede.
Bichos sonâmbulos ferem-me a garganta.
Um barco alado irrompe da noite
e mutila a lucidez das mãos
Um grito único ressoa no meu peito.
Mas a planície enrosca-se-me na voz
e não me devolve o eco,

que só o coração ouve.

(PIRES, 2005, p. 15)

O onírico é percebido nas imagens criadas pelo eu lírico quanto às horas noturnas e o que nele é despertado: a sede. Há visões de bichos sonâmbulos, que estão lá inquietando o sujeito, ferindo-o na garganta. Falta-lhe a água, o elemento que simboliza a vida, aquela que saciedade aos anseios poéticos.

Ainda no devaneio onírico, percebem-se imagens surreais: “bichos sonâmbulos”, “um barco alado”, “a planície” que enrosca. Tais elementos exteriores imbricam-se às sensações interiores, são eles que ferem, mutilam, silenciam a garganta, as mãos, o peito, a voz e o coração, respectivamente.

Segundo Bachelard (1997), o sonho é a expressão surreal das forças da vida: ser e estar no mundo. No poema sob análise, é nas horas noturnas que o sujeito se move como um animal sonâmbulo movido pela “voz” que soa do fundo do coração.

Neste outro exemplo do mesmo livro, também há uma tônica especial das características recorrentes que remetem à água, como podemos constatar no verso “E ensandeceram à procura da fonte”:


Vieram de longe. A pé,
na hora do sol em sombra.
E ensandeceram à procura da fonte.
Agora vivem em casas de paredes 
grosseiras e vestem-se de luto, 
à espera da morte.
É irremediável a solidão, 
costumam murmurar baixinho. 
(PIRES, 2005, p. 40)

Encontra-se, em ambos os poemas, uma fúria onírica que é irrompida pelo desejo não alcançado. Esta violência devaneadora certamente tem origem em uma melancolia ou um desassossego evocado pela reminiscência, desvelando a inquietude do ser e sua solidão. A condição de errância do sujeito poético pode ser

constatada no verso “É irremediável a solidão”, o que parece ser uma antecipação da morte.

O terceiro verso faz referência à fonte que, do ponto de vista mítico, carrega um caráter sagrado em quase todas as culturas. De acordo com Cavalcanti (1999), a simbologia da fonte está estritamente ligada à água que regenera e purifica, um elemento de cura e símbolo da imortalidade. A escolha pelo verbo “vir” na terceira pessoa do plural do pretérito perfeito do indicativo revelaria a ação de regressar, de voltar ao lugar de origem. Desse modo, o caminhar em direção à fonte torna-se a busca pela energia divina, que pode renovar o ser tanto no aspecto do conhecimento quanto no da vida espiritual. Como imagem da esperança, a água que emana renova e, portanto, contém o alimento para imortalidade. A fonte, em nossa leitura, é tida como um lugar de emergência, pois é dela que jorra a água da vida.

A violência que irrompe pelo poema e abala nossas estruturas emocionais certamente tem origem em uma melancolia ou um desassossego evocado pela reminiscência. A constituição dessa lembrança, que é individual, representa a associação das memórias dos diferentes grupos aos quais o sujeito pertence.

Assim, “cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva”, uma vez que as “lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isso acontece porque jamais estamos sós” (HALBWACHS, 2013, p. 30).

Por fim, somos atingidos pelo sentimento de solidão e de sofrimento daqueles que vieram à fonte antes de nós e não encontraram água. Abalamo-nos emocionalmente quando água, que é a vida, se esvai, podendo ser revivida apenas no plano da memória.

Em Ortografia do olhar, publicado pela Editorial Éter em 1996, a poeta faz uma peregrinação pela memória. Por essa razão este livro é considerado como aquele no qual a solidão revivida nostalgicamente é uma estratégia de defesa e evocação mnemônica.

Nesse livro, Graça Pires se reaproxima do crepúsculo das paixões. O olhar poético volta-se, por exemplo, ao rio, ao verão, ao outono e ao mar: “...e vestem-se de luto, à espera da morte”. A morte é crepuscular, posto que representa o fim da vida.

No poema intitulado “O rio”, verifica-se novamente a inclusão de elementos provenientes da natureza que reverbera a água como fonte de inspiração em sua poética:


O rio

Onde estivermos, a madrugada
será íntima de veleiros
que transportam a voz do rio, 
contemporânea de todos os silêncios. 
Porém, não acredites na excessiva 
vertigem da corrente.
Tanto azul, só pode ser 
a cor dos pássaros marinhos, 
improvisando a foz, tão devagar,
que o mar se agita rente aos ventos. 
(PIRES, 1996, p. 15)

uma invocação ao leitor “Porém, não acredites na excessiva/ vertigem da corrente” que, do lado de da poesia, é convocado a ouvir, com a voz que fala no texto, a canção entoada pela intimidade que se descreve entre o rio (o ser de dentro da poeta) e a paisagem. As formas verbais permitem que postulemos as seguintes noções: “Onde estivermos”, no primeiro verso, exprime a possibilidade. Há uma hipótese de o espaço descrito habitar o possível futuro – “a madrugada/ será íntima de veleiros”. Mesmo o azul intenso da paisagem é hipotético: “só pode ser a cor dos pássaros marinhos”, logo, nada é, mas tudo pode ser, porque está sedimentado no plano psíquico do eu que fala, e esse eu está em “nós” – “Onde estivermos”, ou seja, a sensação individual se torna coletiva, como explanado anteriormente.

A voz do rio, presente nos silêncios, também ecoa na poesia, e só pode ser voz porque existe o silêncio. A certeza da voz reside no fato de que há uma não voz, a qual serve de referência para a outra, o ser e o não ser coexistem e se permitem existir, e o mar é a matéria da poesia, porque é nas águas que a corrente, vertiginosamente, se agita rente aos ventos. Neste poema há a imagem de dois mundos paralelos e opostos entre si, a “voz e o silêncio” que, de acordo com Cavalvanti (1999, p. 108) representam o “poder de ligar uma coisa e mesmo ao seu extremo, ou ao contrário, é uma característica da água em geral e mais particularmente, da água do rio.” Clemente reforça a ideia quando alude aos vocábulos antônimos “palavra e silêncio”:

 

Nem sempre a palavra é o fervilhar de sons e de harmonias. Nem sempre a palavra é o fremir de sílabas ou de fonemas. A palavra, às vezes, apresenta-se sob os véus do silêncio, sob a sombra da mudez. O silêncio também fala, o silêncio também diz, ora alegria, ora tristeza, ora amor. As reticências, as suspensões da corrente, algumas vezes, falam mais que dezenas de palavras ou frases. É a palavra silenciosa. O ser humano envolto em seu mistério, desvela-se e desvenda-se pelo gesto, pela palavra ou pelo silêncio. (CLEMENTE, 1978, p. 53) 

Essa profusão de metáforas remete à vida: é da água, do ponto de vista da teoria da evolução, que as criaturas emergem, evoluem e se adaptam às circunstâncias posteriores, à agitação dos ventos. A metáfora do rio, que desemboca no mar, remete à imagem de passagem para outro mundo desconhecido, logo, à vida e à morte. Assim, a água se expande como a vida nos contornos metafóricos da poesia de Graça Pires.

No poema abaixo intitulado “O verão”, retirado do livro Ortografia do olhar (1996), há elementos que evocam a natureza, com destaque para a força metafórica da água no processo criativo.

 

O verão

Agosto aqueceu, sem aviso, a margem dos dias.
Por isso, não dizemos o quebranto do sol 
sem silabar a ânfora de água fresca,
ou reclamar o sazonal fruto
que anuncia nos lábios uma mitigada sede. 
Nenhum hálito enfuna as velas do prazer, 
nem inventa o vento que as motiva.
Descoberta a praia onde o corpo se aquenta, 
sobeja o mar, no litoral da voz,
para navegar o verbo e incluir, no texto, 
as palavras que servem para dizer 
trigo, árvore, asa, nascente,
e soletrá-las sem profanar a sombra 
que se desprende das pálpebras
daqueles que, à lembrança 
de um abraço, se enternecem.
(PIRES, 1996, p. 16, grifos da autora)

Trata-se de um poema metalinguístico que metaforiza questões como a comunicação de corpos entregues ao prazer no verão, estação em que o sol propicia o sazonal fruto (prazer entre um e outro ser). Os corpos se descobrem na praia quente e, “à lembrança de um abraço, / se enternecem”.

Paz (2012, p. 42) nos auxilia no entendimento de tal procedimento estético:

A essência da linguagem é simbólica, porque consiste em representar um elemento da realidade por outro, como ocorre com as metáforas; assim, a linguagem é poesia em estado natural.

É, pois, a comunicação do enternecimento que culmina no abraço, no contato físico que, versos antes, faz navegar o verbo “incluir” no verso 10 e, a partir desse instante, tem-se a geração de vida (trigo, árvore, asa, nascente). O trigo germina, a árvore amplia a germinação, a asa confirma o que, adiante, no termo “nascente”, representa o resultado do verão: o encontro de seres que se entregam ao afeto.

Nesse poema, portanto, Graça Pires faz referência ao amor, ao encontro, à paridade entre pessoas tocadas pelo sol do verão, porque, afinal, “agosto aqueceu, sem aviso, a margem dos dias”. O sol metaforiza o calor no sentido de energia vital à medida que aquece o corpo e a alma. Nesse sentido, pode se inferir que simboliza o amor, sendo ambos a chama motriz, a fonte da vida.

No poema a seguir, também extraído do livro Ortografia do olhar (1996), apresenta-se agora o outono, quando se percebe que o eu lírico refaz o caminho cíclico da vida e da morte, como o vaivém marítimo metaforizado nas reminiscências do eu lírico:


Outono

Não sabemos que fruto se pressente na boca,
confirmando o tempo de colheita.
Urgente se torna refazer o frágil
caminho das manhãs: um trajecto de água
nas pupilas dos pássaros, conquistando 
planícies, fontes, lábios. 
Umas vezes vento, outras vezes barco, 
mas sempre coniventes com a ilusão 
que se maneja como desvio para escapar à morte.
Setembro escreve-se a cor de mel, 
quando a luz quase emerge da terra
e os dias, mais curtos, garantem 
que o sol se reconcilie com a noite.
(PIRES, 1996, p. 21)

Após o verão, é chegado o outono, tempo em que a natureza gesta o fruto e a vida eclode depois de ter se entregado, no verão, ao afeto, ao enternecimento, à união física eufemisticamente denominada abraço enternecedor no poema “O verão”. Outono é tempo de refazer a trajetória que, cíclica por natureza, levará novamente ao verão que ficou para trás e, ao mesmo tempo, está lá adiante, à espera de ser outra vez. As estações vão e vêm tal qual o mar vai e vem nas reminiscências da poeta.

A água, novamente, traz a vida: “Urgente se torna refazer o frágil/ caminho das manhãs: um trajecto de água”. A natureza, mais uma vez, é recorrente no poema: água, pássaros, planície, vento, luz, terra, noite... todos os elementos remetem à paisagem, eles são a paisagem explicitamente fora e dentro do eu que fala no poema. São paisagens externas porque representam o espaço natural, e internas porque representam a memória, as vivências do sujeito lírico. Nesse sentido, podemos dizer que sua poesia é autobiográfica na medida em que recupera toda a sua vivência ante o mar, essa metáfora da vastidão e de tudo que compõe a existência e consagra o humano.

Paz (2012, p. 237) declara que a “poesia é revelação da condição humana e consagração de uma experiência histórica concreta”. Graça Pires, desse prisma, se consagra na sua humanidade diante do mar e na relação com as águas que, metaforicamente, são a sua vivência.

O poema a seguir com o título “O mar” faz parte do mesmo livro e traz as forças imaginantes que buscam novamente o tema da água na composição dos versos:



O mar

Sem hora marcada,
os navios passam ao largo das ondas.
Nem o mar existe sem a silhueta dos mastros, 
para chorar os peixes verdes em extinção.
De tão ausentes, as naus esqueceram 
o orgasmo das marés e permanecem, 
exaustas, na memória das conchas. 
(PIRES, 1996, p. 25)

No excerto, um predomínio da paisagem marítima, uma imagem construída mediante a subjetividade do eu lírico líquido. O sujeito poético, diante desta cena, dialoga com o mar e com outros elementos da natureza numa relação simbiótica que somente é possível através da palavra poética. O sujeito lírico contempla essa paisagem e se expressa pelas imagens sinestésicas relacionadas a visualização da natureza e por intermédio da linguagem metafórica capta o mar e alguns elementos para exaltar o instante, o presente.

A imagem que se abre à mente do leitor, por meio da configuração metafórica, é difusa e carrega um turbilhão de sentidos. O verso “Os navios passam ao largo das ondas” parece aludir à existência revolta e às intempéries. Há uma reflexão ante a contemplação da paisagem e essa atitude contemplativa mobiliza o devaneio, as ideias permitindo à poeta tecer considerações filosóficas acerca da existência: “De tão ausentes, as naus esqueceram/ o orgasmo das marés/ e permanecem, exaustas/ na memória das conchas”. Tais versos representam, portanto, a mobilização da faculdade do pensamento quando o ser se põe em atitude contemplativa.

Há também uma espécie de rememoração dos tempos áureos dos mares portugueses, atravessados pelas naus movidas para grandes conquistas dessa nação que se lançou ao mar com o objetivo de conquistar novas terras para serem anexadas aos domínios da Coroa. O orgasmo remete ao frenesi, à agitação experimentada pelos navegantes de outrora, que não mais se faz presente. Tudo é memória contida na metáfora das conchas, o que significa que o tempo é o invólucro dos acontecimentos e, simultaneamente, aquele que os aprisiona para que o sujeito os possa acessar.

No livro Uma certa forma de errância, publicado em 2003 pela Editora Ausência Quebrada, escolhemos o seguinte poema que tem como questão central a solidão e a presença da ausência tão marcantes que o vazio se instaura.


O teu rosto, longamente procurado,
não tem búzios, nem conchas, nem corais. 
Na praia até então intacta,
sinto a luz de teus passos. 
Ou será uma onda fugitiva,
a tornar transparente a tua ausência? 
(PIRES, 2003, p. 11)

Composto de apenas seis versos escritos em uma única estrofe, a solidão retorna à palavra. O eu lírico procura longamente o rosto da pessoa amada, no entanto, tudo que resta são errâncias, memórias fugidias, uma ausência cuja transparência constrói a noção de clareza, mas não no sentido de que amplia o campo de visão, e sim no sentido de uma certeza daquilo que não há: a presença é apenas a não presença – “a tornar transparente a tua ausência”. As sensações remontam, todas elas, ao vazio, uma vez que o ser amado agora é apenas uma entidade sensorial.

Além das emoções sinestésicas, a água volta ao poema em forma de onda, fugidia, que não se prende ou não quer se prender ao sujeito lírico, e assim a indagação demonstra seu estado solitário e sem esperança: “Ou será uma onda fugitiva/ a tornar transparente a tua ausência? A dúvida e a falta de respostas se esvaem, como as águas na imensidão do mar.

O poema na sequência também faz parte do livro Uma certa forma de errância (2003). Nele, Graça Pires busca na tradição mitológica, mais precisamente na Odisseia de Homero e na figura do herói Ulisses, inspiração para compor sua obra poética. Paz (2012) nos explica que a narrativa da Odisseia costuma ser evocada na poesia quando escritores trabalham o tema da viagem, fazendo referência ao herói mítico de Ítaca. No caso dos versos a seguir, uma semelhança no sentido de que o eu lírico empreende uma viagem pelos recônditos da memória com o objetivo de presentificar o passado.


A pouco e pouco, aloja-se-me 
no coração a cicatriz da espera.
Alheio-me da minha cronologia
porque o passado se tornou permanente.
Caminho tão perto do mar,
que Ulisses avalia a direção do vento
pelos vestígios do meu respirar,
lento ou apressado.

(PIRES, 2003, p. 21)


Como podemos notar pela leitura do poema, o eu lírico encontra Ulisses em sua viagem interior, tendo o mar como cenário e testemunha. Ao evocar a presença do herói grego, conhecido pelos seus dons de raciocínio e discurso, o eu lírico busca, na experiência desse herói, a retórica que contém um vasto poder persuasivo e provoca grande admiração nos leitores até os dias de hoje. Ulisses personifica a imagem do herói racional, sabe agir e falar, reflete e é moderado. Soluciona os problemas por meio da lógica e não com fúria e emoção.

A narrativa épica é, na contemporaneidade, bastante referenciada quando os escritores a utilizam como metáfora da bravura, do heroísmo, do amor intocado pelo tempo e a distância:

 

A Odisséia, escrita em fins do século VIII, é, sem dúvida, a mais grandiosa epopeia marítima da Grécia Antiga. Narra o retorno de Ulisses a sua terra natal, Ítaca, depois da Guerra de Tróia. Obra lendária, está inserida no início da expansão grega no Mediterrâneo, revelando o grau de intimidade e conhecimento sobre o mar existente na época. O mar-oceano, espaço ainda assustador e temível, comandado pela divindade marítima Posseidon, era o reino do desconhecido, dos monstros marinhos, das sereias perigosas. (DIEGUES, 1998, p. 137-138) 

A história mítica e épica mostra o herói, Ulisses, em busca do desbravamento marítimo. Na verdade, sua viagem é interior, posto que ele desbrava a si mesmo ao vencer as limitações físicas do corpo e as psicológicas ao enfrentar o oceano bravio, as terras habitadas por seres mágicos e os monstros que representam a ira dos deuses.

Referenciar o herói grego significa, por conseguinte, aceitar sua magnitude a fim de transferir, pela estratégia da metáfora, toda sua potencialidade a outrem. Quem ou o quê com Odisseu se compara está à altura de seu heroísmo e adquire todo o seu status.

Voltando ao poema objeto desta comparação com o clássico grego, nele Ulisses pode ser compreendido como a metáfora da espera por um tempo e um espaço que a aventura errante aprisionou. O eu lírico, por um evento que sabe ser irrecuperável no plano da realidade: o passado. O tempo remoto não pode ser recuperado, ainda que ele seja presença na memória.

O mar, na obra da poeta portuguesa Graça Pires, é presença, está no tempo do agora e, simultaneamente, habita o tempo primitivo. No presente e no passado, é imagem mnemônica mais que concreta. A diferença é que, no presente, sua concretude evoca o mar não concreto, aquele que aparece nos devaneios em momentos de solidão, quando o sujeito lírico retoma a infância, evocando tudo que se foi: “Há pouco aloja-se-me no coração/ a cicatriz da espera”.

Ulisses é, portanto, uma evocação simbólica, por vezes onírica, a reinterpretar o mundo e o homem. Segundo Eco (2003), a linguagem, seja simbólica ou não, evoca imagens e constitui uma forma de desvendar o mundo e transmitir valores estéticos. Suas ponderações nos licenciam a dizer que, no plano na linguagem poética, as referenciações dão corpo às interpretações, redimensionando o fato para dar-lhe, no campo da forma, sentidos vários.

O próximo poema, transcrito do mesmo livro, Uma certa forma de errância (2003), apresenta como temática a raiz homérica do herói em conflito com os desafios do mundo. A grandeza indomável do empreendimento marítimo culmina na referência à narrativa do herói grego, para, em tom confessional, o eu lírico encontrar o seu próprio barco, encontrar a si mesmo.


É um verso toda luz filtrada pelo olhar,
quando me surge, das mãos, um barco desvairado.
Vozes longínquas me interrogam sobre a tinta azul 
impressa nos meus dedos: são os mares da Odisseia 
a inundar-me a garganta; são citações de Homero
oscilando em meus lábios; 
são, não sei que aves marinhas, no estuário das mãos. 
Como quem usa a luz para esconder as sombras. 
(PIRES, 2003, p. 35)

Nota-se que a água corre, flui e, mais uma vez, conduz a embarcação rumo ao desconhecido, aos conflitos interiores que são revisitados, pois que se assemelham aos de Ulisses. Ao citar o herói da Odisseia, a poeta aborda a metáfora da grandeza, da bravura, do conflito do herói e do mundo em que ele se move, além do próprio ato “heróico” de escrever. As águas do mar em que Ulisses se aventura são metaforizadas pelas “tintas azuis”, elemento com que se escreve o poema. Nessa direção, pode se inferir que a narrativa homérica é um metapoema. O barco a cingir as vagas marítimas é o próprio poema. Em Homero, está a raiz do heroico e a consciência da tragédia (PAZ, 2012).

Nos versos anteriores de Graça Pires, o eu lírico confessional procura, nas vozes longínquas, o barco desvairado singrando os mares, ao modo da nau conduzida pelo herói da Odisseia. Toda essa descrição evoca o mar, as águas e constrói, no plano da linguagem, a “metáfora homérica”: a odisseia homérica é também a odisseia do eu lírico, que busca, na luz, o esconderijo para as sombras.

Consoante Paz (2012, p. 204), o

 

tema de Homero não é tanto a Guerra de Tróia ou a volta de Odisseu, mas o destino dos heróis. Esse destino está enlaçado com o dos deuses e com a própria saúde do cosmos, de modo que é um tema religioso. E aqui surgem outros traços distintivos da poesia épica grega: o fato de ser uma religião. Homero é a Bíblia Helênica. 

As peripécias heroicas da obra homérica são, por conseguinte, mais que a deflagração da bravura de Odisseu, o entrelaçamento entre o terreno e o sagrado, representado por homens e deuses. O destino dos primeiros é determinado pelas divindades que, ao confrontarem as forças heroicas com os desafios da natureza divina, pretendem operar uma espécie de batismo da criatura ante o criador. É assim que nasce o herói sob os desígnios do criador.

Outro ponto a ser abordado na obra de Graça Pires, e que se destaca nos dois últimos poemas em questão, é o diálogo com a tradição literária que toma corpo ao ser evocada a figura do herói Ulisses. Como se pode entender pelo debate de Paz, a figura do herói também se configura como elemento de inspiração na obra de Baudelaire e de Apollinaire, com algumas características semelhantes à personagem épica:

 

O herói romântico era aventureiro, o pirata, o poeta convertido em guerreiro da liberdade ou o solitário que passeia à margem de um lago deserto, perdido numa meditação sublime. O herói de Baudelaire era o anjo caído na cidade; se vestia de negro e em seu traje elegante e puído havia mancha de vinho, óleo e lama. O personagem de Apollinaire é um vagabundo urbano, quase um clochard, ridículo e patético, perdido na multidão. É a figura que mais tarde encarnaria Charles Chaplin, o protagonista de “A nuvem de calças” de Maiakovski e o de “Tabacaria” de Pessoa. Um pobre-diabo e um ser dotado de poderes ocultos, um palhaço e um mágico. É a clara filiação romântica do personagem e de suas atitudes; e também o de sua novidade. (PAZ, 1993, p. 44) 

Desse modo, a relação que podemos estabelecer entre os heróis da tradição e Homero, os da Modernidade de Baudelaire e Apollinaire e a obra poética de Graça Pires é o fato de associarem a aventura errante do ser humano ajustadas ao seu tempo e à sua cultura. As indagações do ser e a busca pelo desconhecido, patentes por meio das ações comportamentais desses heróis, permitem pensar o passado e o presente em uma nova roupagem de mais consciência.

Walter Benjamim (1994), ao estudar a obra baudelairiana, empregou o termo “herói” com um sentido pitoresco, paródico. Conforme sua concepção, o herói adquire contornos modernos à medida que viver em sociedade é um desafio digno de heroísmo. Os poetas modernos, por sua vez, encontram no lixo da sociedade a temática e a matéria-prima da sua obra poética.

Embora a aventura humana suas paixões, loucuras iluminações continue na nova poesia, os interlocutores mudaram. A antiga natureza desaparece e com ela suas selvas, vales, oceanos e montes povoados de monstros, deuses, demônios e outras maravilhas; em seu lugar, a cidade abstrata e, entre os velhos monumentos e as praças veneráveis, a terrível novidade das máquinas. Mudança de realidade: mudança de mitologia. Antes o homem falava como universo; ou acreditava que falava: se não era o interlocutor, era o seu espelho. No século XX, o interlocutor mítico e suas vozes misteriosas se evaporam. O homem ficou sozinho na cidade imensa e sua solidão é a de milhões com ele. O herói da nova poesia é um solitário na multidão ou melhor dizendo, uma multidão de solitários. (PAZ, 1993, p. 44) 

Ao compreendermos com Paz que a concepção do herói muda porque se alteram os cenários – deixamos a paz das paisagens bucólicas para adentrar no burburinho constante das metrópoles e na sua solidão compartilhada – poderíamos afirmar que na obra de Graça Pires a temática da solidão reincide e coincide com o tópico da busca pela infância perdida, da perda do ser amado, da falta de conexão com a natureza, da metáfora da água e da aventura homérica, como se pode perceber nos versos


Caminho de encontro ao entardecer, 
com a língua salgada de incendiar 
a paisagem de quantos verões 
me couberam na boca. 
A curva do meu riso indicia o sul da mágoa. 
Tenho um barco tatuado nos ossos 
e os braços, quase enfermos, de tanto chamamento. 
No próximo verão, hei-de vestir-me de branco, 
para que os veleiros avistem a solidão do meu olhar. 
(PIRES, 2003, p. 41)

Os verões que “couberam na boca” do eu lírico são a representação simbólica do tempo marcado por mágoas: “A curva do meu riso indica/ o sul da mágoa”, e o barco impresso no braço remete à existência heroica entranhada no ser, de tal forma que se converteu em tatuagem nos ossos. As marcas das experiências que agora são invocadas e evocadas se perdem em meio ao chamamento que não recebe resposta, não é atendido. Resta, então, esperar o verão, ou seja, a próxima oportunidade para viver novamente aquilo que se foi.

Desta vez, o eu lírico se programa para, no futuro, vestir-se de branco, pois assim fazendo, a cor da solidão pode ser vista pelos veleiros que singram as águas do mar. As metáforas, nesse poema, se constituem a partir das imagens que flagram o sujeito poético caminhando para seu entardecer, seu crepúsculo, sua finitude existencial. Enquanto se aproxima do fim, ele constrói na memória o trajeto de solidão, de mágoas até aquele momento. A paisagem natural se junta para construir a paisagem humana interior, e as duas não são alvissareiras, porque se fundem no drama da existência.

Navegar nas metáforas da água presentes na poesia de Graça Pires é mergulhar nas profundezas do ser errante, inquieto, agitado e questionador e identificar um eu lírico mnemônico, amoroso, solitário, que faz incursões ao tempo primevo, à infância como quem busca o lugar ideal para o refúgio.

No poema a seguir o eu lírico revela um caminhar que não é apenas aquele que se faz de pés no chão, com os passos leves de quem segue por uma estrada. Antes, trata-se de uma trajetória tortuosa e enviesada, que percorre a existência e, assim fazendo, passa por todos os percalços enquanto vai sendo conduzida pela inevitabilidade do tempo que tudo devora:



Vou pela irregularidade das pedras 
de uma aldeia envelhecida.
Há casas vazias com manchas de verdete 
no trinco das portas e muros caídos.
que são o fim e o começo de múltiplas evasões.
Os líquenes cobrem aleatoriamente
os degraus de granito e é lodoso o fio de água 
vertido pela fonte de outras sedes.
(PIRES, 2018, p. 47)

Em um plano de superfície, neste poema que também não apresenta título, o eu lírico revela uma caminhada aparentemente em um vilarejo, um lugar abandonado, antigo. No primeiro momento, tem-se a impressão de que é um caminhar simples, porém, ao mesmo tempo, revela que não é fácil, que se escolheu o caminho das pedras irregulares, como uma reação de negação dos padrões estabelecidos: “Vou pela irregularidade das pedras/ de uma aldeia envelhecida”.

Os versos exibem uma irregularidade que se estende às formas do poema: há uma negação às normas, em uma atitude que tanto pode representar as escolhas na vida quanto às formas poéticas da liberdade estrutural e temática. Entendemos que se trata de um lugar desgastado, envelhecido e ao mesmo tempo esquecido, congelado no tempo e, por isso, que demanda renovação.

No terceiro verso, “Há casas vazias com manchas de verde”, a descrição trata de um espaço abandonado em que as casas revelam uma ausência. Essa ausência que toma conta do espaço físico é a materialização de um vazio interior do eu lírico, uma projeção do espaço interno de quem fala no poema. Tem-se a impressão de que os trincos não são utilizados há tempos, porém não se trata de um abandono recente do espaço de morada: a casa física é o espaço da alma que se sente só e, por isso, os muros já se encontram caídos há tanto tempo que a própria natureza se encarregou de germinar a ferrugem, os musgos.

No verso seguinte, o eu lírico expõe o fim no primeiro plano, pois se trata das evasões dos antigos moradores daquele lugar habitado outrora. A segunda evasão foi a da própria natureza que agora, distante do intruso, reage. É lodoso o fio de água que resta, pois o eu lírico mostra que há muito tempo o líquido escoa naquele local. Mostra-se então uma água envelhecida, sem qualquer vislumbre de que possa ser limpa.

No último verso, entrevê-se uma mudança de situação: há a ideia de que existem outras fontes das quais a água jorra, e que viabilizam a sede de renovação para tudo que está estagnado no tempo e no espaço.

Refletindo sobre a metáfora da água e sua associação com a passagem do tempo que tudo consome, o poema escolhido tematiza a experiência impressa nas marcas físicas dos pescadores, cuja história constitui uma espécie de mapa existencial, em que se pode ler o labor, a faina diária.


Hoje, que tenho o mar todo nos meus olhos, 
subo à torre do farol 
para avistar o perfil silente dos barcos 
e adivinhar a indecisa linha
que separa a noite da madrugada.
A navegação costeira faz-se ao mar. 
Reparo então que os pescadores 
não precisam de mapas para a faina.
Têm talhado no rosto o rumo dos cardumes
e uma rosa-dos-ventos engastada em cada mão. 
(PIRES, 2014, p. 23)


O verso que abre este poema revela uma imensidão no olhar do eu lírico, tão vasta quanto vasto é o mar das lembranças. E para maior contemplação, é necessário subir mais alto para ouvir a silenciosa voz dos barcos que, secretamente, sempre quer dizer algo para quem lhes dirige o olhar.

A imagem explícita que se configura mostra um espaço percebido e que atrai o sujeito poético, pois a imaginação é enriquecida, ou seja, renovada por novas imagens que surgem através da contemplação de um espaço feliz. Bachelard (1997,

p. 19) corrobora com esta ideia da poética do imaginário e do espaço feliz: 

O espaço percebido pela imaginação não pode ser o espaço indiferente entregue à mensuração e à reflexão do geômetra. É um espaço vivido. E vivido não em sua positividade, mas em todas as parcialidades da imaginação. Em especial, quase sempre ele atrai. Concentra o ser no interior dos limites que protegem. 

Portanto, o eu lírico lança-se neste espaço à procura do real e apreende-o na poesia através da linguagem metafórica que molda os sentidos da composição das imagens contempladas. 

A composição das imagens com elementos que remetem ao elemento água é um exercício do lirismo que contempla e mergulha na matéria da água e permite o poetizar. Instaura-se assim, nesse poema, a importância da construção das imagens

que se associam aos sentimentos de quem as criou e a ligação do eu lírico com elementos da natureza.

No segundo verso do poema, o sujeito poético sobe à torre do farol para contemplar a paisagem que é revelada pelo contato do mesmo em relação à natureza no seu sentir e viver as coisas. Seu olhar se abre à contemplação, revelando o tempo passado que é guardado pela memória e a realidade do tempo presente expressado pelos verbos no presente do Indicativo que remetem ao agora. Destarte, só hoje é possível ao eu lírico acessar sua sensibilidade e consciência, por meio da figura dos pescadores, homens comuns com experiências culturalmente herdadas e transmitidas por via simbólicas. O rosto e as mãos dos trabalhadores do mar destacam-se metonicamente, marcando, pela experiência com a lida diária, sujeitos conhecedores da sua função individual e social, passíveis de evocar o ontem e projetar-se no futuro.


3.    GRAÇA PIRES NA TRADIÇÃO DA POESIA PORTUGUESA

      3.1   O itinerário da construção poética de Graça Pires


Neste capítulo analisaremos alguns poemas da autora em seus aspectos estruturais e semânticos, relacionando-os ao tema central de nossa pesquisa, ou seja, o fundamento simbólico do elemento água. Enfatizamos, entretanto, a noção de que um texto não se abre em toda a sua extensão à leitura de uma pessoa. Um poema, por exemplo, ao ser submetido à apreciação de leitores diversos, expande-se em sentidos que se complementam. Paz (2012, p. 198) corrobora essa percepção: “O poema é uma obra inacabada, sempre disposta a ser completada e vivida por um novo leitor”. A participação do leitor faz o poema atingir o estado denominado por Paz de poético e, nessa experiência, a leitura torna-se uma variação criadora do ato original, ou seja, cada leitor recria o poema ao lê-lo e, a partir daí, “produz” outro texto à medida que desvenda o primeiro e o abre à plurissignificação (PAZ, 1984, p. 202).

A natureza plurissignificativa do texto poético também se deve aos arranjos formais, às escolhas lexicais, aos recursos rítmicos, melódicos e métricos. Tais aspectos se aglutinam para construírem sentidos que configuram a instância literária da linguagem.

Em Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos (2007), é possível fazer um mapeamento das características da obra poética de Graça Pires que, de acordo com Bonafim (s/d), é um “livro, todo simétrico e dicotômico, funciona[ando] como uma verdadeira arquitetura pacientemente engendrada”. Uma das coisas que chama a atenção, por exemplo, é o fato de a poeta não dar títulos aos poemas.

Da obra supracitada, o poema escolhido para discussão apresenta características estruturais e semânticas recorrentes na obra de Graça Pires: o eu lírico que se enreda no emaranhado de sombras da infância e da noite e faz questionamentos acerca do sentido da vida, em um misto de sentimento e emoção consubstanciados na linguagem. Seu ritmo é solto e livre, revelando os traços da poética contemporânea que delineiam o itinerário de escrita da autora:


À espera de um momento de luz retorno, 
sem hesitar, ao itinerário secreto do silêncio 
e cultivo a solidão, multiplicando as sombras.
Peregrina de outras luas, resgato a música
que me restou da infância como um sobressalto,
ou uma canção de embalar,
ou água fresca a ferir-me a boca, de tanta sede.

(PIRES, 2007, p. 36)

Um intercurso pelo poema mostra o aspecto formal de liberdade estética e uma instância semântica de inquietação emocional do eu lírico. Na forma, constata- se uma única estrofe, onze versos brancos em que há o uso da versificação livre e ausência da posição melódica rimada. A assimetria na medida dos versos é evidente.

Adotar essa estratégia formal é uma característica defendida e experimentada pelos poetas modernistas e levada a resultados por vezes absolutamente inovadores pelos autores contemporâneos e adeptos das novas experiências com as palavras em sentido literário. Observa-se, como já referido, o ritmo mais solto e o distanciamento das regras da métrica tradicional, mas ainda um certo rigor na pontuação dos versos. O modo de compor desta poeta traduz a visão de uma época, o modo de vida, o compasso incerto do homem contemporâneo.

Dessa feita, faz-se pertinente trazer à discussão o postulado modernista de uma posição crítica que se assenta na inovação e analisa “o ritmo do verso livre, [como uma] inovação modernista que não segue nenhuma regra métrica, apresentando um ritmo novo, liberado e imprevisível” (GOLDSTEIN, 1990, p. 11).

Nesse sentido, a corrente modernista deixou à contemporaneidade o legado da liberdade de escolha e de expressão poética. A partir de uma nova postura frente à tessitura do poema, o verso livre modernista aboliu a obrigatoriedade da adoção do esquema rítmico preestabelecido e passou a representar o espírito de rompimento com os cânones da tradição literária. Isso, porém, não corresponde a um radicalismo negacionista a ponto de excluir, irrevogavelmente, a cultura poética de outrora.

Trata-se de adotar uma liberdade de escolha que, vez ou outra, retoma, nos versos, o ritmo decorrente da métrica canônica, visto que a literatura não é estática e as novas estratégias poéticas não são uma lei imutável. Poetas de diferentes períodos a partir do movimento modernista adotam em suas obras a tradição clássica e a inovação simultaneamente, podendo privilegiar, ou não, ora uma, ora outra estética literária.

No aspecto melódico, os versos do poema analisado são brancos (não são rimados), embora apresentem uma característica melódica na aliteração em “m”, “n” e “s”, imprimindo-lhes musicalidade, como exemplificado abaixo

 

RetorNo, SeM heSitar, ao itiNerário Secreto do SilêNCio e cultivo a Solidão MultiplicaNdo aS SoMbraS.

 

O recurso estilístico da aliteração fonêmica consonantal em “s”, além de imprimir o tom melódico aos versos, remete, ao mesmo tempo, à noção onomatopeica do sibilar do vento (ssssss!), evidenciando, assim, a presença de uma voz líquida e inquietante, escorregadia, que permeia toda a melodia do poema. Na instância semântica, denota a passagem do tempo e a deflagração do silêncio introspectivo do eu lírico que se põe no lugar de reminiscente, “À espera de um momento de luz”. Há, aí, uma fluidez do estado d’alma do eu mnemônico. O sujeito lírico sabe que esta espera não pode ser de qualquer jeito, visto que um método e uma intenção para se chegar à luz desejada e mergulhar nas sombras.

O sujeito lírico, assim, exercita a angústia da espera para capturar os momentos breves de raios de luz necessários para promover o processo da imagem e registrar o momento de revelação, dando forma a sua criação poética. Faz-se necessário estar só, não há que estar acompanhado de ninguém durante essa espera que caracteriza a ausência de conhecimento. Há no poema vários momentos que se desencadeiam nos tempos presente e passado. O tempo presente é a iniciação idealizada, na qual ele deseja mergulhar. Contudo, não o pode fazer de maneira aleatória, é preciso esperar o momento adequado. O presente é fundamental, é luz que insiste na iluminação do espírito.

A partir daí, deflagra-se o processo da memória, ao passo que o sujeito oculto, implícito na desinência da forma verbal no presente do indicativo “Retorno” faz o caminho de volta ao passado. Retornar ao itinerário do silêncio e cultivar a solidão são condições naturais à mobilização da memória. Neste texto, verifica-se a busca de aproximação com o cosmo pela arquitetura da memória, a ordem e a construção do caminho que leva o eu lírico a remontar imagens que o levam ao encontro de suas origens. Diante dessas imagens experimentadas pelo sujeito lírico, a poesia se faz por meio do processo pelo qual ele se encontra a si mesmo, confirmando as palavras de Paz (1993, p. 31) de que “o poema é a via de acesso ao tempo puro, imersão nas águas originais da existência”.

Ademais, a transitividade indireta do verbo “retornar”, cujo objeto indireto é “itinerário”, compõe o conjunto imagético do acesso igualmente indireto às lembranças. O itinerário se abre à alteridade, à memória social em um desdobramento do eu no tempo passado que se abre para multiplicar na presença da criança, do eu para se chegar ao próprio eu. O sujeito poético não alcança suas reminiscências senão por meio de, antes, colocar-se em estado de silêncio e solidão. Consequentemente, o silêncio nada mais é que a forma de poder estar no deserto em que precisa viver para colher seu momento de luz.

Percebe-se, na poesia de Graça Pires, um eu lírico em busca de um ajuste diante da realidade na qual se encontra, à procura, na memória, de vivências remotas para compor sua subjetividade e desvelar a plenitude da vida e da morte no instante de alumbramento.

Constatamos, no ofício da poesia de Manuel Bandeira, a recorrência do substantivo alumbramento para denominar o momento de iluminação do eu lírico, estado de maravilhamento de quem se deslumbra com algo. É sinônimo também de inspiração e revelação, que corresponde ao sopro do criador. Segundo Arrigucci Jr. (1990, p. 15):

Para o poeta, o alumbramento, revelação simbólica da poesia, pode dar-se no chão do mais “humilde cotidiano”, de onde o poético pode ser desentranhado, à força da depuração e condensação da linguagem, na forma simples e natural do poema. Atento aos instantes de paixão reveladora, em que amor e morte poeticamente se iluminam, mas debruçado sobre a operação concreta da forma em que o complexo se faz simples, o ensaio, por fim, se arrisca na sondagem do sentido último e mais geral de todo o itinerário bandeiriano: como sua poesia meditativa, erótica elegíaca se torna ao mesmo tempo uma forma de imitação da natureza e um meio humilde de preparação para a morte. (ARRIGUCCI JR., 1990, p. 15, grifos do autor) 

No poema de Graça Pires, a visão de alumbramento acontece pela peregrinação itinerária que leva o sujeito lírico a retornar ao passado, ao tempo primevo e trazer de volta valores humanistas. Assim, é capaz de transpor o elo entre o passado e o presente de maneira consciente, promovendo a elevação da alma. Isso vivenciado a partir das imagens de sede evidenciadas pela inquietude do ser.

De acordo com Cantinho (p. 4, s/d), o “poema salva, porque vai a caminho do sonho e é através dele e da memória que pode o tempo florescer”. Só a partir dessa condição de silêncio é que se torna possível acessar as múltiplas sombras, nas lembranças opacas e fluidas.

Enquanto o passado habita o campo da memória, o agora em que se situa o sujeito memorialista é marcado pelas formas verbais de primeira pessoa do singular no presente do indicativo: retorno, cultivo, resgato. Retornar e resgatar demandam um movimento em direção “a”: do presente ao passado.

Na instância lexical do poema, a tessitura das construções demarca o campo semântico de base antitética: “luz” em oposição à “sombra”; a lua traz a luz, que por sua vez projeta sombras onde não incide a claridade; água fresca que fere a boca. As noções antitéticas a partir das escolhas e dos arranjos lexicais exprimem momentos antagônicos que marcam o estado de espírito do eu lírico.

Sintaticamente, a inversão construcional dos períodos assinala o sentido não linear da memória. Recordar é um fenômeno avesso à linearidade, à ordem direta dos fatos lembrados. Os acontecimentos vêm à memória sem obedecer a qualquer critério preestabelecido de organização ou linearidade cronológica: fatos primevos ocorrem por último quando rememorados; fatos últimos ocorrem primeiro na fluidez mnemônica. Essa aparente desordem das lembranças pode se entrever nos versos “À espera de um momento de luz/ retorno, sem hesitar, ao itinerário/ secreto do silêncio e cultivo a solidão/ multiplicando as sombras”.

Para fazer qualquer itinerário no plano da memória é preciso, antes, posicionar-se: primeiro o eu lírico se põe na condição de quem espera; depois se mobiliza (retorna) na direção do itinerário que as lembranças constroem. Por isso o percurso do silêncio é secreto, por ser imprevisível determinar, por antecipação, o lugar a que as lembranças levarão. Sabe-se apenas, a partir da oração reduzida de gerúndio, que as sombras se multiplicarão, isto é, as recordações diluídas na ação do tempo e, por isso, tornadas sombras. O eu lírico as convoca e multiplica, lugar de dúvidas onde nasce sua poesia, que reúne elementos do cotidiano oscilantes entre o lírico, o social e o metafísico. Nada é nítido no campo da memória: tudo é desvalido do colorido dos fatos no momento em que foram vividos. 

De acordo com Fialho (2007, p. 2-35), sobre a segunda parte desta obra intitulada “Sombras”:


A sombra surge como o lugar do não lugar, ou seja, como a imagem de  uma inquietude que tenta resolver-se, a inquietude de quem se encontra defronte à “inevitabilidade da morte”, a inquietude de quem busca a luz primaveril da adolescência ou de quem procura a simplicidade de uma infância onde o conflito não tinha lugar. Palavra com forte tradição poética, a sombra não é, nestes poemas, o lugar do sonho, do pecado e do crime. É antes o lugar da dúvida, da inquietação, de uma sede ainda por saciar que, por milagre, não resultou numa solidão definitiva. (FIALHO, 2007, p. 2-3)

A partir da explanação de Fialho (2007), podemos inferir que a poesia de Graça Pires engendra, na aparente delicadeza de sua escrita, o fluir de vozes sedentas através das quais ecoam os sentimentos de perturbações, dúvidas e inquietações, enquanto permanece o sujeito lírico atento à sua contemplação.

Semanticamente, os substantivos abstratos silêncio, solidão e sombra corroboram a noção de um estado de espírito deflagrado no momento em que o eu lírico se põe em posição de busca de si mesmo desde suas memórias. Os substantivos concretos que se seguem, lua, música, infância, sobressalto e canção constroem o sentido antitético em relação ao trinômio silêncio, solidão e sombra. Nos dois campos semânticos opostos em que luz e sombra se opõem ao mesmo tempo em que constituem complementos, posto que a luz só é luz porque existe seu oposto e vice-versa, os nomes de natureza abstrata correspondem à natureza abstrata dos estados d’alma, da memória e da própria “sede” que encerra o poema.


 

FIALHO, Henrique Manuel Bento. O silêncio: lugar habitado. O texto foi lido em 2007 durante a sessão comemorativa do 77º aniversário do poeta Ruy Belo, aquando da apresentação de O silêncio: lugar habitado, de Graça Pires, livro vencedor da primeira edição do Prémio Nacional Poeta Ruy Belo.


Tudo conflui para o momento de clímax expresso pelo intensificador “tanta” em “tanta sede”: não se trata de uma ânsia por saciedade física, mas sim algo que extrapola, pois chega “a ferir a boca”. Isso equivale a dizer que a distância entre aquilo que é passado e aquilo que é presente inviabiliza reviver a infância; contudo  ato expresso no sexto verso – “Resgato a música/ que me restou da infância” –, torna possível encontrar a alegria do mundo infantil pela poesia, que resgata no passado um gancho mnemônico com que fisga a vida fluida pelo tempo.

O poema é o vestígio da infância, é o portal que abre ao eu lírico a possibilidade de se comover com a própria solidão, lembrando da canção de ninar delicada. Portanto, através da poesia é possível o reencontro idílico com a infância perdida e o poema torna-se uma metáfora da música, a própria melodia que embala o sujeito poético e que apazigua a memória, os sonhos, a sede.

Entretanto, não podemos nos esquecer de que a memória é água e, logo, impossível de ser aprisionada. Desse modo, em vez de saciar a sede de sensações do sujeito lírico, ela fere e machuca, transforma-se em uma sede que nunca será mitigada, visto que sacia e fere ao mesmo tempo, em um movimento reiterado de reconciliação do tempo linear e do tempo cíclico, sem se prender em nenhum deles.

A oração “que me restou da infância” subordina-se à oração principal “Resgato a música”. Essa relação de dependência expressa pela construção sintática converge para o sentido de subordinação do eu lírico em relação à dependência de seu passado para aliviar sua solidão no presente. A transitividade direta das formas verbais “cultivo” e “resgato” assegura que essas escolhas se concretizem nos seus respectivos complementos (objetos diretos): “a solidão” e “a música”. uma subordinação a esse tempo pretérito, que “lá” é o refúgio idealizado, expresso na sequência opcional ou alternativa manifesta nas construções iniciadas pela conjunção subordinativa “ou”: “Ou uma canção de embalar/ ou água fresca a ferir-me a boca/ de tanta sede”.

O desejo de saciar-se e preencher com lembranças da infância a lacuna ocasionada pela solidão é tamanha que o eu lírico cria opções de refúgio: ou uma coisa (canção de embalar) ou outra (água fresca). As conjunções de alternância (ou/ou) instauram incertezas, possibilidades, ao mesmo tempo em que viabilizam a escolha do eu lírico. Similarmente, os verbos de mobilização (retorno/resgato) impelem o sujeito lírico na direção de um passado que se pretende presentificado. Os sentidos das escolhas verbais são reveladores do apego ao passado como um lugar de aconchego.

Retomando o conceito de devaneio de Bachelard (1988, p. 106), relacionado a vivências memoriais, temos que:

 

Então o devaneio voltado para o nosso passado, o devaneio que busca a infância, parece devolver vida a vidas que não aconteceram, vidas que foram imaginadas. O devaneio é uma mnemotécnica da imaginação. No devaneio retomamos contato com possibilidades que o destino não soube utilizar. Um grande paradoxo está associado aos nossos devaneios voltados para a infância: esse passado morto tem em nós um futuro, o futuro de suas imagens vivas, o futuro do devaneio que se abre diante de toda imagem redescoberta.

A infância configura, no poema de Graça Pires, esse devaneio representado pela recorrência da procura por reviver a infância. Ainda nessa direção, no verso “Ou uma canção de embalar”, a imagem construída pelo verbo embalar remete à figura materna, cuja imagem da mãe pode ser rememorada como alguém que foi e desempenhou um papel importante no plano de formação do sujeito lírico.

Trazendo a leitura para o sentido mítico, o substantivo “água” no verso “ou água fresca a ferir-me a boca de tanta sede”, que se apresenta como a segunda opção de refúgio do eu lírico, pode simbolizar, de acordo com o que diz Cavalcanti (1997, p. 159), “o arquétipo da Água-Mãe, na sua polaridade positiva, [que] detém as qualidades de nutridora, protetora, doadora, auxiliadora, proporcionadora de prazer, de conforto e bem-estar”.

Assim sendo, diante dessa realidade difusa entre passado e presente, o tempo vigente faz-se primordial quando o sujeito poético se encontra frente a seu objeto: a imagem da mãe que simboliza o afago, o embalar, aquela que gera a vida e também cuida, protege. O eu lírico capta em profundidade o momento de ternura vivido e reveste-se de amor, do mistério e da revelação poética, experiência que conduz ao alumbramento, uma iluminação simbólica que se torna epifania experimentada pela poesia.



3.2   A metáfora da água e a solidão do ser perdido na multidão da cidade  grande


            Outono é primordialmente a metáfora da solidão, a água que faz bem ao corpo é, paradoxalmente, a base do construto semântico da mágoa, de dúvidas e cicatrizes geradas pela solidão inscrita no decorrer do tempo. De acordo com Cavalcante (1997, p. 134), no sentido mítico, os “rios subterrâneos representam este retorno, o caminho de volta para casa, o regresso à totalidade primordial, à unidade do ser, à fonte original de onde tudo começou”.

A imagem da água evocada pelo sujeito lírico no poema a ser analisado na sequência, extraído do livro Outono: lugar frágil (1994), ecoa a saudade de tempos remotos aprisionados no próprio tempo, que se faz rio que geme e realiza o percurso contrário, à procura da fonte em busca da água regeneradora. Nesse sentido, fica evidenciado neste poema o uso da linguagem metafórica que exprime a relação entre corpo e água e remete à solidão como parte da própria natureza humana.

Fico à entrada da noite, cativa de hábitos estivais.
Procuro uma fonte para recuperar o brilho aguado 
de um incêndio e descubro que todos os rios do mundo 
nascem por cima dos meus olhos.
Para além de alguns sons em uníssono 
na memória dos gestos, há múltiplas paisagens 
desabitadas no âmago dos homens.
Regresso ao acaso dos rostos abertos aos alarmes da melancolia.
O espanto latente nas minhas veias, leva-se a qualquer lado 
onde posso ser uma pessoa igual às outras, 
sem o peso das sílabas sobre os meus ombros.
A similitude da água com o corpo, 
é tudo quanto sei da solidão: abismo fatal no interior do silêncio.
Sou habitante da cidade, como os pombos 
que esvoaçam a esperança de lés a lés.
Sou habitante da cidade, como todos 
os sobreviventes do ritmado dos horários.
As ruas esvaziam-se. Um som sufocado de baladas 
protege os culpados das ruínas do outono. 
Em vão me iludo com a claridade da cidade que desperta. 
Ninguém chora a noite depois da passagem dos barcos 
pelo olhar das pessoas desprevenidas.
(PIRES, 1994, p. 18)

Tomando como partida a análise formal, temos um poema de versos longos e estamos diante de uma construção que não contém rimas, composta por duas estrofes e com uma arquitetura textual que toma quase a prosa como base estrutural do texto.

Os espaços indicadores de parágrafos, bem como os recuos das linhas à margem esquerda do papel e suas extensões assimétricas permitem que se depreenda uma visão das curvas dos rios, que não seguem a linearidade reta em suas margens e se mostram livres. Assim é o texto de Graça Pires: seja na poesia ou na prosa, a poeta portuguesa contemporânea pratica a liberdade formal, ainda que por vezes mostre uma ou outra adoção de medida clássica, como vimos na análise do poema anterior.

Ainda na trilha da análise formal, a primeira pessoa oracional das construções sintáticas evidencia o sujeito lírico em posição de quem inicia as linhas do texto, como em “Fico à entrada...” (linha 1), “Procuro uma fonte...” (linha 2), “Regresso ao acaso...” (linha 7), “Sou habitante da cidade...” (linha 13). Essa posição do sujeito que fala no texto ainda dá ênfase ao seu lugar social de habitante do espaço urbano: “Sou habitante da cidade” é a única oração que se replica: ela reincide, inicia as linhas 13 e 15. Esses versos apresentam uma similaridade sintática que não deixa dúvida quanto à condição social do sujeito poético. Há uma ênfase à confissão “Sou habitante da cidade”.

As formas verbais “fico”, “procuro”, “regresso” e “sou” são indicativas de estado: ficar e ser exprimem a noção de estado; procurar e regressar são, também prototipicamente, verbos que denotam mobilização do sujeito, indicam movimento, ação. Contudo, na instância da linguagem poético-literária de Graça Pires, essas formas expressam sentidos simbólicos à medida que “procurar” possui sentido de busca interior por algo que se perdeu. Na verdade, não se trata de uma busca externa por algum objeto perdido, e sim de um estado de quem vasculha a memória para acessar o passado. Do mesmo modo, a forma verbal “regresso” exprime o movimento de acionar os mecanismos da memória: não há um regresso literal, mas simbólico da dona da voz que fala.

O texto em questão é composto de oito parágrafos, sendo que apenas o último deles se constrói de um período cuja extensão vem dividida por pontos finais. Os períodos anteriores se compõem de frases pontuadas apenas por vírgulas. Uma interpretação possível seria a de que a ausência de ponto final no interior dos períodos – do primeiro ao sétimo parágrafos – configura o todo do sujeito lírico, que inteiramente se mostra ao leitor do texto. Já no oitavo e último parágrafo, o uso do ponto final representaria o foco da abordagem temática: aí se retrata a cidade que, por sua vez, é um composto de partes (bairros, setores etc.). O sujeito inteiro inserido no todo feito de partes é a base do imagética do texto. A arquitetura  construcional dos períodos se carrega de sentidos possíveis graças à análise dos elementos e das escolhas da poeta. Bachelard (1997, p. 158) lança luzes sobre o que acabamos de dizer: “O rio, malgrado seus mil rostos, recebe um destino único; sua fonte tem a responsabilidade e o mérito de todo o curso”. A cidade é o reduto de mil rostos, que por sua vez compartilham de um destino único: o “abismo fatal no interior do silêncio” representado pela solidão, reforçada no plano do léxico.

As escolhas lexicais, assim, se juntam para construir as noções semânticas de solidão, cansaço e ruína: “entrada da noite”, “brilho aguado de um incêndio”, “paisagens desabitadas no âmago dos homens”, “rostos abertos ao alarme da melancolia”, “As ruas esvaziam-se”, “Um som sufocado de baladas protege os culpados das ruínas do outono”. Tudo corrobora para o estado de solitude profundo do sujeito poético, inclusive a semelhança entre a água e o corpo, “abismo fatal no interior do silêncio”. 

Pode se inferir que a água, neste poema de Graça Pires, é um líquido universal e, por isso mesmo, pode ser interpretada como o sangue, ainda que esse substantivo não esteja textualmente expresso nos versos. Bachelard (1997) explicita que a água se valoriza pelo sangue, à medida que ambos são o líquido da vida: no sangue o componente água. De fato, para o autor, ela é o sangue não nomeado.

A linguagem metafórica da água na produção poética da autora remete às cicatrizes, às mágoas, às dúvidas que assombram diante da solidão que a distância provoca. Por esse ângulo, pode se dizer que o eu lírico busca na fonte a água que purifica e abranda o peso acirrado da solidão. Há aí um componente imagético que, por sua carga semântica de peso árduo, pode ser associado à imagem do sangue, que no inconsciente da poeta simboliza a memória de vivências assentadas na dor: “Então a noite é substância como a água é substância. A substância noturna vai confundir-se intimamente com a substância líquida” (BACHELARD, 1997, p. 56-57).

Podemos constatar as marcas deixadas pelo tempo nos versos “procuro uma fonte para recuperar o brilho aguado de um/ incêndio e descubro que todos os rios do mundo nascem por /cima dos meus olhos”. Há neles a correlação da vida e do tempo: as marcas deixadas por ambos nas entranhas do ser. É na fonte que brotam os rios, é na fluidez das águas que o sujeito lírico se reconhece e é impelido a recuperar, na memória, as paisagens que não mais habitam nos homens.

A água é o elemento que possibilita ao eu lírico regressar às paisagens do tempo primevo, que permitem que reconheça a si mesmo e tenha consciência do peso do mundo à sua volta. O elemento líquido leva-o à recriação e ao encontro com novos sentidos, os quais são capazes de permitir a liberação do imaginário, dos sonhos, pois é nas imagens aquáticas que o sujeito poético entra em estado de devaneio para o processo da sua criação poética: “para alguns sons em uníssono na memória dos gestos, há múltiplas paisagens desabitadas no âmago dos homens”. Nesses versos constroem-se imagens cotidianas e metaforiza-se a própria poesia, ambas compostas de inúmeros significados e elementos que carregam essências do imaginário poético.


Em “O espanto latente nas minhas veias, leva-me a qualquer lado aonde/posso ser uma pessoa igual às outras, sem o peso das sílabas sobre os meus ombros”, o sujeito poético consciente do seu ofício, na atitude visionária do instante de alumbramento, não se envaidece, pois reconhece que, de acordo com Collot:

É nesse nó entre identidade e alteridade que se funda a responsabilidade da palavra poética, que faz com que o poeta possa responder por ela, e com que nós possamos responder-lhe: ele “está carregado da humanidade, dos próprios animais”. Na medida em que o poeta traz para a palavra, não o seu eu, mas esse Eu desconhecido que cada um traz em si, o poema pode nos falar, a nós mesmos. (COLLOT, 2013, p. 231) 

Desta forma, o eu lírico carrega nos versos a poesia da leveza imbuída de uma linguagem que expressa e suaviza a inquietação causada pelo emaranhando de sensações e fantasias diante de uma realidade que o circunda e da qual não há como fugir. Somente o instante de criação pode levá-lo a ser como as pessoas comuns e, nesse momento, aplaca-se o peso do labor que é o fazer poético. Logo, a mensagem que fica ao leitor é de que apenas a poesia é capaz de remover, com sua mais pura linguagem, o que nos inquieta, nossas dores, nossa solidão e trazer de volta a sensibilidade e a capacidade de ser e viver em um mundo conflitante.

No entanto há uma tensão aparente na poética da negação do sujeito lírico que, embora inserido no meio social, nega o convívio em sociedade. O objetivo da linguagem poética nesse contexto é expressar a experiência de quem se encontra numa luta diante da angústia para inscrever-se na linguagem e, simultaneamente, procura trazer à consciência as atitudes e as neuroses na qual está inserido.

Nos versos “A similitude da água com o corpo é tudo quanto sei da/ solidão: abismo fatal no interior do silêncio”, a água metaforiza o autoconhecimento ao fazer parte do corpo. Líquido essencial na experiência poética, a água vai no mais profundo do ser e evoca a expressão da sua voz, sua solidão, seus gemidos, de maneira desordenada e em tom de atormentação, pois, neste turbilhão de vozes, o sujeito lírico, no limite da linguagem, não consegue se expressar na sua totalidade. As metáforas da água e do corpo ressaltam, mais uma vez, a solidão, e são exteriorizadas com o uso de uma linguagem habitada por símbolos na expressão da forma de ver a vida diante dos sentimentos mais profundos.

Na comparação “Sou habitante da cidade, como os pombos que esvoaçavam/ a esperança de lés a lés” o eu lírico se compara às aves que não cessam os voos, ainda que a esperança se esvaia no movimento dos dias. Os voos, por outro lado, evocam a paz diante das vicissitudes humanas, agregam a fantasia à imaginação do leitor associada com a realidade e criam um devaneio da criação poética à proporção que o eu que fala no poema encontra-se em contato com a realidade do mundo e sua solidão.

O estado solitário, por conseguinte, é elemento motriz que gira a roda da vida incessantemente.

Há, na expressão poética desses versos, a leveza, a pureza e a autenticidade dos gestos como algo que podemos refugiar dentro do nosso próprio eu a fim de esquecermos as tormentas e as complexidades do dia a dia. Esse fenômeno rompe o tempo cronológico por meio da poesia que transcende o movimento e remete a outros tempos, passado e futuro no aqui e agora – “Sou habitante da cidade, como os sobreviventes do/ cansaço ritmado de horários”. Ao referenciar o cansaço proveniente dos horários excessivos da vida urbana, o eu lírico conduz o leitor a se ater a questões relacionadas ao tempo a que só a poesia é capaz de resistir. A ação voraz de Cronos instala o cansaço, a solidão e as preocupações individuais emergidas da tensão das experiências e vivências históricas de cada indivíduo que compõe a metrópole.

No último segmento do poema, o eu lírico demonstra autoconsciência e sabe que as ilusões da vida podem trazer ruínas e conduzi-lo às novas dores. Então, num ato de recolhimento, em um casulo de proteção, no lugar confessional, a claridade se estabelece na consciência deste sujeito histórico. O tempo cíclico e o movimento em espiral, o choro da noite, a solidão e o silêncio se repetem e se fazem presentes na vida cotidiana da grande cidade e ninguém mais “chora a noite depois da passagem dos barcos”.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 Elegendo como abordagem central da pesquisa o conjunto da obra literária de Graça Pires, nosso objetivo foi realizar um estudo sobre a metáfora da água na poesia dessa poeta portuguesa contemporânea. Fez-se uma viagem pelos caminhos das águas, matéria-prima fluida e por vezes incontida que evoca memórias várias: a infância, a solidão, as perdas.

Apreender a poesia na obra desta poeta é tarefa que demandou sensibilidade e perspicácia, pois sua escrita, apesar de se mostrar de certa forma tímida, é engendrada de temas que abordam as aflições, as dores, a solidão e a inquietude do homem do século XXI. Há a presença de uma voz que assinala a relação da poeta com sua experiência vivida no espaço geográfico frente ao mar.

Pode se chamar, dessa forma, de poesia fluida, poesia-água por tudo que compõe a temática e a forma predominantemente livre da versificação, pela sacralização da sensibilidade lírica, da linguagem fluida que busca a liberdade dentro e fora das margens. A liberdade da escrita de Graça Pires não se faz de forma aleatória, pois há nos seus textos um rigor de pontuação e uma construção arquitetônica do fazer poético.

Nada é ao acaso em sua produção, cuja obra poética possui um corpo de dezoito livros, sendo o último deles publicado em março de 2020, e a maioria premiada por sua qualidade. Sua temática diversa mostra, ao mesmo tempo, uma predileção pelo elemento água, essa matéria que sacraliza a vida no momento do batismo e, a partir de então, intenciona trazer o homem para junto de si mesmo e da divindade que, em tese, o criara: Deus e deuses, em tempos diversos, estão na base da existência, da vida.

Graça Pires se dizia batizada em nome do mar por sua mãe, em cuja voz havia barcos. Esses barcos desenhariam o horizonte a se abrir adiante, e o mar simbolizaria o impulso à poética interior, a inspiração onírica, os devaneios, a metáfora suprema vestindo a linguagem, o verso, a poesia.

A água presente em seus poemas se inscreve na semântica da vida e da solidão, da infância e das perdas, das viagens interiores: mas se a viagem inscreve na pele o destino, também leva à infância, como o ir e vir das ondas revoltas. A água leva, mas também traz à medida que evoca memórias. O antigo e o novo se

encontram na superfície e nas profundezas das águas. Lá, o passado, a infância perdida, aqui, a solidão das perdas.

Em seus versos, o antigo e o novo coexistem, sempre com o rosto revigorado e surpreendentemente inovador, como postula o pesquisador Alexandre Bonafim em um dos textos avulsos escritos sobre a poeta da solidão.

Por fim, a água na obra de Graça Pires pôde ser entendida como o elemento que vai do sagrado ao profano, sendo o líquido que carrega a vida e morte, parte que compõe toda a natureza e o ser humano.

Esta pesquisa bibliográfica, portanto, se inscreve sob o signo da relevância à crítica literário-acadêmica, por contribuir para o conhecimento e a análise universal da poesia portuguesa contemporânea e da obra de Graça Pires. Sua contribuição, certamente, se somará a futuras pesquisas a respeito da poética fluida cuja matéria- prima é a metáfora da água.

A pesquisa possui relevância acadêmica pelo fato de que poucas publicações cujo estudo adota como objeto a obra poética dessa autora. Desse modo, ao eleger sua produção como objeto de pesquisa deste trabalho de investigação, tivemos a certeza de que abrimos caminho não apenas para outros olhares sobre a produção dessa autora, mas também para a importância da pesquisa acadêmica nas humanidades de modo geral e na literatura em língua portuguesa de modo específico.


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