LOURDES DIVINA ORTIZ DE CAMARGO
A METÁFORA DA ÁGUA NA POESIA
DE GRAÇA PIRES: MEMÓRIA, INFÂNCIA
E SOLIDÃO
A METÁFORA DA ÁGUA NA POESIA DE GRAÇA PIRES: MEMÓRIA,
INFÂNCIA E SOLIDÃO
Área de concentração: Estudos de Linguagem e Interculturalidade.
Linha de Pesquisa: LP2 – Estudos Literários e Interculturalidade
Orientador: Prof. Dr. Alexandre Bonafim Felizardo
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Língua, Literatura e Interculturalidade (POSLLI) da Universidade Estadual de Goiás como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Língua, Literatura e Interculturalidade, aprovada em de agosto de 2020 pela Banca Examinadora constituída pelos seguintes professores:
Prof. Dr. Alexandre Bonafim Felizardo
Universidade Estadual de Goiás Professor Orientador (Presidente)
Prof. Dr. Adolfo José de Souza Frota
Universidade Estadual de Goiás (Membro)
Prof. Dr. Paulo Antônio Vieira Júnior
Universidade Federal de Goiás e Pontifícia Universidade Católica de Goiás (Membro)
Dedico este trabalho a Deus, autor de meu destino. À minha família que não mediu esforços para apoiar-me nesta etapa de minha vida. Aos professores do mestrado pelo incentivo e pela grande ajuda com o fornecimento de material teórico para a realização desta dissertação.
A Deus por conceder-me a realização de um sonho.
A minha família que, direta e indiretamente, contribuiu com a realização desta pesquisa, abdicando da minha presença para que eu pudesse elaborar este trabalho.
À Universidade Estadual de Goiás-UEG – Câmpus “Cora Coralina” –, seu corpo docente, direção e administração pela oportunidade de realizar este Mestrado e pela confiança, profissionalismo e dedicação.
Aos professores e professoras do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Língua, Literatura e Interculturalidade (POSLLI) da UEG que, por meio das disciplinas ofertadas, possibilitaram o crescimento intelectual com as sugestões de obras para o embasamento teórico e as reflexões durante as aulas ministradas.
Ao meu orientador Prof. Dr. Alexandre Bonafim Felizardo, pelo suporte, as sugestões e o empenho dedicados ao meu projeto de pesquisa e a esta dissertação: direções, abordagens, bibliografias, paciência e outras luzes com as quais segui confiante pelos caminhos deste trabalho de investigação.
Ao meu filho amado, Leonardo, que é a razão maior de eu não desistir de todos os meus objetivos.
Eu te batizo em nome do mar,
Disse minha mãe com barcos na voz.
abrindo nas fendas do corpo
um impulso salgado que me brandiu o sangue.
Sei agora que há âncoras afogadas
nos meus olhos: nítido eco de todas as demandas.
Graça Pires
RESUMO
Este trabalho de investigação tem como objetivo debater a metáfora da água na poesia de Graça Pires, poeta portuguesa contemporânea cuja escrita refaz, através da memória, os caminhos da infância e da solidão ao adotar a natureza como referente. Presença constante em sua produção, o elemento água simboliza a vida, a fluidez das coisas e as inquietações do ser. Tais tópicos serão examinados a partir das contribuições teóricas de Gaston Bachelard (1988; 1993; 1997), Hugo Friedrich (1991), Octávio Paz (1984; 1993; 2012) e Raíssa Cavalcanti (1999), entre outros, cujos pressupostos compõem a tessitura acerca da matéria-prima do poema: o lirismo, a linguagem estética, a autocontemplação e a sacralização da água como elemento de criação e sustentação da vida. Ainda ancorando-se nesse aporte teórico, iremos estabelecer relações entre os poemas analisados e o elemento água, tomado como índice fundamental de criação poética da autora. A análise se desdobrará, por fim, pelo fazer poético de Graça Pires cuja obra se encontra situada e construída a partir da semântica da água ligada aos sentidos de liberdade e solidão perante a experiência poética do sujeito lírico do texto, que se constitui na linguagem, em uma condição existencial ligada à memória da infância, aos amores e à solidão, refletindo e evidenciando as ações do ser humano no século XXI como índices formadores de sua poesia.
Palavras-chave: Metáfora da Água; Solidão; Memória; Infância; Natureza.
ABSTRACT
This dissertation’s goal is to analyze the water metaphor in Graça
Pires’s poetry, Contemporary
Portuguese author whose writing remakes, through memories, her childhood
and loneliness paths by adopting
Nature as a reference. The water element, which is a constant presence in
the author’s work, symbolizes life, fluidity of things and the concerns of the being. These topics are examined
with the theoretical contribution of Gaston Bachelard
(1988; 1993; 1997), Hugo Friedrich
(1991), Octávio
Paz (1984; 1993; 2012) and Raíssa Cavalcanti (1999), among others whose presupposes compose the textual tessiture
about the raw material of the poem: lyricism,
aesthetic language, self-contemplation and the sacredness of water as an element of creation and sustaining life.
In addition to that, based on this theoretical
foundation, we seek to establish a relation between the poems we analyze
and the water element, taken as a key
index of poetic creation by the author. Finally, the analysis will unfold over the poetic work of Graça Pires,
situated and built from the semantics of water linked
to the meanings of freedom
and loneliness before
the poetic experience of the lyrical
subject of the text. This movement, which is constituted in language in an existential condition connected to her childhood
memories, loves stories and loneliness, reflects and shows the actions
of human being in the 21st century, as indexes that form
her poetry.
Keywords: Water Metaphor;
Loneliness; Memory; Childhood; Nature.
8
8 |
8
SUMÁRIO
8 |
INTRODUÇÃO....................................9
1.
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE LITERATURA MODERNA E CONTEMPORÂNEA
E LEITURAS PANORÂMICAS DA OBRA DE GRAÇA PIRES........................... 13
1.1
Características da poesia de Graça
Pires no contexto da literatura portuguesa contemporânea.........................................13
1.2
Leituras panorâmicas da obra de Graça
Pires.........................25
2.
FORMULAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A ÁGUA E
A METÁFORA DA ÁGUA NA POESIA DE GRAÇA PIRES........................42
2.1
A metáfora da água e a lírica
na poesia..................................................... 42
2.2
A
água como matéria-prima semântica da poesia.................................... 52
3.
GRAÇA PIRES NA TRADIÇÃO
DA POESIA PORTUGUESA.....76
3.1
O
itinerário da construção poética de Graça
Pires.........76
3.2
A metáfora da água e a solidão do
ser perdido na multidão da cidade
grande 83
CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................89
INTRODUÇÃO
No viés dos devaneios profundos e da aproximação íntima com o ato criador, realizamos um estudo da metáfora da água na poesia de Graça Pires, poeta portuguesa nascida na cidade de Figueira da Foz, distrito de Coimbra, em Portugal, no dia 22 de novembro de 1946. A poeta é licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Em 1988, recebeu o Prêmio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Poesia (APE). Em 1990 publicou Poemas; em 1993 recebeu o Prêmio Nacional de Poesia Sebastião da Gama com a obra Labirintos, publicada somente no ano de 1997, numa edição da Câmara Municipal de Murça que lhe atribuiu o prêmio Fernão Magalhães Gonçalves. No mesmo ano, recebeu o Prêmio Nacional de Poesia da Vila de Fânzeres com a obra Outono: lugar frágil, livro publicado pela Junta de Freguesia de Fânzeres. Sua ampla bibliografia foi agraciada com diversos prêmios e é composta pelas seguintes obras: Ortografia do olhar (1995), Afectos conjugar (1996), Uma certa forma de errância (2003), Quando as estevas entraram no poema (2004), Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos (2007), Uma extensa mancha de sonhos (2008), O silêncio: lugar habitado (2008), A incidência da luz (2011), Uma vara de medir o sol (2012), Poemas escolhidos (2012), Caderno de significados (2013), Espaço livre com barcos (2014), Uma claridade que cega (2015), Fui quase todas as mulheres de Modigliani (2017), Uma vara de medir o sol (2018) e A solidão é como o vento (2020).
Objeto fundamental na poesia de Graça Pires, a
água está no centro das temáticas
dessa poeta portuguesa contemporânea. A escolha de sua obra para esta pesquisa se deve ao fato de que,
relativamente, parcas pesquisas existem sobre sua produção. Seus poemas tematizam tópicos
atuais de relevância ambiental, questionamentos
sobre o mundo, fatos e coisas que envolvem o ser humano em suas incertezas e inquietudes na
contemporaneidade. A solidão, a cegueira e o
conformismo das pessoas
relacionados a atitudes
individuais e coletivas
abrem possibilidades de
reflexão com vistas às mudanças de atitude da espécie humana em relação à
preservação da natureza e ao estado de apatia em que se encontra a sociedade
contemporânea.
Embora haja autores(as) que tratem de questões afins, Graça Pires suscita estudos por ser uma poeta cuja obra recorre reiteradamente a elementos da natureza como água, mar, terra e ar. A ênfase recai na palavra lexical água, a qual cumpre, a partir de figuração, a expressão da subjetividade do eu lírico na construção de metáforas e imagens de lirismo expressivo, de simbologia marcante em sua produção. As análises da metáfora da água em seus poemas evidenciam uma poética da memória que encontra, ainda na infância, o lugar de felicidade e das alegrias que não existem no tempo presente.
Em sua obra, uma voz lírica emana do
continente, abre as asas sobre o oceano
e retorna para si mesma, onde a viagem mais inquietante e reveladora acontece. Ao viajar para dentro de si
mesma, evoca memórias, constrói portos e símbolos
metafóricos a partir do elemento água, evidenciando a mnemônica, marca da sua construção poética. A expressão
poética do eu lírico se faz por meio de uma linguagem
que se liquefaz ao revelar mergulhos vivenciais e constitui a obra de
quem foi batizada em nome do mar.
Na composição do corpus teórico desta pesquisa bibliográfico-qualitativa, buscam-se as contribuições de Bachelard
(1995; 1997; 2005), Friedrich (1991), Paz (1993; 2012) e Cavalcanti (1999). Esses teóricos
postulam que a água, na semântica
da poesia, adquire a plurissignificação da vida: fluidez do tempo, perda, amores,
solidão, liberdade, memória,
sonhos e devaneios. Em Bachelard, por exemplo,
encontram-se os postulados sobre a simbologia da água e as referências a esse elemento de que se ocupam os estudos
na literatura universal: da filosofia aos clássicos
e aos textos contemporâneos, a água simboliza a vida, a origem e a purificação do homem. Buscam-se, nesses
autores, sustentação para as discussões acerca das representações crítico-teóricas da literatura e da poesia contemporânea.
Assim, o
objetivo desta dissertação é analisar a metáfora nos versos de Graça
Pires que tematizam a fluidez da vida, tal como a fluidez da água com sua incontida
sede do horizonte. A água, mesmo sendo fluida, fica presa quando estanque
e, ao se libertar, não se contenta com o espaço diminuto, pois precisa extravasar para que possa ocupar novos
lugares, em um movimento de ida. Na memória
lírica da poeta também simboliza o movimento de volta: a água evoca a infância que se foi, os amores que não
resistiram ao passar do tempo, as sensações
que não podem ser encapsuladas.
A pesquisa se norteia pela problematização da inquietude poética e da solidão da poeta que procura se encontrar nos seus versos, e a hipótese é de que, ao escrever poesia, o eu de Graça Pires se reconstitua no eu lírico. Mas essa reconstituição não é sempre ideal, mas, muitas vezes, aquela que abre sulcos na alma: solidões que a água insiste em trazer novamente ao porto dos sentimentos da poeta.
O corpus analítico
apresenta poemas povoados por um lirismo que evoca reminiscências, referenciando e reverenciando a água para construir as metáforas da existência. Trata-se de uma poesia da
vida, do mar, do amor, da natureza, da solidão,
da aventura errante do ser.
Epistemologicamente, as análises se assentam
nos postulados de que a obra literária
em verso se vale de uma arquitetura, um arranjo lexical responsável por construir
um campo semântico
no qual se imerge em busca dos sentidos subjacentes ao poema.
A estrutura argumentativa desta dissertação
está disposta em três capítulos delimitados
de modo a evidenciar a singularidade na expressão das múltiplas vozes presentes
em sua poesia, cujo caminho é o da arquitetura poética da
liberdade formal no contexto da literatura portuguesa contemporânea.
No primeiro capítulo,
sob o título Apontamentos teóricos de literatura portuguesa contemporânea e leituras panorâmicas da obra de Graça Pires, as discussões teóricas
remetem a uma abordagem da literatura portuguesa contemporânea com exclusividade à obra poética
de Graça Pires. De forma abrangente,
descreve-se seu estilo permeado por uma linguagem imageticamente expressiva em que se desenham a infância, os tempos idos e as questões ambientais e sociais a partir da
recorrência de elementos da natureza (água, rios, mar, céu, lua, vento), temas que se conectam para compor os
sentidos e o lirismo poético.
No segundo capítulo, Formulações teóricas sobre a água e a metáfora da água na poesia de Graça Pires, as abordagens e as discussões se ancoram nos postulados acerca da água. Busca-se, nos teóricos da literatura universal, conceitos, formulações e referências que sustentam as noções da água como metáfora abrangente. As discussões focalizam as formulações de Bachelard (1995; 1997; 2005) sobre a água, a fim de que se construa um caminho para a compreensão da questão central da pesquisa: a metáfora da água na poesia líquida de Graça Pires, autora que não se prende ao rigor formal da poesia clássica, ao mesmo tempo em que dialoga com a tradição: versos de medida clássica se intercalam com versos em métrica livre.
No terceiro capítulo,
Graça Pires: Leituras de Poemas Portugueses, de natureza essencialmente analítica, o construto
textual se vale de teorias
que contribuem para a
compreensão de sua poesia a partir da problematização de que a infância
habita as inquietações nostálgicas, das questões
ambientais as quais evocam
uma consciência incômoda, da solidão que se mostra na constatação de uma necessidade recorrente de revisitar o
passado e das questões sociais, as quais expõem um quadro de perturbação do eu que fala no
poema. As análises dos poemas escolhidos expandem, dissecam a linguagem, o estilo e as temáticas
presentes na obra da poeta portuguesa contemporânea Graça Pires.
A extensa
obra de Graça Pires apresenta
características intimistas, e seu perfil
poético revela uma memória sensorial. A autora prima por temas que remetem ao território da infância, povoado por elementos da natureza, e a tempos primevos
ao mito. Revela-se, através da sua poesia, o exercício da memória em
busca das sensações perdidas
em outro tempo, que ressurgem
na evocação de objetos, lugares e elementos do seu contexto social
relacionados à presença da água, que emoldura a paisagem de suas reminiscências.
Com destaque para temas sobre a solidão, o mar,
a infância, o amor e o cotidiano, a
leitura de sua obra demanda adentrar o labirinto de metáforas que remetem ao desassossego de um eu lírico
errante em busca da consciência social e dos
valores humanistas. A metáfora da água desvela as consequências dos conflitos que marcam o homem do século XXI e, ao
mesmo tempo, a memória do sujeito lírico, em que imagens do passado e do presente se mesclam, no
tempo infinito das sensações.
A revelação de imagens que compõem e ilustram os desígnios encantadores da lírica mnemônica desta poeta pode ser constatada no poema a seguir, que faz parte do livro intitulado Uma claridade que cega (2015):
Espreito pelos dedos a memória
mais longínqua da infância.
Procuro-a intensamente.
Nas árvores, nas latadas,
nos vãos de escada,
nos telhados, nos rochedos.
E retalho a pele dos seios.
Rapo o cabelo.
Envolvo-me de fumo.
Soletro as palavras maternas.
Mas um sopro invisível
dispersou o berço e os brinquedos
como um eco sem volta.
Coloco na ara sacrificial
a candura recortada
de um cenário imaginado,
para que me seja paisagem na lembrança.
(PIRES, 2015, p. 19)
Neste poema, composto de dezassete versos, verifica-se
a inquietação do sujeito lírico que
procura algo intenso, sai em busca do objeto de desejo, mas essa procura é interrompida por uma inspiração
que altera sua rota. Nele, a memória sensorial
da audição e da visão é ativada juntamente com o desejo de reviver o cenário
da infância, mesmo que seja através da paisagem
imaginária.
O tom mnemônico é recorrente no poema e o
arranjo da linguagem revela tessituras
que resultam em uma semântica de revisitação do passado, da busca pela infância
ancorada em paragens
dantes navegadas: a paisagem acalentada por berços e
brinquedos que agora são apenas a “candura recortada”. Nota-se que o sujeito
lírico refaz a lembrança a partir de vestígios e impressões que, para Halbwachs (2013, p. 91), são “uma
reconstrução do passado com a ajuda de dados
tomados de empréstimo ao presente e preparados por outras reconstruções
feitas em épocas anteriores”.
A “ara sacrificial” é imperativa, irrevogável e instaura uma espécie de ansiedade
por algo que só se recupera e revive na instância da memória: “Espreito pelos dedos a memória/ mais longínqua da
infância”, e desse espreitar, tudo o que resta
são frestas através das quais apenas se vislumbra o que foi e já não
mais pode ser, senão no seio no
poema. De acordo com os postulados bachelardianos, no retorno ao tempo primevo da infância
imaculada é que acontecem os devaneios mais
ternos, é nesta solidão cósmica que a memória e a imaginação se unem para revelar o fazer poético: “E o sonhador bem
sabe que é preciso ir além do tempo das febres
para encontrar o tempo tranquilo, o tempo da infância feliz em sua própria substância” (BACHELARD,1988, p. 105).
O poema em questão mostra o quanto a linguagem
recupera do passado, ao mesmo tempo
em que causa certa angústia: dualidade de sensações construídas na arquitetura lexical. Memória, infância,
palavras maternas, berço, brinquedos e lembrança
são nominações cujo atributo semântico é reconstruir a paisagem de que composto o tempo pretérito. O poema toma
para si o universo real e o recria a partir da mobilização emocional do eu lírico.
A análise dos versos converge para a compreensão das temáticas elucidadas, tais como o intimismo, a introspecção, o silêncio demorado com a propositura de construir um tecido metafórico-simbólico com o qual se reveste a realidade cotidiana.
O crítico Fernando Guimarães (2008) diria do
poema de Graça Pires o que disse
sobre a obra de António Ramos Rosa: há
nela o poder latente da imagética de sensações,
da intersecção entre o invólucro chamado poema e o espaço ideológico da linguagem. É possível debater, portanto, a respeito das influências de A.
R. Rosa na obra de G. Pires,
identificando-se uma situação do homem delineada na instância da arquitetura poética.
Ramos Rosa não deixa de ressalvar que, seja qual for a
experiência do poeta, o valor da sua
poesia “reside não no que nos diz ou explica sobre a condição humana, não nas ideias, crenças ou atitudes que propõe,
mas em nos tornar presente essa mesma
condição fundamental, possibilitando a cada leitor o acto de recriação
poética”. (GUIMARÃES, 2008, p. 14, grifos do autor)
O “acto de recriação” está para a estrutura do
poema do mesmo modo que está para uma
espécie de desvendamento da palavra, destituindo-a de uns sentidos para instaurar outros. Graça Pires, Pode se dizer, dialoga
com R. Rosa ao esvaziar
a palavra de sentidos denotativos a fim de preenchê-la de sentidos
simbólicos. Não se trata, entretanto,
de uma acuidade excessiva e meramente formal, mas sim de uma postura de precaução contra a eventual imposição da
duplicidade interpretativa da obra poética (GUIMARÃES, 2008).
Pela memória e pela linguagem
poética, o eu lírico põe-se em atitude
contemplativa: direciona a memória para vivências que exprimem a solidão
e a infância plasmadas pelos elementos
da natureza – mar, terra, água, fogo. De maneira
enfática, essas presenças
expõem a nostalgia, o encantamento, a mobilização do pensamento que põe sob leitura as questões que envolvem a condição humana.
Constata-se que a memória é o princípio balizador para se buscar o que é passado e afirmar que algo foi realidade. Ela volta-se sempre para algo, para um objeto e, segundo Ricoeur (2007), isso constitui o caráter objetal da memória. Assim, ao voltar-se para a água, o mar, a terra, entre outros elementos presentes na poesia de Graça Pires, a linguagem poética articula o que compõe o passado com os sentimentos latentes no presente: a solidão, a angústia, a nostalgia.
Outra questão evidenciada no labor poético de Graça Pires é a natureza, que é fundamentalmente uma essência em sua poesia, como pode ser constatado no poema a seguir, extraído do livro Uma claridade que cega (2015).
Não era uma simples sombra a que recuava
no interior da claridade espelhada nos lagos.
Incidia nas águas mais fundas
– onde a geometria dos seixos
se enrola nas raízes dos juncos –
e alongava-se pelas margens,
com a noite mais crua e molhada
a invadir-lhe os contornos.
Era a sombra do poente,
num horizonte que se olhava a pique,
Os elementos da natureza e a projeção
do espaço externo
como um reflexo do espaço
interno são abundantes no tratamento
poético dado por uma lírica que não enfatiza a subjetividade do poeta, mas
que a expõe em igualdade na descrição física
do espaço paisagístico. Nesse ponto, a intersecção da poesia de Graça Pires com a poesia moderna se desfaz de certa
forma, já que o modernismo rompe com a afinidade
entre o poeta, a temática e a vida natural. O que ocorre é que, em Graça Pires, essa afinidade com a natureza se
mantém, embora o tratamento dado não romantize,
não idealize, e sim inscreva uma lírica pungente, por vezes dolorosa, reveladora de feridas não cicatrizadas.
Esse distanciamento da atitude romântica é revelador
de um sujeito fora de si que, segundo
explicita Collot
Estar fora de si é ter perdido o controle de seus
movimentos interiores e, por isso
mesmo, ser projetado para o exterior. Esses dois sentidos da expressão parecem-me constitutivos da e-moção
lírica, que perturba o sujeito no mais íntimo
de si mesmo e o leva ao encontro do mundo e do outro. (COLLOT, 2013, p.
222)
O sujeito fora de si de que fala Collot (2013)
é a ausência do controle de suas capacidades
de autocontrole à medida que passa a construir a “e-moção” lírica, ou seja, a expressão do lirismo no poema. O
sujeito lírico seria, dessa forma, uma entidade que toma posse do eu do poeta e, por meio dele, se manifesta.
No poema em questão, identifica-se tanto uma elucidação da paisagem exterior quanto do espaço interior, cuja
subjetividade da água reflete a materialidade
do mundo, é um espelho desse ser. As duas instâncias coexistem:
constrói-se uma rede descritiva do espaço lá fora para trazer, nos interstícios da linguagem, alguma informação daquilo que vai no interior de quem fala na terceira
pessoa. Não é preciso
se colocar à frente, adotando-se o ponto de vista da primeira pessoa, para deixar transparecer o que seria a
expressão de um “eu”, mas o que mais se enfatiza aí são as características da geografia física, ainda que para
dar, de forma sutil, lugar à expressão de um “eu”.
Ancoramos novamente no porto da linguagem, da
“lírica moderna que exclui não só a pessoa particular, mas também a humanidade normal” (FRIEDRICH, 1991,
p.
110), porque não se prende a modelos, ainda que a modernidade seja uma forma de reprodução de comportamentos e atitudes que nega os modismos. Nesse sentido,
a lírica não é uma espécie de entusiasmo em si e por si; se assim fosse, recorreríamos ao princípio fundamental
nomeado por Mallarmé de “lírica absoluta”, ou
seja, “a elaboração precisa de palavras, a fim de que se tornem uma ‘voz que oculte tanto o poeta quanto
o leitor” (MALLARMÉ apud FRIEDRICH, 1991, p.
111).
O sujeito lírico da modernidade se revela em
uma nova configuração, assim como
neste poema de Graça Pires, em que ele não aparece na estrutura enquanto pessoa do discurso. Friedrich (1991) e
Collot (2013) explicam que as líricas da modernidade,
de modo geral, não costumam manifestar a presença de um eu lírico ou um lirismo
advindo de uma formação autobiográfica, como ocorria no romantismo, por exemplo. Sua elaboração poética
consiste no rigor formal do trabalho
apurado com a linguagem. Embora Graça Pires contemple, neste poema em específico, esta
assinatura da tradição moderna, sua
subjetividade se exprime, de modo geral, pela fluidez do sujeito representado
na simbologia da água tomada em sua
espacialização.
Em Graça Pires,
o intimismo revela-se
na intrincada construção metafórica que emana das múltiplas
vozes de que ela é portadora. Essas vozes captam ventanias,
leitos de rios, ondas marítimas, embarcações, marinheiros, os sentidos de solidão, a infância. Por meio do
simbolismo da metáfora, evoca-se a infância, esse espaço de vivências
que despertam lembranças. O rememorar traz de volta a menina que viveu no limite geográfico do
continente com o mar – dois lugares de partidas
e vindas – assim como o movimento ondular das águas.
A recordação, o recordare, o trazer de volta ao coração, conforme assinalado por Emil Staiger em Conceitos fundamentais de poética (1993),
é a essência da lírica. Dessa
maneira, o ato de recordar para o eu lírico é trazer de volta ao coração tudo aquilo que o representa. Um belo passado,
construção imagética recuperada
a partir dos objetos
e dos elementos naturais, por exemplo, propicia
ao sujeito reconstituir e recompor sua essência.
A água, dessa perspectiva, revela, através da sua fluidez no espaço do poema, a imagem de uma embarcação a navegar rumo à solidão. E em um gesto de busca, o eu lírico faz do passado e o do presente um tempo uno via memória que remete à infância e às lembranças cujas inquietações agitam a existência do ser. Como um mar revolto, as palavras e seu jogo com a linguagem remetem ao sentimento de desassossego que, somente através da escrita poética, permitem ao sujeito lírico ser livre para cristalizar o momento sublime de devaneio, como também podemos verificar no poema subsequente, da obra intitulada Quando as estevas entraram no poema 2005.
De um instante para o outro,
à procura do mar da minha infância:
o sangue paterno agitando o coração.
Entrecruzo palavras antigas.
Um imenso arco-íris humedece-me
o rosto de cores garridas.
Aves costeiras nascem-me na boca,
(PIRES, 2005, p. 28)
[p]ara Baudelaire, o destino poético do homem é o de ser o espelho da imensidão; ou, mais exatamente ainda, a imensidão vem tomar consciência de si mesma no homem. Para Baudelaire, o homem é um ser vasto.
A imagem que se constrói no plano da memória e
na tessitura da palavra é de forte carga lírica e exerce uma pressão de tempestade no peito de onde saem os
barcos
que buscam os portos da infância. Toda uma rede de metáforas leva ao mar, evoca a água como a simbologia do tempo e
do espaço fluido. A água traz a memória porque leva, e leva para depois trazer:
eis o que se pode chamar movimento
mnemônico ondular.
A lírica
da poesia de Graça Pires tem sua
gênese na lírica dos grandes poetas para os quais a palavra sacraliza a
existência, os devaneios e os sonhos. Em sua
palavra, o mundo põe-se em êxtase, mostra-se fecundo: “as coisas resgatam
sua áurea feérica
sacralizada; o homem encontra sua condição de ser transcendente, irmanado das fontes
genesíacas da natureza, às pulsões cósmicas
do corpo” (BONAFIM, s/d1). Esse autor postula que, entre os temas
tratados pela poeta portuguesa, são
recorrentes a busca pela infância
perdida, a solidão e a exaltação da natureza.
Nesse sentido, sobre a presença da natureza na
poesia de Graça Pires, pode se dizer
que ela contempla o mar como Narciso se contempla ao se ver refletido no espelho
criado pela água, como sugere o mito fundamental da Antiguidade. Enquanto ele se enamora de sua própria
imagem refletida na água, o eu lírico se enamora
de sua infância, porque a presença do mar evoca-lhe satisfações. Para Narciso, a água representa o espelho
diante do qual acontece a autocontemplação. Para
Graça Pires, a água representa o mergulho na memória de onde se extraem vivências e alegrias, refúgio do agora que
busca alento. De acordo com Bachelard (1997,
p. 23, grifos do autor), “a água serve para naturalizar
a nossa imagem, para devolver um pouco de inocência e de naturalidade ao orgulho da nossa contemplação íntima”.
O construto poético no poema em questão
evidencia o trabalho da autora portuguesa com a linguagem
de modo insólito. O sair de barcos do peito e o entrecruzar
de palavras antigas, o umedecer-se de arco-íris e a aparição de aves costeiras
nascendo da boca do eu lírico
instauram o inusual sobre o
qual fala Friedrich
Desta maneira, os postulados de Friedrich dizem que, na linguagem, as proposições têm, cada uma a seu tempo e simultaneamente, várias significações. A
técnica
mais importante é a que funde o significado de uma palavra ao da palavra que está próxima:
“As palavras resplandecem em seus mútuos reflexos” (FRIEDRICH, 1991, p. 117). Barco, mar,
arco-íris, aves costeiras e tempestades por si
só remetem ao campo semântico da paisagem, mas distribuídas nos versos do poema, se juntam para construir novos
sentidos. Há aí o que o autor chama de mutualidade e de reflexos
semânticos tão importantes à poesia moderna
e ao poema.
O dado real por si só, quando objeto da escrita, é insuficiente para a concepção
da poesia, formulação a partir da qual Friedrich
chega à noção da existência de um “Nada”, quer dizer, a
poesia vale-se da palavra, muito mais que do
fato, do dado real e seu sentido. “Assim está fundada, por via
ontológica, a moderna hegemonia da
palavra, mas também da fantasia ilimitada” (FRIEDRICH, 1991, p. 126). Destarte, figura-se uma espécie de
fulguração: “[...] (a) magia linguística pode
manifestar-se na força sonora dos versos, mas também num impulso de palavras
que dirige a criação poética”
(FRIEDRICH, 1991, p. 134).
1 BONAFIM,
Alexandre. Ortografia de um olhar
apaixonado. Escritos avulsos do autor sobre a obra da poeta Graça Pires. Texto inédito,
cedido pela própria autora.
Faz-se importante, assim, recorrer às noções de
estilo, de originalidade e de individualidade
artística para compreendermos melhor a obra da poeta portuguesa Graça Pires.
O estilo lírico que até hoje domina o século XX nasceu
na França, na segunda metade do século XIX. Este modelo foi traçado a partir de Baudelaire, depois de ter sido pressentido pelo alemão Novalis
e pelo americano Poe. Rimbaud e Mallarmé haviam indicado os limites
extremos aos quais a poesia pode ousar lançar-se. A lírica do século XX
não traz mais nada de
fundamentalmente novo, por mais dotados que sejam alguns de seus poetas. (FRIEDRICH, 1991, p. 141)
O teórico explica que tais ponderações não
diminuem ou invalidam o fazer poético
dos autores mencionados, ao
contrário, evidenciam o reconhecimento de que suas obras estão interconectadas por uma unidade de estilo
que as interliga ao estilo de seus
predecessores. Se, por um lado, nada de novo há sobre a lírica moderna, é certo que ela é uma espécie de
estética e de metodologia condutora dos estilos.
Graça Pires, por exemplo, apresenta, do
ponto de vista da estética formal, a inovação da linguagem. Essa característica, entretanto, não tem uma finalidade por si só; ela carrega,
em seu âmago, significações que se constroem
a partir da metodologia
associativa e da simbologia. Trata-se de um construto legitimado pelo anseio da liberdade formal e semântico-temática. Fazer literatura contemporânea
significa, portanto, associar forma e função sem que, para
isso, seja necessário vestir as camisas de força do buril que
lapidou a tradição literária da poesia europeia (GUIMARÃES, 2008).
Pode se dizer que a partir da celebração dessa dimensão
forma/função livre é que a poesia portuguesa abriu caminho para a inovação
experimentada pelos poetas nacionais. Entre eles figura
Vitorino Nemésio, cuja expressão poética se assenta nas bases da linguagem, instrumento organizador da manifestação imaginária, da valorização da imagem e da metáfora. Segue-se
então uma linha que valoriza a linguagem poética
inserida no conjunto
das formas simbólicas, ressaltando-se a expressividade dentro daquilo que o texto
poético pode dizer. Isso equivale a ponderar que, quanto à poesia e à linguagem, identifica-se uma associação imaginativa de forte presença
também nos poetas José Bento, António José
Maldonado, Alberto de Lacerda ou, mais tarde ainda, Ruy Belo (GUIMARÃES, 2008).
Ainda consoante Guimarães (2008), no início dos anos 50, um rumo diferente é esboçado com as publicações das folhas de poesia Távola Redonda. Um de seus representantes mais significativos, David Mourão-Ferreira, defende a ideia de que toda poesia é, antes, uma obra lírica. Mesmo quando se afasta do lirismo, volta a sê- lo nos seus mais altos momentos. Posta sob essa perspectiva, quanto mais lírico o poema se revela, mais nobreza no sentido clássico ele possui. Assim, tanto na poesia como na vida, as formas de depuração estabelecem uma hierarquia no texto literário. Poesia e lirismo, na visão de D. Mourão-Ferreira, não acontecem dissociados da lírica, (apud GUIMARÃES, 2008). Tal evidência dessas ponderações sobre a lírica moderna surge no seguinte poema de Graça Pires:
Neste momento dou ao meu perfil
a configuração de uma haste
adivinha um fogo posto nas palavras.
Conheço o rigor das noites
tantas vezes vida, tantas vezes morte.
Neste poema da obra Uma claridade que cega (2015), há um ritmo e uma cadência que marcam a liberdade formal e
estética iniciada no movimento literário modernista.
Esse processo, no entanto, ganha vozes e projeção no Modernismo e nos poetas contemporâneos.
O poema apresenta
um rigor formal no sentido
de uma sintaxe inquestionavelmente
respaldada pela tradição: a pontuação ao estilo da prosa, texto fluido, com as instâncias da pontuação
regidas pela normatividade da língua escrita
padrão: “Neste momento dou ao meu perfil/ a configuração de uma haste/
que, ao primeiro sopro do vento/ adivinha um fogo posto nas palavras”. A fruição e a disposição dos versos, por si só, dariam
conta de uma intercalação, sem que fossem necessários
o uso das vírgulas.
No último verso, “tantas vezes vida, tantas vezes morte”,
a pontuação marcando o limite da construção antitética
corrobora a noção semântica de extrema oposição:
vida/morte. A poeta optou pela não “translineação” da segunda metade do verso, “tantas vezes morte”, e fez questão
de, num só verso, justapor as imagens extremas de vida e morte, criando
uma noção de que a fluidez da vida é abruptamente interrompida pela morte.
As análises validadas pelo rigor da pontuação
revelam uma produção artística contemporânea
que, no lugar de preferir a sintaxe e as construções contrárias à normatividade da língua escrita, opta pela
estética do rigor. Numa e noutra situação, o
poema moderno e contemporâneo mostram-se livres, uma vez que se pratica o rigor porque se é livre para fazê-lo,
e não por uma imposição
da liberdade.
A leitura do poema atesta que Graça Pires
mantém uma unidade de estilo. Porém,
isso não implica, por exemplo, a existência de uma monotonia ou que não exista
qualidade:
A unidade de estilo, como debatida por
Friedrich, existe em um mesmo autor ou
entre autores. De acordo com os postulados de Friedrich sobre unidade de
estilo, não é necessário o poeta manter esta unidade,
porém o mais relevante é a
originalidade da sua obra que revela sua individualidade artística. Noções similares
podem se dizer a respeito
da originalidade:
Originalidade é uma questão de qualidade, e não é decidida pelo estilo. Este, porém – neste caso a unidade
estilística da lírica moderna –, facilita a cognição.
O reconhecimento desta unidade de estilo é até mesmo a única via de acesso àquelas poesias
que se apartam intencionalmente da compreensão normal.
Então, certamente, dever-se-ia penetrar na individualidade artística dos poetas, o
que só pode ocorrer aqui por alusões. (FRIEDRICH, 1991, p.
141)
Estilo, qualidade e originalidade, por conseguinte, não têm relação
com modismos, imposições,
regras, tradições. São questões
individuais a serviço do poema, da
poesia. Na poética contemporânea, que se situa no final do século XX e no século XXI, há uma nova recepção: a
estética passa a constituir um hibridismo formal
a partir das experimentações com o uso de métricas livres, da assimetria, dos versos brancos, da variação temática.
Graça Pires é representante de um fazer poético
que não dissocia poesia e lirismo, estilo e qualidade. Sua obra apresenta, como vimos a respeito do intercambiamento
entre autores, traços de outro poeta português, António R. Rosa. Ambos exploram a imagem, trazendo-a para
dentro da palavra, bem como o fato de reiterar,
repeti-la, prolongando-a a partir da presença de outras palavras com as quais são construídos sentidos. Essa
premissa pode ser constatada no livro Ciclo
do Cavalo, publicado em 1975 e
composto por 72 poemas nos quais há uma extensão semântica da palavra-chave do título (cavalo). Guimarães (2008)
destaca que a extensão da imagem
poética suscitada pelo substantivo “cavalo” deve-se à presença de substantivos como salto, galope,
cascos, garupa, cauda etc, em uma reiteração
de palavras do mesmo campo semântico, acessando
a dimensão simbólica
da poesia.
Essa aptidão para construir, na linguagem, os sentidos do poema, também está presente em outros autores contemporâneos, e tem em Graça Pires a exposição de um corpus poético em que é recorrente o substantivo água, responsável pela sedimentação mental da imagem poética:
Sem possibilidade de fuga
e guardo, no olhar, a líquida sombra,
Eu não sei a cor dos navios,
quando os marinheiros avistam as dunas
e o cheiro quente da areia arde em suas bocas.
(PIRES, 2007, p. 34)
Nestes versos, extraídos da obra Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos (2007), o agrupamento lexical líquida, barcos, mastros, navios,
marinheiros e dunas constrói
o campo semântico de palavras como natureza,
mar, água e movimento. A
recorrência de termos semanticamente conectados expande o significado para fora da palavra isolada e
de seu sentido usual, trazendo-lhe uma série de possibilidades interpretativas e visuais. A unidade não tem o mesmo alcance
que a coletividade e, no poema, as escolhas no âmbito da linguagem revelam extraordinário vigor imagético.
Os termos fuga,
treva, sombra, rasga, condenados e errância juntam-se para imprimir a noção de que a infância se encontra aprisionada em um simulacro
temporal, pois a temática da memória, que busca o reencontro com os acontecimentos pretéritos, ocupa a linha central
do conjunto dos versos.
No arranjo da linguagem, pode se ainda analisar a sintaxe dos termos, predominantemente na ordem direta (sujeito
+ verbo + complemento) e a pontuação, que segue a norma padrão nos versos deste poema. Essa análise leva à assertiva
de que as divagações interpretativas se reduzem, contribuindo para o
entendimento do leitor. Além dessas
considerações, é possível formular que as metáforas são a base da construção poética como em “neblina no olhar”, em que a neblina metaforiza uma cortina que impede o acesso às memórias, à infância. Logo, o que se
pode dizer é que Graça Pires tem um estilo predominante imagético, metafórico, que recorre aos elementos da natureza para seu construto poético.
1.1 Leituras panorâmicas da obra de Graça
Pires
Em Graça Pires, a lírica percorre os planos da
fluidez mágica, histórica e relativista
da existência, das consciências em estado de conflito, uma vez que sua obra poética pode ser interpretada como um
espaço no qual a fragilidade e a solidão do
ser, a denúncia social e a infância perdida de forma saudosista e reminiscente estão presentes. Sua poesia se move pela lírica subterrânea e de superfície, simultaneamente trabalhando com o movimento
de ir e vir ao ritmo das vagas marítimas, elemento recorrente em sua escrita.
De acordo com as explanações de Oliveira (2009, p. 45) a respeito
do momento atual da
produção artística e intelectual,
Desta forma, poderíamos dizer que em Graça Pires há uma espécie de equilíbrio,
pois não prevalece nenhuma dessas forças, visto que sua poesia não se prende a modelos,
trafegando entre a lírica de superfície e a subterrânea. Da superfície, ela seleciona elementos
do cotidiano que trata com profundidade, mergulhando na complexidade dos acontecimentos que tocam a existência humana e chegando
ao subterrâneo através
das questões ligadas às inquietações do ser.
Essa forma de escrever confirmaria as alegações
de Oliveira (2009) de que a poesia de
superfície designa o conjunto da obra poética de autores que abordam o mundo externo, o cotidiano, a vida
doméstica e os eventos pitorescos e, por outro
lado, a poesia subterrânea evoca formulações acerca de elementos
complexos da existência e do universo
sentimental das vozes que falam no poema. Desta forma, o trabalho de Graça Pires traz elementos do mundo antigo e moderno
refletidos no eu lírico que vivencia
e traduz suas impressões do mundo exterior para o interior, propondo a inquietação como algo mais importante do que a compreensão dos fatos.
A análise de sua produção conduz ao aporte nos postulados de Baudelaire citados por Friedrich, o poeta que inaugura a despersonalização da lírica moderna:
Com Baudelaire começa a despersonalização da lírica moderna,
pelo menos no sentido que a
palavra lírica já não nasce da unidade de poesia e pessoa empírica, como haviam pretendido os românticos, em
contraste com a lírica de muitos
séculos anteriores. Não se pode levar suficientemente a sério o que o próprio
Baudelaire diz a respeito. O fato de que suas afirmações
se reportem a outras análogas de E. A. Poe não diminui seu valor,
ao contrário, situam-nas na linha certa. (FRIEDRICH,
1991, p. 36-37)
De acordo com Baudelaire, foi Edgar Alan Poe
quem separou a lírica da expressão
sentimental. Para Baudelaire, entretanto, o poema é uma formulação concebida pela “capacidade de sentir a
fantasia” e não como “capacidade de sentir do coração”.
Da mesma forma acontece na poesia de Graça
Pires: há certa ruptura com o sentimento.
Embora no poema em questão as imagens construídas pelas escolhas lexicais remetam ao sentimentalismo, sua
escritura é também uma experimentação da
fantasia que condensa a presença de um jogo de ideias inconscientes. A partir daí, interessa sobretudo que o poema
mobilize a imaginação do leitor, e não o apelo
ao seu sentimentalismo.
Com Baudelaire, tem início na lírica a
despersonalização: contrária à lírica anterior,
que se caracterizava pela sensibilidade exacerbada e romântica, agora o poeta deve ser guiado sobretudo pelo
intelecto, devendo ser, portanto, mais racional que sentimental. Baudelaire propõe uma postura poética mais
voltada para a criação que provém do intelecto que do coração.
A lírica em Graça Pires expressa-se na
reverberação do toque que afaga, quando
o substantivo “mão” imprime, reiteradamente, a noção do sublime. O poema transcrito do livro de poesias Uma certa forma de errância (2003),
valida nossa leitura:
Para que saibas. As tuas mãos vogando
As tuas mãos. Digo. Para que saibas.
Pássaros incendiados a sobrevoar-me
o sangue. Um tropel de luz a demandar meu corpo.
Digo as tuas mãos. Para que saibas.
No poema, a recorrência do substantivo “mãos”
exerce a função de levar o leitor a
fruir a alteridade lírica no texto: a mão esboça a relação entre o eu e o tu na ação do toque através das sinestesias táteis e constrói
a imagem no poema.
Podemos
afirmar que as mãos são fluidas, nômades, pois, ao se aventurarem no espaço em que se situam os elementos
metafóricos que referenciam e reverenciam a natureza (água, ar, terra e fogo), elas cumprem e realizam
a busca do inatingível. O eu lírico, assim, reinventa a
realidade a partir da fantasia poética e, desse modo, dialoga com as teorias de Baudelaire no processo da sua criação
poética, em sua contribuição com os
postulados sobre a fantasia.
A fantasia decompõe (décompose) toda criação; segundo
leis que provêm do mais profundo interior
da alma, recolhe
e articula as partes (daí resultantes)
e cria um mundo novo. Na deformação reina a força do espírito, cujo produto possui uma condição mais
elevada do que é o deformado. (FRIEDRICH,
1991, p. 55)
Usando a técnica da decomposição e deformação
do todo para isolar-lhe a parte (o
corpo pelas mãos), a poeta trabalha também com o processo de abstração, termo utilizado por Baudelaire para
definir a essência da fantasia. O teórico define a fantasia como a capacidade de movimentos abstratos do espírito
livre, isto é, “o devaneio independente de todo o objeto”
(FRIEDRICH, 1991, p. 57).
Ao analisarmos esse poema de Graça Pires,
constatamos que seus instantes poéticos
configuram a metáfora do processo criativo, processo de transformação, elevação da imagem observada, evocação e imaginação, desde o enquadramento na palavra poética, levando o leitor a interagir e quase que o obrigando
a comungar o seu olhar das coisas com o olhar do eu
lírico. Isso expõe uma cumplicidade mútua a partir do uso da linguagem criativa.
Em um movimento vertical e crescente dessas
“mãos frenéticas”, o eu lírico faz
uso de figuras de linguagem como a
metáfora, a comparação e a
hipérbole: “...As tuas mãos vogando/
como barcos...” são versos que se constroem a partir do recurso da metáfora comparativa ou comparação metafórica;
“Pássaros incendiados a sobrevoar-me/
o sangue” constroem e imprimem impacto, vigor imagético e “As tuas mãos próximas de tocar a lua” acende
a imagem hiperbólica que exprime o anseio
etéreo do eu lírico, a conexão com o inatingível, o escapismo. Todos os sentidos, desse modo, constroem-se no
âmbito da linguagem portadora de noções, representações, simbolismos, imagens, como podemos
verificar no excerto a
seguir:
O arpão dos gemidos sangrando suas bocas.
Foi o vento – disseram os homens
e desenharam na areia o madeiro e a vela.
Foi o escuro – falaram os meninos.
Tinham sonhado toda a noite com piratas.
E o velho sábio, antigo como as tempestades,
ninguém se salva de um naufrágio
com a bagagem às costas.
(PIRES, 2015, p. 24, grifos da autora)
Do livro Uma
claridade que cega (2015), este poema apresenta uma noção recorrente na obra de Graça Pires: o vigor
imagético construído a partir de imagens que buscam,
nos elementos da paisagem natural,
recompor internamente os estados
de quem é representado nos versos. Pode se assegurar, assim, que o espaço
interno é projetado
no espaço externo,
como já mencionado no tocante à sua poética.
Interioridade e exterioridade intercambiam-se para construir
e estabelecer a conexão do ser
com o não ser: o homem e a natureza. No verso, “O navio não voltou –
gritaram as mulheres” a ausência da embarcação provoca uma reação de desespero: mulheres, homens e
meninos se veem apartados daquilo que é
vital, a própria existência (navio). A
linguagem, por conseguinte, passa a
ser reveladora de ausências, distanciamentos fantasiados, decomposições, deformações, tal como analisa
Friedrich a partir da
obra de Baudelaire:
A mais importante contribuição de Baudelaire ao
nascimento da lírica e da arte modernas situa-se, por certo, em suas
discussões sobre a fantasia. Esta é, para ele, que a equipara aliás ao sonho, à capacidade
criativa por excelência, “a rainha das capacidades humanas”. (FRIEDRICH, 1991, p. 55)
Poderíamos afirmar que a decomposição de
determinada realidade é a base da
fantasia. O gemido do arpão sangrando as bocas das mulheres, dos homens e dos meninos ante a ausência daquilo que é
iminentemente rotineiro e se ausenta em determinado dia é o simulacro da fantasia de que fala Baudelaire. No poema analisado, a decomposição, o esfacelamento
do que um dia se mostrou perene (a presença
do navio) culmina com uma reflexão: “...ninguém se salva/ de um naufrágio com a bagagem às costas”. Identifica-se,
portanto, um movimento ondular interno: em
determinado momento, se tem; depois, já não mais. O navio que foi, já não é mais; ora presença
ora ausência. Há uma inconstância do que se pressupõe constante, porque a bagagem
nas costas impele à inevitabilidade das intempéries.
É pertinente observar, entretanto, que a
decomposição do elemento real de que
fala Baudelaire deve ser entendida no sentido positivo, visto que nela reside
“a força do espírito, cujo produto possui uma condição
mais elevada do que o deformado”
(FRIEDRICH, 1991, p. 55). Não se trata, pois, de eleger a deformação em si como o objeto de maior relevância, e sim de dar ênfase ao espírito deformador, diríamos.
O mundo novo construído no ato de deformar já não representa “um mundo ordenado realisticamente.
Será uma imagem irreal que já não se deixará controlar pelas ordenações
normais e reais” (FRIEDRICH, 1991, p. 56).
A decomposição do real em Graça Pires se
vale recorrentemente de imagens externas
para recompor as imagens internas, seja nos poemas em que o eu se revela na forma, seja nos poemas em que outros eus são revelados pela voz narrativa. Na primeira ou na terceira
pessoa, imageticamente, a poeta portuguesa esquadrinha por dentro para recompor do lado de fora:
ao sabor da seiva,
As árvores escolhem o tom de verde
que o sol prefere dispersar nos troncos.
É primavera.
As aves regressam em bandos
e os amantes ajustam a paixão
nas grutas do corpo.
As crianças trazem no olhar
uma cintilação quase divina
e os descrentes procuram um deus
no claustro da morte
Os poetas ofertam-nos as primícias
com os frutos a gretarem-lhes a boca.
(PIRES, 2015, p. 36)
O excerto mostra a tessitura paisagística que
resulta dos frutos a gretarem a boca dos poetas, que diluem o real e o reconstroem no próprio imaginário ao dialogar com o
imaginário do terceiro ser a compor a instância da poesia: o leitor. A noção de diluição revela-se no instante em
que “As árvores escolhem o tom de verde/
Que o sol prefere dispersar nos troncos”, quando é primavera. A dispersão do verde expõe a dispersão da vida, o
movimento existencial em que nada é fixo e inerte.
O que é unidade se faz muitos: as árvores que
escolhem o verde, as aves que regressam em bandos, os amantes que
ajustam a paixão nas grutas do corpo, as
crianças com olhar cintilante, os descrentes à procura de um deus, os poetas
que ofertam-nos
os seus frutos (a poesia).
Observa-se, ainda, uma justaposição de
elementos que tece, verso a verso, a técnica
da paisagem observada, porque, para a poeta, o mundo não se divide, nem se define em gêneros, não se rende à categorização. Ao contrário, assume-se metamórfico: tudo é movimento o
tempo todo; nada é fixo e imutável. Mesmo o real se transfigura na tessitura da poesia (CANTINHO, s/d2).
Em seu livro, Uma vara de medir o sol (2018), Graça Pires elege um elemento primordial da vida, o sol, como a
metáfora-título. Assim, as estrelas mais importantes do universo passam a ser Alfa e Ômega, justapondo a dicotomia
homem e natureza. Não se trata de
uma sobreposição destituída de sentidos, ao contrário, ao se colocar lado a lado um e outro é possível
perceber quão conectados estão: o homem é a natureza,
ao mesmo tempo que a natureza é parte do homem, ainda que, por vezes, essa conexão se rompa. Importa,
contudo, que exista
uma simbiose irrevogável entre os dois:
Eram verdes os pássaros que traziam um prado colado
E os rios tão verdes. Tão verdes as águas.
Tão verdes os peixes.
Tão verdes os barcos invisíveis.
Tão verdes as mãos
com que agarrávamos o tempo.
(PIRES, 2018, p. 27)
Pode se principiar uma análise deste poema a
partir da noção de que o corpo é um
invólucro de memórias e que o eu lírico, recorrentemente, revive no poema a sua infância, como se fizesse desse
momento da existência um lugar paradisíaco para onde vai em busca de refúgio: “Os rituais da infância não nos deixam esquecer”.
Dessa maneira, o fato vivido não é mais o mesmo; no entanto, ao ser revivido, a vida de outrora é recriada. O
retorno à infância pela rememoração é a maneira
como o eu lírico volta ao passado, cujos sentimentos são despertados, principalmente, pela referência ao verde:
sombra das árvores, trigais, pássaros, rios,
águas, peixes, barcos, mãos. O verde que remete à multiplicidade
simbólica, à esperança que é retomada
pela linguagem poética.
2 CANTINHO, Maria João. Desta embarcação possessa
que é poesia e chamamento. Escritos avulsos da pesquisadora sobre a
obra da poeta Graça Pires. Texto inédito, cedido pela própria autora.
Destarte, na instância da linguagem, a
reiteração das formas verbais “Era” (verso
2) e “Eram” (versos 3 e 4) abre uma fenda temporal pretérita e é lá, no passado da infância, que o eu poético encontra a sua natureza verde:
tudo era verde, porque não prenunciava o porvir. Com o amadurecimento vieram as desilusões e o flagelo do tempo. Referir-se
ao verde é, ao mesmo tempo, uma forma de afirmar a ingenuidade pueril,
a inexperiência, as boas lembranças, como também a perspectiva de que a vida pode ser melhor se revivida no
espaço imagético do poema.
A despeito da cor verde que irrestritamente
toma conta da memória do eu que fala
no poema – “Tão verdes as mãos com que agarrávamos o tempo” – (grifo nosso), podemos nos servir do fato de que
as cores só se realizam aos olhos humanos mediante a luz que, por sua vez,
quando natural, emana da radiação solar: o
sol está no centro do livro Uma vara de
medir o sol (2018). De acordo com o Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos,
costumes, gostos, formas, figuras, cores, números
(2012), a vara simboliza o poder, a autoridade, e se alia à metáfora da
luz, calor e vida: o próprio sol que viabiliza
o verde como a instância da infância.
Identifica-se, desse modo, um silêncio no
poema, que não é o calar dos acontecimentos
rememorados, mas sim o da contemplação que faz avivar a infância verde, tempo de sol (avivamento) e tempo
do próprio tempo, quando não se parecia que
a roda da vida giraria e acabaria ancorando-se noutras paragens, as do futuro, momento em que os “barcos invisíveis” não
passariam disso: um evento que existiria apenas
mnemonicamente.
No poema ora analisado constata-se, também, a
maturação que resulta de uma depuração
da linguagem simples.
Dessa simplicidade resulta
a imagem cristalina tal qual as águas verdes.
Trata-se de um exercício de escrita em busca da condensação absoluta da linguagem com que a poesia portuguesa
contemporânea se alimenta
(LOURENÇO apud ROSA, 2018).
A imagem cristalina é construída também na técnica descritiva, como nas passagens: “verdes a sombra das árvores”, “verdes os trigais pejados de papoilas”, “verdes os pássaros”, “voo rasante”, “os rios tão verdes”, “tão verdes os peixes”, “tão verdes os barcos invisíveis”, “tão verdes as mãos”. O verde mostrado reiteradamente não poderia deixar de culminar com o termo intensificador “tão” (versos 6, 7 e 8), para categorizar o avivamento da memória do eu lírico. Isso reforça a solidão e o silêncio por viver em um tempo que outrora escapara das “mãos com que agarrávamos o tempo”. Contudo, conforme debate a pesquisadora Gisela Rosa, a solidão não adquire o sentido literal da palavra na obra de Graça Pires.
Apesar da solidão e do silêncio sempre presentes na
escrita da autora, esta nunca está só, no sentido literal
da palavra. Acompanham-na todas as nuances do mundo vivido, por viver e,
ainda, o dos leitores presentes neste círculo
próximo da palavra poética que ao leitor é oferecido, uma espécie de “encarnação sensível do Infinito
no finito”, uma das descrições do acto poético como nos refere Eduardo
Lourenço. (ROSA, 2018, p.
16)
Destarte, a solidão não existe literalmente,
porque ao revisitar o passado, a autora
encontra nele os eventos de que necessita para não se sentir solitária no sentido
atormentador. A poeta transita do evento concreto/real que expõe o quotidiano
e alcança algo de utópico, diríamos, à medida que faz a realidade se transmutar em imaginário, em
lembranças.
Podemos formular, ainda, que existe um
jogo de oposição no interior do mesmo substantivo: solidão. Se a solidão
existe, é para não a sentir que se busca abrigo
na memória. Logo, ela deixa de existir. Paradoxalmente, existe e inexiste ao mesmo tempo. Há um movimento de sentidos
contrários, uma construção semântica a partir da antítese
solidão / não solidão, do silenciar e rememorar, aspectos
nitidamente visíveis em sua obra. Há uma mágica poética emanando-se em A vara de medir o sol.
Nesse sentido:
A magia poética do livro “Uma Vara de Medir o Sol” é produzida
com a matéria-prima do silêncio e das
lembranças. Em sua décima terceira obra a poetisa
portuguesa compõe seus versos entre as fronteiras da vida natural e da elaboração cultural. Nela o espaço da
saída é também o da volta, que por sua vez é a instância da infância; em
seus ritos é impossível perder o fio da memória.
(SANTANA, 2013, p. 1)
Não se trata de uma memória puramente
saudosista, mas de um relembrar contínuo
que busca alento para as vicissitudes dos fatos inscritos no presente. Se o agora não é o melhor porto em que se
ancorar, o antes representa o ancoradouro seguro.
E esse antes é recuperado por um processo mnemônico.
Outro aspecto relevante no poema de Graça Pires
é o animismo, ou seja, a poeta recorre
à natureza como fonte de elementos com os quais constrói a simbologia
poética. Contudo, tal como ocorre em outro poeta português com o qual dialoga, Ramos Rosa, o animismo em Graça
Pires não é mera alegoria para retomar o passado
saudosista. A construção simbólica na obra piresiana abre muitas possibilidades e sentidos diversos
(GUIMARÃES, 2018), que discutiremos
a seguir.
Na trilha da simbologia piresiana, Santana
(2013) formula que existe uma expectativa
da iminência de que o leitor está à beira de um despenhadeiro no fundo do qual se encontram aflições
primitivas. Essas aflições,
entretanto, acendem luzes
sobre o passado e, ao mesmo tempo, uma claridade que
vislumbra o futuro. Pode se dizer que aí reside
um campo abundante para a lírica
moderna a respeito
da qual fala
Adorno, ao identificar uma idiossincrasia do pulsar
da lírica ante as coisas.
A idiossincrasia do espírito lírico diante do predomínio das coisas é uma forma de reação à reificação do mundo, ao domínio da mercadoria sobre o homem, que desde o início da era moderna se estendeu e, desde a época da Revolução Industrial, se alargou como poder dominante da vida. (ADORNO, 2003, p. 44)
Os postulados de Adorno (2003) apontam para uma
reação da lírica moderna que se torna
vizinha de uma forma de protesto e negação do mundo e das coisas a partir de uma poesia que dialoga com a
utopia do mundo, onde tudo seria de outra forma:
um mundo mais humanizado. Entretanto,
[o] conteúdo
de uma poesia não é, com efeito, apenas a expressão de afetos
e experiências pessoais. Estes só alcançam a arte se conseguirem participar do universal, graças à sua forma estética
específica. Não é preciso
que a mensagem de uma poesia lírica seja uma realidade que todos percebam imediatamente em si mesmos.
[...] O que eleva a poesia lírica ao universal
é a imersão numa realidade individualizada. [...] A figuração lírica busca atingir o universal por meio de uma individualização implacável. (ADORNO,
2003, p. 47)
Decididamente, a noção do que é universal e
coletivo perpassa o sentido do que é
individual: a experiência individualizada é de domínio vivencial de quem a vive apenas. Mas, a partir do instante em que
outros indivíduos partilham de experiências
idênticas ou semelhantes, o universal e o coletivo se fazem do que é
individual. A experiência lírica, de
acordo com Adorno (2003), individualiza o que é universal e ou, ao mesmo tempo,
universaliza o que é individual.
Dessa forma, estabelece-se um vínculo entre
o mundo poético
e o universo da realidade, entre as instâncias da estética e da história,
levando-nos a compreender que a obra poética, embora não
seja resultado de um delírio, não seja uma elucubração, transcende o real e se realiza
na transfiguração da realidade.
A realidade no poema, assim, torna-se uma segunda realidade, considerando- se o fato de que o objeto de que trata não é mais, pura e simplesmente, aquilo que está sendo retratado. Cada elemento da instância semântica do poema não é mais o mesmo elemento que serviu de inspiração ao poeta. Isso equivale a dizer que, no poema, não existe realidade senão uma outra que existe apenas no domínio do poeta.
O viajante ajoelhou-se sobre a terra
e cantou e cantando rezou.
Carregava nos ombros o afluente de um rio
para o largar no longo chão das lavouras.
O pão ázimo lhe sufocava a fome.
A chuva lhe aquecia a sede.
Seu coração emudecia quando um denso nevoeiro
(quase lágrimas) lhe gravava na boca
o clamor dos glaciares desmoronados.
(PIRES, 2018, p. 40)
Ainda que a realidade reproduzida no poema retrate
um cotidiano reconhecidamente vivenciado pelo homem que
se vê aprisionado por Cronos
e pelas garras do tempo das
quais não pode se desvencilhar, tampouco se pode ver livre do peso do tempo sobre seu ombro. No excerto anterior, o
real retratado é do domínio do poeta, adquirindo contornos de imaginário, porque a linguagem, ao metaforizar o
fato, o reconstrói de outra forma, redimensionando seus significados. Carregar
nos ombros o afluente de um rio, por exemplo,
tem, na metáfora hiperbólica,
a magia da linguagem que reconfigura o fato objetivo e dá-lhe status de subjetivo e novo.
Neste poema de Graça Pires, a experiência individual do sujeito
que se ajoelha sobre a terra (homem/natureza), apesar de ser obtida a partir de uma vivência
individual, revela uma experiência universal. A linguagem utilizada
é a responsável por essa transmutação: o viajante não é
identificado pelo nome, sendo tão-somente
nomeado como “o” viajante. Embora seja utilizado o artigo definido diante de todos os substantivos presentes
no poema – “a terra”, “o afluente”, “o pão”,
“a chuva”, “a sede”, “o clamor” – não existem elementos que
concretizem uma experiência individual por parte do eu lírico.
Isso se deve ao fato de que não é propriamente
de interesse do sujeito lírico particularizar
tais experiências que remetem à relação homem/natureza, podendo
ser elas consideradas coletivas e universais, visto que se trata da
representação de uma comunhão entre o
eu que enuncia e o ambiente que o cerca. Nele, a dor de um é a dor de todos, trata-se de uma experiência de partilha por parte
da poeta.
Dessa forma, os glaciares desmoronados não são
uma metáfora que retrata uma
particularidade, mas sim um recurso poético que emoldura a condição humana universal. A obra de Graça Pires não
tematiza, portanto, apenas as suas memórias:
ela também aborda temas sobre as vivências de terceiros.
Em Uma vara de medir o sol (2018), a autora elege a estrela que está no centro do sistema solar e a coloca como um ponto nevrálgico de sua poesia: o sol é o tempo que envolve a vida e a conduz para o fim. A vara com que se mede o sol pode ser interpretada como a própria vida inserida no tempo. Ela se prende à inclinação da estrela e vai, paralelamente, das sombras às luzes, sendo levada ao destino conforme o tempo determina.
De pé, demoradamente invocando
de uma vara, presa à inclinação do sol,
(PIRES, 2018, p. 37)
Nesses versos, a poeta se inclina à
inevitabilidade do tempo marcado pelo movimento
solar e se reconhece impotente porque presa simultaneamente à sombra e à luz (metáforas das intempéries, das
condicionantes do existir). Ao prefaciar a 1ª
edição de 2018 de Uma vara de
medir o sol a convite de Graça Pires, Gisela Gracias Ramos Rosa disse que se sentiu desafiada e feliz pelo
privilégio de ter que tecer ponderações acerca do que chamou de “a intensa
claridade que a autora nos oferece”
(ROSA, 2018, p. 11).
A claridade de que fala Rosa respalda-se na metáfora do tempo nitidamente posto sob o caminhar do sujeito, conduzindo-o, irrevogavelmente, a um destino cujo epílogo é a morte, a finitude das coisas e, concomitantemente, o sentido da vida. Viver é ter a certeza da morte; morrer é a imposição da saudação da vida antes do fim inevitável. A vara, metáfora da vida “presa à inclinação do sol”, nutre-se da luz, que por sua vez sucumbe às sombras do incontrolável movimento solar e, na roda do existir, é incapaz de controlar as coisas.
Queria prender no cabelo
uma haste de sol ou um pássaro,
mas ninguém retirou as trepadeiras secas
Ninguém indagou o brilho deslumbrado
Apenas o azul silencioso dos cumes
se abrigou no regaço onde as meninas
para que o mel regresse às colmeias silvestres.
Na instância da linguagem, o emprego da forma verbal no pretérito imperfeito do modo indicativo (queria), no primeiro verso, antecipa a consciência de que não é possível ter controle sobre as coisas, porque à vara (vida) de medir o sol (tempo) não foi dado o poder de qualquer controle sobre si mesma. Por essa razão, o poema põe-se como um grito desesperado ante a tempestade do existir: “prender no cabelo/ uma haste de sol ou um pássaro” está no âmbito da intenção, não é um fato. A realidade factual é uma antítese da metáfora de pássaro e de haste de sol (liberdade, escolha). A existência é tempestuosa, marcada pelo incontrolável. “As trepadeiras secas” e os “muros sulcados pelas chuvas” são a efetivação de uma sentença: o tempo tudo devora; nada é perene no abraço temporal. “O golpe da noite” é incisivo e permite apenas à memória o abraço das mães: a infância para a qual não se pode mais retornar.
Neste poema, a construção imagética é impactante,
repleta de simbologias representativas
do que o sol (tempo) é capaz de fazer com a vida (vara). A luz é certa, mas “o golpe da noite” é
imperativo. Essa ideia é enfatizada pelo emprego do pronome indefinido “Ninguém”
(versos 3 e 6). Ninguém
foi capaz de retirar as trepadeiras
secas para que o verão retocasse a cal dos muros; ninguém percebeu o brilho do olhar diante do golpe da noite. Intensifica-se
a negação, a desconstrução do mel
cujo regresso às colmeias é apenas um desejo, pois se sabe que o sol tem mais poder que a vara de o medir: o tempo impõe-se
sobre a vida.
Pode se dizer que existe, no poema, um profundo
lamento pelo que se perdeu no tempo
e que não pode mais ser recuperado. Viver é certo, mas perder a vida é a certeza mais angustiante: trepadeiras
secas, muros sulcados, golpe da noite, vulto
dos corpos... Tudo que resta é o azul silencioso dos cumes, ou seja, a
memória da infância, o desejo
de que “o mel regresse
às colmeias silvestres”.
A linguagem em Graça Pires é muitas vezes
inquieta, provocando angústia e dor.
As escolhas lexicais compõem a tessitura do lamento – “trepadeiras secas”, “muros sulcados”, “golpes da noite”,
“vulto dos corpos” e “azul silencioso” – e juntam- se para construir o campo semântico da dor, das perdas
evocadas pela memória.
De acordo com Rosa (2018), Uma vara de medir o sol (2018) é uma obra poética sobre o lugar da consciência, sobre a dinâmica da
criação poética. Nessa dinâmica,
incluem-se questões ligadas ao meio ambiente, à natureza sob o jugo do homem, questões que aludem às relações de
vínculo quase sempre conflituoso no tempo moderno.
Para a pesquisadora, aos poetas
não deveria ser dada a escolha
de não tratar das temáticas ambientais, visto que a arte literária não pode se
furtar à manifestação dessa consciência. Esses sentidos construídos na linguagem encontram
ressonância em suas formulações
a respeito do poema analisado:
A palavra mede aqui a inclinação do sol na terra e no humano,
revelando a extensão da sombra, mas,
essencialmente, o seu contraste. Reflexo de si e dos outros, a autora cria a
partir de uma geografia de sentidos de um quotidiano assimilado e vertido na água
do poema. (ROSA, 2018, p. 16)
As ponderações da autora legitimam a noção de
que, se a vara (vida) mede o sol
(tempo), a palavra mede “a inclinação do sol na terra e no humano, revelando a extensão da sombra” (ROSA, 2018, p. 16). A
semântica da palavra sol remete à linguagem
capaz de materializar na memória o passado, mas incapaz de torná-lo um fato objetivo. Há, desse modo, uma solidão e um silêncio azulado dos
cumes, em que as meninas escondem o abraço das mães, desejando que ele
retorne: “o mel regresse às colmeias
silvestres”. Acrescentando à análise do poema, Gisela Rosa conclui: “[...] Graça Pires recorre a
instrumentos antigos, move o seu arado, lavrando a terra poética com a transparência e a intensidade de autores
como Daniel Faria, Herberto Helder ou Rilke” (ROSA,
2018, p. 16-17).
Desse modo, a pesquisadora Gisela Rosa (2018) evidencia
a existência de uma instância
dialógica entre a obra poética de Graça Pires
e a produção dos autores
citados. Segundo sua leitura, Herberto Helder e Graça Pires mostram um componente de alucinação, ainda que na obra do primeiro exista uma tênue conexão
do mítico com o utópico, enquanto na
da poeta portuguesa haja uma assimilação de um fluxo poético que parte
do dado concreto quotidiano e se instala no utópico. De Helder, temos, por exemplo,
a título de validação do que diz Rosa:
Um poema cresce inseguramente na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo.
as raízes minúsculas do sol. [...]
O componente de alucinação e utopia em
Helder se entrevê na noção de que o
poema emerge e tem origem na profundidade biológica do poeta, de onde nasce ainda sem palavra:
é uma pulsação, uma espécie
de libido da linguagem. O poeta
contrapõe, usando o tempo verbal no presente, as duas
dimensões da existência: seu mundo
físico-espiritual e o mundo físico-material (o interno e o externo). É da confusão da carne e dos canais do ser que
nasce o poema, mas é da esplêndida violência da vida que nasce o sol.
Em Graça Pires, o caminho inverso é
identificado por Rosa (2018): a poeta parte
de sua própria exterioridade, de suas vivências para alcançar a instância do poema (sua interioridade). O fato vivido,
por conseguinte, transforma-se em matéria- prima do poema:
e pelos amigos que nunca voltaram.
Os dias foram cerzindo em seu olhar
o caminho esquecido das mais antigas dores,
(PIRES, 2018, p. 30)
Identifica-se uma dor, um vazio do eu lírico: a
poesia está no olhar, nas relações
com a vida geradora do poema. As experiências da infância revelam-se sob a luz da memória: o tempo verbal
pretérito evidencia a noção de que o sujeito lírico se transporta para o passado
e dali busca elementos para a construção do poema.
Quanto à aproximação de Graça Pires com o poeta
Daniel Faria, Rosa (2018) identifica que:
Da leitura da obra de Graça Pires, reconheço na dinâmica pulsante da sua poesia um fluxo veloz, “um grito do destino” “que define a vertigem que nos derruba/ e que nos ergue” e esse movimento ou força em que progride o poema aproxima-a mais de Daniel Faria com os seus instrumentos de lavoura e a sua arte metafórica tão próxima do sol, como um “candeeiro branco” “que se ergue entre as mãos (Daniel Faria, em Poesia), onde julgo encontrar algumas afinidades entre escritas e vocações. Se não consegues mudar o teu mundo, imagina essa possibilidade com a tua solidão. (ROSA, 2018, p. 18)
Ao aproximar
Daniel Faria e Graça Pires, a pesquisadora identifica que ambos fazem da metáfora pulsante a seiva do construto poético:
Na parede de dentro da escrita e penso erguer
como a paveia atrás do segador.
Vejo os pés descalços dos que correm.
Grito-lhes: imaginai o que nunca tivestes nas mãos
Correi. Como o segador seguindo o segador
Numa ceifa terrestre, tombando. Digo:
Imaginai
(Daniel Faria apud Rosa, 2018, p. 18)
Nesta obra Uma vara de medir o sol (2018), a poeta portuguesa evidencia a ruptura do homem com sua origem, à medida que se identifica, nas relações com o espaço natural, um desequilíbrio responsável por subverter o paraíso. Essa subversão provoca uma cisão homem/espaço e uma destituição marcada pelo lamento, o murmúrio: o que era lugar de sacralização da existência passa a ser, agora, um problema.
Antes do homem havia a terra:
de espanto e guardou, milenarmente,
Depois da terra veio o homem.
E o homem tornou-se um morador incauto
(PIRES, 2018, p. 46)
Ao perder o paraíso, seu lugar de origem, o
homem expõe sua condição de criatura
incapaz de salvaguardar o espaço natural original: a Terra. Assim fazendo, torna-se alvo do desprezo dos deuses: o
paraíso original é deixado à mercê da indiferença da criatura humana.
Pode se dizer, então, que Graça Pires mostra-se inquieta
ante essas questões
de ruptura do humano com o natural e revela seu estado de consciência e
angústia em relação
ao desmonte desses dois elementos: de um lado a decomposição do próprio homem que se
tornou o “morador incauto” da Terra e, de outro, a Terra ignorada
pelos deuses (BUCIOLI, 20123).
De acordo com Bucioli (2012),
Graça Pires expõe sua angústia
no tocante ao o
universo em decomposição, à medida que o espaço original vem sendo destruído pela ação humana que ignora sua
ancestralidade. E, ao ignorar isso, perde-se, pois não preservando, não se preserva
também.
Uma
vara de medir o sol (2018), portanto, é uma eternização do que se
foi e, ao mesmo tempo, uma projeção
do devir. Somos a terra ardente sobre a qual caminhamos, somos mocinhos e algozes aprisionados na trilha do
destino e o tempo nos devora a cada
passo: “O chão arde em nossos passos, vítimas/ e culpados do desvario dos caminhos” (PIRES apud Rosa,
2018, p. 20), tema igualmente presente no seguinte
poema:
Regressei com a lentidão de quem vem de longe
do mar com pedras na boca para cuspir nos lugares
Só a palidez das minhas unhas denunciava
o sinal de alarme que me atravessava os pulsos
A caminhada apresenta-se longa e o caminhar é
ardente, os pés queimam, as foices
sulcaram o existir. Nada foi brisa, exceto a infância recorrente no poema de Graça Pires. O eu lírico é incisivo:
o algoz é ele mesmo, muito mais do que o herói da própria
história. Trata-se de uma usurpação
da vida pelas sombras dos barcos: “... a dupla sombra/ dos barcos me
roubou, em golpes certeiros, / o trigo onde se
afundaram as foices”.
Logo, o trigo (fertilidade/alimento/prosperidade) deu lugar à dor
(os golpes de foice). Tal lamento é uma canção constante no poema e na produção
da poeta.
Pode se afirmar, a partir dos postulados e das
análises apresentadas neste capítulo,
que a obra poética de Graça Pires expõe suas próprias inquietações a respeito
das relações do homem com a natureza
e consigo mesmo. Isso fica evidente
a partir da constatação de que o passado ressurge como a possibilidade de refúgio
ou de recuperação do paraíso
perdido.
3 BUCIOLI, Cleri Aparecida Biotto. Uma vara de medir o sol: canção
de alerta ao homem. 2012.
Escritos avulsos sobre a
obra poética de Graça Pires. Texto inédito, cedido pela própria
autora.
Ora, a atitude
de se predispor a recuperar
algo ou de reviver o passado recorrentemente confirma que o agora causa certo incômodo e, desse modo, faz-se
necessário reconstruir na memória o tempo e o espaço
das experiências prazerosas,
da real felicidade.
Em um movimento de ir e vir no tempo, tal qual
o da água presente em seus poemas, a
escritora abre os interstícios da memória e se transporta para o passado, em uma ação incessante, conduzindo o leitor para esse lugar do
fazer poético.
A água como elemento recorrente em sua poesia
e, sobretudo, na construção da
metáfora, será o foco da análise no
capítulo dois. Nesse sentido, podemos postular
que a metáfora da água na poesia de Graça Pires possui relação íntima com
as experiências de quem reside diante
do mar português, referência histórica de todo o construto poético que referenda
o espaço idílico dos grandes nomes da literatura desse país.
1 2.1 A metáfora
da água e a lírica na poesia
Falar sobre a metáfora da água na poesia de Graça Pires requer que mobilizemos
alguns conhecimentos de base teológica, filosófica e mítica. Faz-se produtivo
também buscar entendimento acerca dos três tipos de consciência: mágica, histórica e relativista (OLIVEIRA, 2009).
Do ponto de vista teológico, formulações teóricas sobre a água compõem uma tessitura discursiva cuja linearidade recorre à gênese desse
elemento. Nesse sentido, a água está
na história primeva da Criação. O livro do “Gênesis” da Bíblia relata que no
princípio o “Espírito de Deus pairava sobre as águas”. De acordo com Goedert (2004) sobre a simbologia da água
na teologia, deve se levar em conta dois aspectos
antagônicos: um é sinal de vida, a
purificação, a presença de Deus. O outro é destruição, os perigos existentes
na água pelos monstros que nela habitam,
o caos, a ausência de Deus. “Na maioria das tradições religiosas a água é considerada
a ‘prima matéria’, a matéria-prima da criação” (CAVALCANTI, 1999, p. 15).
O conhecimento filosófico, nas formulações de
Bachelard (1997), postula que certas formas materializadas a partir dos devaneios poéticos
representam a intimidade e os devaneios
com os atos criadores. Nesse sentido, pode se dizer que a poesia é resultado do ato criador,
fluida como a água, considerando-se a interpretação
bachelardiana. Na obra poética de Graça Pires, a poesia emerge da visão e da vivência com a água a partir
do instante contemplativo do eu lírico.
Sob a perspectiva do conhecimento mítico acerca da água, Cavalcanti
(1999,
p. 17) assim se posiciona:
Considero que os mitos da água, assim como os mitos
relacionados aos cinco elementos, constituem no seu conjunto uma discussão sobre as questões
espirituais e, portanto,
essenciais do ser: sua origem,
desenvolvimento e finalidade última. Falar sobre a água, a terra, o fogo
e o ar é falar da cosmogêsene, do
princípio e do final da realidade da matéria,
do ciclo cósmico
de nascimento, morte e renascimento
espiritual.
O conhecimento mítico, de acordo com Cavalcanti
(1999), está na base das formulações que envolvem a essencialidade do ser: perpassa
a origem, o desenvolvimento e a morte.
Abarca o início,
o meio e o fim. É
alfa e ômega.
Todas essas interpretações convergem para as
afirmações de Oliveira (2009) em seu
estudo a respeito das consciências pré-histórica, histórica e pós-histórica. A fusão dessas três consciências é a busca irrevogável na lírica dos românticos, simbolistas e surrealistas. Assim,
sobrepõem-se, no plano dos devaneios poéticos,
os universos objetivo
e subjetivo, da materialidade e da espiritualidade, da consciência e da
inconsciência (OLIVEIRA, 2009). A poeta objeto deste
estudo acessa, por meio da linguagem,
a voz da comunidade ao colocar a atenção em tudo que se passa à sua volta e ressignificar seu mundo interior numa
vivência íntima da realidade subjetiva, reinventando a realidade
dentro da consciência pessoal.
A poesia de Graça Pires pode ser compreendida como uma viagem, um mergulho vivencial. Consoante suas palavras, sua poesia é a expressão intimista
que traz luz à solidão, que debate o amor e os acontecimentos do dia a
dia. Há uma simbiose do pessoal com o
social em compromisso com a linguagem estética e o sentimento.
Sua linguagem é a voz da sua comunidade e, em consonância com a declaração de Octavio Paz em O arco e a lira (2012, p. 48) sobre o poema que “se alimenta da linguagem viva de uma comunidade, de seus mitos, seus sonhos e suas paixões, ou seja, de suas tendências mais secretas e poderosas”. A essência da linguagem na poesia de Graça Pires é o simbolismo obtido a partir metáfora da água, elemento que figura como uma espécie de força construtora de sua obra poética e, consoante Bachelard (1997, p. 6)
é também um tipo de destino, não mais apenas o vão destino das imagens fugazes, o vão destino de um sonho que não se acaba, mas um destino essencial que metamorfoseia incessantemente a substância do ser.
Desta forma, constatamos que, neste cenário
aberto à paisagem
natural voltada para o mar, o
sujeito lírico se alimenta e potencializa a imaginação poética numa conexão tripla: poeta, natureza e comunidade.
Menano (2014, grifos do autor)4 corrobora essa ideia, ao sentencia
A voz da poesia de Graça Pires é do seu tempo, do seu
lugar, é líquida, ocupa o seu espaço,
por vezes um não-espaço (metafórico), preenchido por barcos e falésias. [Trata-se de] ‘uma linguagem líquida a
inundar todas as margens’, a sua poesia será um ‘fantasma’, no sentido platônico, da realidade.
A água, componente da matéria mineral e da
vida, está em toda parte e constitui
o invólucro, ou seja, se contém em si mesma na condição de matéria nos estados sólido, líquido e gasoso. Por outro
lado, embora fluida quando se liquefaz, pode
ser contida, aprisionada, viver de modo estanque nos lagos, nas represas, nos poços. Assim, ao mesmo tempo em que é fluida e, por isso, representa a liberdade, é também sujeita
ao aprisionamento.
De acordo com o Dicionário de Símbolos, de Jean Chevalier
e Alain Gheerbrant (2012), a água, entre suas significações simbólicas,
pode resumir-se a três temas
dominantes: a) fonte de vida; b) meio de purificação e c) centro de regenerescência.
Ao considerarmos a água no estado líquido,
fluida, sua representação metafórica relaciona-se diretamente com a lírica líquida da
poesia de Graça Pires. A simbologia das imagens poéticas
apresenta-se, a partir
da expressão subjetiva
do eu lírico, transversalmente pelas
imagens da água em sua criação
poética.
Na base da matéria e na base da vida, o termo
água designa o elemento da natureza,
destituído de todo e qualquer uso que dele se faça.
4 MENANO, António Augusto.
Sobre a poesia de Graça Pires. Escritos avulsos
do autor sobre a obra da poeta
Graça Pires. Texto inédito,
cedido pela própria autora.
Nesse sentido, esse elemento é um bem natural
que viabiliza a vida. Por essa razão, é objeto de pensamento, devaneio, imaginação (REBOUÇAS,
2002). “A água é o símbolo das energias
inconscientes, das virtudes informes da alma, das motivações secretas e desconhecidas” (CHEVALIER, GHEERBRANT, 2012, p. 21-22).
No sentido de sustentação da vida, encantadora
de sentidos, pura, a água é essência,
está na matéria humana (corpo) e no imaginário (mente); é o elemento que garante o estar na realidade concreta. Sem a água, a
existência esgota-se e finda-se. Ela
não é somente a fruição da vida. É a própria vida. É mais que um elemento carregado de simbologias: mais que sua significação, ela é, e
sendo, carrega sentidos; transcende a
si mesma. É matéria por vezes incontida, inquieta, avessa à prisão, evade-se livremente; outras vezes permanece
contida, aprisionada. De uma e de
outra forma, sua sentença maior é fluir, porque mesmo aprisionada, evapora
e escapa para, depois, seguir
outros cursos, infinitamente. No seu rastro
por onde passa, a vida
brota.
Gaston Bachelard em sua obra A água e os sonhos, ensaio sobre a imaginação da matéria (1997), postula que esse elemento é inconstante:
As “imagens” de que a água é o pretexto ou a matéria
não têm nem a constância nem a
solidez das imagens fornecidas pela terra, pelos cristais, pelos metais e pelas gemas. Não têm a vida
vigorosa das imagens do fogo. As
águas não constroem “mentiras verdadeiras”. É necessária uma alma muito perturbada para realmente se deixar
enganar pelas imagens do rio. (BACHELARD, 1997, p. 21)
As interpretações bachelardianas da água tomam
por referência os elementos terra e
fogo, cristais, metais e gemas. Ao citá-los, o teórico opõe a sua materialidade constante, sólida, o vigor flamejante à
fluidez da matéria líquida da água. Por ser fluido,
esse elemento é arredio, poucas vezes se permite estancar. A água evoca e, ao evocar, acessa a memória, produz e
reproduz imagens, mobiliza a imaginação, faz erguerem-se fenômenos das profundezas de sua natureza
fluida (devaneios).
Desta forma, constatamos que as imagens fluidas fornecidas pelas águas nunca são as mesmas: dentro de instantes se formam novas imagens num processo infinito de criação que se renova no imaginário.
Os fenômenos da água iluminada por um sol de primavera
proporcionam assim metáforas comuns,
fáceis, abundantes, que sustentam uma poesia
subalterna. Os poetas secundários abusam delas. Poderíamos acumular sem dificuldade versos em que jovens ondinas
brincam, sem fim, com imagens muito velhas. Tais imagens,
ainda que naturais, não nos cativam. Não despertam
em nós uma emoção profunda,
como o fazem certas imagens,
embora igualmente comuns,
do fogo e da terra. Como são fugidias,
transmitem apenas uma impressão fugidia. Uma olhada para o céu ensolarado entrega-nos às certezas
da luz; uma decisão íntima,
uma vontade súbita devolve-nos
às vontades da terra, à tarefa positiva de
cavar e construir. Quase
automaticamente, pela fatalidade da matéria grosseira, a vida terrestre reconquista o sonhador que dos reflexos
da água toma apenas o
pretexto para suas férias e seu sonho. (BACHELARD, 1997, p. 21-22)
No sentido proposto por Bachelard, o que a água
possui de mais incomum em relação à
terra e ao fogo é sua natureza fluida, fugidia, às vezes incontida, inquieta, ainda que essas características evoquem
imagens pouco ou nem um pouco cativantes, uma vez que podem simbolizar lugares-comuns como o banho das ondinas.
Por outro lado, o autor discorre sobre uma certa consistência presente no elemento água, que nos conduz a uma segunda via de interpretação:
Todavia, certas formas nascidas das águas têm mais atrativos, mais insistência, mais consistência: é que intervêm devaneios mais materiais e mais profundos, e nosso ser íntimo se envolve mais a fundo, e nossa imaginação sonha, mais de perto, com os atos criadores. (BACHELARD, 1997, p. 22)
A partir da fluidez e consistência presentes na
metáfora da água abordadas por
Bachelard, podemos afirmar que a matriz condutora da obra poética de Graça Pires é formada por esse elemento. A
representação do mar presente em suas poesias
opera como essência de sua criação poética, sendo responsável pela força mítica, pictórica e espiritual de sua
produção. O mar, assim, é o espaço que permite
ao eu lírico encontrar inspiração nos devaneios materiais
e profundos, promovendo o fulgor das imagens
trazidas pela água para a composição da sua obra poética. Sua escrita
capta o exterior para mostrar o interior revolto, revelando a sensibilidade de sua escrita.
Ainda sobre o construto poético, Bachelard
(1997) alega que é importante, na elaboração das imagens, sua associação ao sentimento proporcionado em sua criação, o que o filósofo
qualifica como devaneio, termo que será discutido
adiante.
Consoante Octávio Paz em O arco e a lira (2012), ao considerar a água e suas representações no fazer poético, pode se inferir que são a simbologia de sua expressão:
Como uma água profunda brotando, como
o mar cobrindo a praia, as presenças voltam à superfície.
A imagem do mar em seu movimento constante
evoca a experiência amorosa da
esfera, da incerteza, da solidão que se abre à nossa frente. Ao mesmo tempo desinstala o abismo e resgata o ser para dar-lhe a certeza de que se morre enquanto
se vive e se vive enquanto se morre
(PAZ, 2012).
A extensa obra de Graça Pires possui
características intimistas com um perfil poético representativo de uma memória
sensorial, em uma espécie de atração umbilical por elementos da natureza, com preponderância ao mar, às águas, que podem ser relacionados ao amor, à solidão, à infância. É a vida e as coisas que vão lhe acontecendo e também aos outros, segundo suas próprias palavras.
A definição de memória sensorial é explicitada
por Mourão Júnior e Faria (2015, p. 780-788)
no excerto a seguir:
Esse tipo de memória permite que registremos
muitos estímulos que podem ser resgatados com a evocação
de uma informação ou ser inscritos no pré- consciente. Assim, a ênfase dada aos sentidos
e às sensações despertadas por eles tem
relação sinestésica com os elementos e objetos.
Para ler a obra intimista de Graça Pires,
faz-se mister que o leitor se silencie demoradamente,
a fim de compreender a intrincada tessitura das metáforas que vagueiam pelos labirintos do realismo cotidiano.
Na trilha de sua poesia,
os caminhos se constroem com metáforas que emanam
das múltiplas vozes de que ela é portadora. Essas vozes portam os ventos, rios, barcos, marinheiros, a solidão, a existência,
a infância. O olhar iluminado da poeta
surpreende o banal, iluminando as vivências do cotidiano revividas com a capacidade e a sensibilidade imputadas por esse olhar inaugural:
Entre a inconsistência de um presente que desliza à
superfície das coisas e o charme de um passado do qual nos separamos tragicamente, a lembrança e, em
particular, as experiências privilegiadas da memória afetiva fornecem a matéria de uma verdadeira
vida, libertada das contingências e agarrada
na pureza de sua essência. (RAIMOND apud CAMARGO, 2009, p. 150)
Dessa maneira, por meio da metáfora, Raimond
(apud Camargo) declara que há uma
evocação da infância, espaço das vivências que povoa a memória, agora nostálgica. “O importante, para o autor
que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido
de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência” (BENJAMIM, 1994, p.
37).
Na obra poética de Graça Pires, o rememorar
traz de volta a menina que ficou e
viveu no limite geográfico entre o continente e o mar, esses dois universos de partidas
e chegadas. Sua poesia adquire,
então, os contornos
metafóricos de embarcação em cujo interior viaja a solidão.
No poema a seguir, que integra o livro
intitulado Quando as estevas entraram no poema (2004), a busca pela
infância é tratada como se fosse uma fase da vida semelhante a “um imenso arco-íris”, onde a presença das cores
remete a um tempo alegre e cheio de beleza,
depreendido da presença dos vocábulos barcos, mar, tempestade que remetem à metáfora da água.
à procura do mar da minha infância:
o sangue paterno agitando o coração.
Entrecruzo palavras antigas.
Um imenso arco-íris humedece-me
o rosto de cores garridas.
Aves costeiras, nascem-me na boca,
(PIRES, 2005, p. 28)
Nesses versos, a vastidão do mar não está
apenas “lá fora”, suas águas não se abrem somente sob o sentido
da visão. Antes, o mar é uma presença mnemônica, um acúmulo de signos oníricos
que projetam luzes sobre a infância (“...mar da minha infância”) do eu lírico. Conforme explica
Camargo (2009, p. 54),
o papel da recordação é resgatar as imagens conservadas na e pela memória através
de percepções de variada espécie.
Essas percepções podem
ser, sobretudo, sensoriais – olfato, audição,
tato e gustação – [...].
A imagem que se constrói no plano da memória e
na tessitura da palavra é de forte
carga lírica e exerce uma pressão de tempestade no peito, de onde saem os barcos que buscam o porto da infância.
Toda essa rede de metáforas leva ao mar ao evocar
a água como a simbologia do tempo e do espaço fluidos. A água traz porque um dia levou, e levou para um dia trazer,
eis o que se pode chamar de movimento ondular
da memória.
Porque o que há de memória na recordação é um vazio: a força do acontecimento, que, não sendo senão força, sensações sem conceitos busca desde logo a que ligar-se, um abrigo para o seu vazio, a linguagem. O instante do acontecimento é por isso um instante
cindido – o irreparável da perda é o que se transfigura em
beleza e assim sobreviverá na condição de
perdido e presente. Só há relação com o que já se perdeu, só se perde aquilo com que houve relação: não é
possível dissociar o acontecimento da memória
dele, e esta da concretização de uma forma. (LOPES, 2003,
p. 62)
A lírica de Graça Pires tem sua gênese na
lírica dos grandes poetas para os quais a palavra sacraliza a existência, em um existir
construído com devaneios
e
forjado na chama flamejante dos sonhos. Em suas palavras, o
mundo se põe sob as vestes do êxtase
da fecundidade e os temas de sua escrita remetem à busca da infância perdida, à solidão e à exaltação
da natureza com precedência às paisagens marítimas.
Nesse sentido,
Graça Pires contempla o mar como Narciso o faz com o espelho
d’água. Enquanto ele se enamora de sua própria imagem refletida, a poeta se encanta por sua infância. Para Narciso,
a água representa o espelho diante do qual
acontece a autocontemplação; para Graça Pires, a água representa o mergulho na memória de onde se extraem lembranças.
De acordo com Bachelard (1997), a água serve para naturalizar a autoimagem, retomar a inocência e possibilitar a contemplação íntima.
Assim, o sujeito refaz, através de vestígios e
impressões, a lembrança que, para
Halbwachs (2013, p. 91), é “uma reconstrução do passado com a ajuda de dados tomados de empréstimo ao presente e
preparados por outras reconstruções feitas
em épocas anteriores”. Observa-se que, diante do espelho de águas calmas, Narciso revela-se ideal e perfeito. Por
outro lado, Graça Pires diante do mar, cujas
águas são, por natureza, mais agitadas, evoca um turbilhão
de sentimentos e vivências.
Na primeira situação, pode se dizer que a água irrompe como a metáfora do agora ideal e, na segunda, como o antes
a ser revisitado como o lugar da felicidade.
A poesia de Graça Pires se liquefaz como a
água: é livre, liberta e libertária. Livre
e liberta porque se sabe incontida na forma assimétrica dos versos, libertária porque busca na vastidão da água o seu
espaço, o sentido da vida. Ser e água são um
só a um só tempo, como nos versos do poema transcrito do livro intitulado Quando as estevas
entraram no poema (2004):
Tão líquida, a luz, contornava-lhe
Mas, às vezes, de noite,
As metáforas na base dos versos desse poema
aludem à fluidez: a forma verbal “dançava”, o adjetivo “nua” e o substantivo “trigo”
exprimem movimento, liberdade e vida, consecutivamente. A
dança é a expressão da liberdade interior: só
se dança quando há um fluir por dentro. A nudez é o desprendimento, só
se despe o corpo quando a mente se
despe de valores que aprisionam. O trigo é o símbolo da germinação: germinar é originar vida. No percurso do verso
“dançava, nua, no meio do trigo”, a
imagem é fluida, é movimento, é liberdade.
Essa noção se amplia para o sentido
da vida que representa o corpo feminino:
a mulher germina,
como o trigal, a vida, e de seus frutos emerge a existência em profusão. Por esse motivo
tudo se liquefaz, mas não no sentido
de que se esvai ou se
desmancha, e sim no de uma liquidez-liberdade. A vida é livre como a liquidez da água que evoca o
incontido. Ainda sobre a fluidez, na
obra Modernidade Líquida Bauman
(2001, p. 8), corrobora sobre “os fluidos se movem facilmente. Eles “fluem”,
“escorrem”, “esvaem-se”, “respingam”, “transbordam”, “vazam”, “inundam”, “borrifam”, “pingam”; são “filtrados”, “destilados”; [...]. A extraordinária mobilidade dos
fluidos é o que os associa à idéia de “leveza”.
A liquidez está na poesia de Graça Pires não
apenas nas metáforas da água, mas
também nas escolhas, nas sensações. Enquanto no poema citado o motivo do quadro imagético flagra a mulher dançando
nua no meio do trigal, líquida como a luz que
contorna seu olhar, em outros momentos de sua produção a poeta fala de sua solidão, essa prisão feita de tormentas.
No poema a seguir, da obra A incidência da luz (2005), a metáfora da água, obtida por meio das escolhas vocabulares,
é utilizada para elaborar o sentimento de de solidão do sujeito lírico:
Presa às marés,
Esgota-se em cada dia, lentamente,
a viagem do tempo que expõe
A densidade do sal partiu-me os remos
e entranhou-se-me nas veias como um tormento.
Procuro o teu rosto.
A temática da água surge, mais uma vez, marcada
pela presença dos vocábulos “marés”,
“remos” e “barcos”, porém demarcando uma imagem de contraponto da liberdade: no plano do léxico, o adjetivo “presa”,
o substantivo “margens”
e a forma verbal “circundam”, no primeiro verso, inscrevem-se na semântica
da solidão, do isolamento. A metáfora da fluidez, resgatada pela água, agora se mostra estanque, fechada, presa.
O eu lírico, em tom confessional, abre-se para o horizonte fechado de si, para si e em si.
Deflagra-se uma tormenta interior, uma busca
por algo que se perdeu: na metonímia
dos braços e do rosto, o ser amado que não mais está presente. O tempo, tão fluido como “cada dia”, não se
curva, não se submete à força da “proa” que
tenta irromper “as marés”; a prisão é inexorável ante a súplica do eu lírico
entre as “margens”: a solidão é irrevogável, a tormenta é certa.
A culminância da solidão do eu lírico é o
silenciamento da sua voz, quando o sal já lhe partiu os remos. Sem remos, sem rumo, sem norte, sem horizonte, somente a solidão
obstrui tudo; os mastros já não apontam
o caminho, eles sinalizam a ausência entranhada nas veias. A voz que lamenta ainda procura, entretanto, o rosto, o sentido da vida.
Nesse poema a imagem criada é a de um ser que
se encontra imobilizado, preso às
marés e que, mesmo em tormentas, ainda procura o objeto de desejo. No primeiro
verso, “Preso às marés outras margens me circundam”, o substantivo marés, que dá a ideia de movimento de
subida e descida, metaforiza a vida em seus
ápices e declínios: o sujeito lírico, mesmo preso às marés, se vê diante
de uma força que o impele a
movimentar-se. É a água que o prende e, ao mesmo tempo, o arremessa, pelo ímpeto das marés, para
outra margem, uma imagem que pode ser compreendida
como a prisão do próprio eu lírico, cativo devido às circunstâncias da vida que o conduzem à solidão. Simbolicamente, ocorre um movimento
de transformação, de mudança de um estado para outro,
posto que a água, em um novo movimento, o impulsiona e acende o desejo
de mudança, da busca infindável que se renova, assim como a vida.
Bachelard (1997, p. 7) confirma nossa
interpretação ao elucidar que a “água é realmente
o elemento transitório. É a metamorfose ontológica essencial entre o fogo e a terra. O ser voltado à água é um ser
de vertigem”, uma vez que, já em sua profundidade, o ser
humano tem o destino semelhante ao da água
que corre.
2.2 A água como matéria-prima semântica da poesia
Ainda sobre a transitoriedade e o movimento da
água, Raíssa Cavalcanti, em sua obra Mitos da água
(1999), formula:
As águas do Mar, sempre em movimento, marcam
simbolicamente o seu caráter de
transitoriedade. As suas águas não são águas paradas, eternas como as águas do Oceano na sua qualidade
de eternidade. As águas do mar estão sempre em ebulição, representando este estado dinâmico
e transitório de todas as
coisas da vida. O seu movimento representa sua
qualidade de agente transitivo e mediador entre o não-formal e o formal, entre o céu e terra, entre os deuses e o
homem, entre o self e o ego. O movimento é o melhor símbolo para a transformação, que é a sua característica principal. (CAVALCANTI,
1999, p. 43)
No sentido abordado por Cavalcanti, a água do
mar representa o sagrado que transforma,
o local de passagem de um lugar para outro. Trata-se de uma passagem que simboliza as transformações da própria existência. Por conseguinte, a emersão e a submersão nas águas são sinonímia do
movimento de fazer morrer o velho homem para que ressurja
em uma nova vida, purificando-se no processo. A passagem
pelas águas do mar, dessa forma, representa a libertação do cativeiro: “Foi através do Mar, que se abriu ao meio, que Moisés levou o
povo hebreu do Egito, do cativeiro, para a Terra
Prometida, para a liberdade” (CAVALCANTI,1999, p. 42).
No poema a seguir, também retirado de A incidência da luz (2005), os versos remetem à recorrente temática da água. A
metáfora da água está presente nas imagens
construídas a partir desse elemento líquido, penetrando e fecundando a terra para que haja vida. Há, ainda, o
intercâmbio entre a paisagem terrestre e a incursão da água que verte dos céus
e entranha a terra, fazendo-a
gestar.
Será transparente a paisagem, obsessivamente vegetal,
que encaminha as aves regressadas do norte?
à corrente e, de muito longe,
É-nos familiar o reverdecer dos campos
e o sussurro dos canaviais seduzindo as águas.
(PIRES, 2005, p. 43)
Verifica-se, no excerto, que a natureza compõe
a imagem: do céu à terra e ao mar,
três elementos que se intercambiam e erigem um corpo físico em que as partes se conectam, irrevogavelmente. A
paisagem, obsessivamente vegetal, abre-se à contemplação da poeta: as algas, que se abandonam
à corrente; as praias, à míngua
do mar; o sussurro dos canaviais e as entranhas da terra penetrada pelas chuvas. Tudo se movimenta e caminha para o
êxtase da natureza e do eu lírico, em sensações
que se fundem.
O poema suscita a latência da memória em Graça
Pires, que relembra os tempos vividos
de frente para o mar em Portugal, extraindo de sua experiência contemplativa os construtos de sua poesia.
Nota-se que a memória é o princípio balizador para se buscar o
que é passado e afirmar que algo foi realidade.
Paz debate a noção de que entre o poeta e o
objeto de sua contemplação existe uma
relação simbiótica deflagrada no encontro com a natureza anímica e a alma do sujeito lírico:
Em sua introdução à Poética de Aristóteles, Garcia Bacca destaca com persistência que a concepção aristotélica
da natureza é animada por um hilozoísmo
mais ou menos oculto. Assim, o “lampejo” poético não brota do nada, nem o poeta o tira de si mesmo: ele
é fruto do encontro entre essa natureza
animada, dona de existência própria, e a alma do poeta. (PAZ, 2012, p. 167, grifos do autor)
O mesmo fenômeno simbiótico constata-se na união dos elementos terra e água, de acordo com Bachelard (1997, p. 115-116):
Teremos a mesma impressão da união orgânica da terra e da água ao meditar esta página de Claudel: “Em abril, precedido pela floração profética do ramo da ameixeira, começa sobre toda a terra o trabalho da Água, acre serva do sol. Ela dissolve, mastiga, mistura, e quando a base está assim, preparada a vida parte, o mundo vegetal, por todas as suas raízes, recomeça a puxar o fundo universal. A água ácida dos primeiros meses torna-se pouco a pouco um espesso xarope, um trago de licor, um mel amargo carregado de poderes sexuais...”
Na poesia de Graça Pires, a água desempenha o importante papel de transfiguradora da paisagem, seja incentivando o movimento migratório dos pássaros, a leveza das algas levadas pelas ondas, o reverdecer dos campos, os canaviais, o som do vento, até “a lenta penetração das chuvas” nas entranhas da terra. A água está associada ao feminino, ao sensual e maternal. Ela é fonte de fecundação da terra e de seus elementos, o que reforça a citação de Bachelard no sentido de ser a gênese da vida.
Nota-se que o eu lírico se deixa entrever
sutilmente no verso “Temos a boca invadida pela verticalidade das heras”, e a “boca”, atribuída
a um sujeito plural oculto,
subentendido na desinência da forma verbal “temos” (nós), metaforiza a experiência universal da qual todos compartilham. As heras podem
ser interpretadas como “a paisagem
excessivamente vegetal” e hirta, ereta, que se levanta na direção dos céus e inunda o espaço; assim como os
canaviais, as oliveiras se nutrem de seiva no instante em que houve a conjunção
da água com a terra e, desse fenômeno
natural, a colheita se avoluma. É uma cena que, podemos dizer, é épica na sua significação, ou seja, designa
aquilo que é grandioso: a metáfora da vida que
demanda uma aventura
prolongada do existir.
Para a pesquisadora Raíssa Cavalcanti, a superfície infinita do mar simboliza a vida com suas bonanças e intempéries e a
chuva é concebida como a doação de um deus masculino, como o seu sêmen. Ela é vista em sua essência como mais ligada à polaridade masculina do que à feminina, embora em algumas culturas lhe atribuam uma origem ou qualidade mais feminina, uma natureza mais yin do que yang, pelo fato de a chuva se originar na Lua, que é feminina e é considerada o astro regente da fertilidade da terra. (CAVALCANTI, 1999, p. 138)
Essa conexão, esse movimento da natureza saltam à expressão
poética também neste poema
que evidencia elementos da natureza como a lua, a névoa, o mar e as aves. Constata-se novamente a
supremacia do elemento água que liquefaz os versos deste poema, por meio do arranjo lexical
realizado por Graça Pires:
A lua abriu um sulco no telhado
e uma estranha névoa cobriu todas as casas.
As aves marinhas alteraram seu rumo.
Algumas mulheres atiraram-se ao mar
até se transformarem em gaivotas.
Com o excesso de luar e acorrentaram
Os vasos da varanda alagaram-se de vento
As crianças esconderam-se
por trás dos espelhos para não verem
(PIRES, 2011, p. 52)
Nesse poema, a luz que incide sobre a imagem poética é acesa no âmbito da linguagem e, mais uma vez, no plano
lexical são erigidas metáforas que convergem
para a metáfora-base do poema: a água como o curso da vida, e não apenas como
o líquido
que segue o leito entre margens e desagua no oceano. De acordo com Chevalier
e Gheerbrant (2012, p. 592),
águas em movimento, o mar simboliza
um estado transitório entre as possibilidades ainda informes, as
realidades configuradas, uma situação de ambivalência,
que é a de incerteza, de dúvida, de indecisão, e que pode se concluir
bem ou mal.
Acrescentando à interpretação de Chevalier e Gheerbrant, Cavalcanti (1999, p. 148) assevera que “a luz é sempre considerada como uma intensa experiência religiosa, como uma epifania que produz a ruptura, modificando totalmente a vida do sujeito, porque lhe revela o mundo do espírito”. Para a autora, a luz simboliza a experiência mística transformadora do sujeito, à medida que o conecta com as dimensões espirituais da existência. Recordemo-nos que os versos iniciais do livro de Gênesis dão preeminência à luz como instância criadora, que permite o nascimento dos demais elementos da criação: a luz, a terra, os animais, os homens.
Os homens enlouquecem com o excesso de luz e os substantivos arrolados no fenômeno – luz, gaivotas, luar e correntes – podem aludir ao mito platônico da caverna: quando a luz se projeta na escuridão da existência representada pela casa em cujo telhado se abre um sulco para a entrada da luz, gaivotas (crianças) voam e, por isso, precisam ser acorrentadas.
Os versos do poema transcrito, em métrica
livre, podem ser interpretados tal qual
a fluidez da água: ambos se caracterizam por um movimento assimétrico. A poeta é remissiva: os verbos empregados no
pretérito perfeito exprimem, em tom narrativo,
a mobilização da memória. Os fatos estão no passado e vêm à luz na forma de natureza em movimento: a lua
“abriu” um sulco no telhado e, mesmo assim, sua luz não impediu que a névoa
cobrisse as casas. O vocábulo névoa no poema
em questão traz a imagem de um instante sombrio que evoca certa tristeza no olhar, a falta de luz suficiente para que os olhos
vejam algo que procura.
A metáfora final nos versos:
“As crianças esconderam-se/ por trás dos espelhos
para não verem/ o rosto fascinante da morte” alude, mais uma vez, ao mito de Narciso. Ironicamente, entretanto, o objeto (espelho) cuja função é refletir a imagem de quem se põe diante
dele, no poema de Graça Pires.
A
obra Não sabia que a noite podia
incendiar-se nos meus olhos (2007) está
dividida em duas partes. A primeira, intitulada “11 cartas de Marta para
Maria”, traz onze poemas em prosa que são cartas e a segunda, denominada “Sombras”, recupera mnemonicamente a infância.
No poema escolhido
para análise, constatamos o mergulho que o sujeito
lírico faz no tempo primevo
e, mesmo de forma
intrínseca, verifica-se também o elemento água através do uso do vocábulo neblina,
fenômeno concebido pela transformação da água em vapor.
como se recuperasse um tempo
Circunscrevo recordações sem voz
os gestos de menina.
ou a sombra dessa imagem.
Os meus olhos doendo nos dela.
O meu rosto medindo, no seu rosto,
Sintaticamente, a construção do poema apresenta
os termos predominantemente na ordem direta e a pontuação, rigorosamente gramatical, impede
possíveis divagações interpretativas no plano formal, o que imprime certa objetividade às recordações. Entretanto,
as metáforas estão expressas na escolha lexical
do termo neblina como a imagem de uma cortina que se abre sob a luz fosca da névoa e por onde o eu lírico alcança
o simulacro do tempo em que está aprisionada
a infância que busca recuperar. Consoante Le Goff (1992), a memória está relacionada à capacidade de conservar
determinadas informações que nos remetem
a um conjunto de funções psíquicas, possibilitando o homem atualizar ou representar suas impressões ou informações
passadas.
A neblina, entretanto, é a recordação fosca e perseguida na sua forma imagética.
No instante final do poema, identificamos um eu empírico/lírico diante de um eu inscrito no pretérito: a mulher
adulta encontra, mnemonicamente, a criança que
foi: “Os meus olhos doendo nos dela./ O meu rosto medindo, no seu rosto,/ toda a intensidade da inocência”.
Segundo Arnold (1960, p. 187),
A memória afetiva é a documentação da história da vida
emotiva de cada pessoa, não
registrando somente os fatos, mas as emoções conexas a ele. Quando um determinado fato é registrado na
memória juntamente com sua carga
emocional, que mesmo com o tempo venham a ser esquecidos os acontecimentos, as emoções que eles
provocaram ou que estão de alguma maneira ligadas a eles, não serão
esquecidas.
Observa-se que na poética de Graça Pires há a
recorrência metafórica da água, como
também da infância, que é uma temática evidenciada. Sob essa ótica, o tempo pretérito afigura-se, ainda que sob
“a neblina do olhar”, como recordações sem
voz,/ [qu]e perdem-se-me, nas mãos,/
os gestos de menina”, restando,
então, as sombras da infância.
Sobre o tempo pretérito
da infância, Bachelard (1988, p. 95) afirma que
Uma infância potencial habita em nós. Quando vamos
reencontrá-la nos nossos devaneios,
mais ainda que na sua realidade, nós a revivemos em suas possibilidades. Sonhamos tudo que ela poderia ter sido,
sonhamos no limite da história e da
lenda. Para atingir as lembranças de nossas solidões, idealizamos os mundos em
que fomos criança solitária.
As lembranças
do eu lírico alcançam suas solidões e, por meio da metáfora da água, ao buscar o passado, encontra-se a pureza perdida,
as recordações ancoradas juntamente com o barco (suas
vivências de menina). A água metaforiza o clarão
de eternidade e a grandeza do mundo que já não mais está no presente, concretamente; está na memória. A neblina
no olhar é a água em estado de vapor, que
metaforiza a lembrança fugidia da infância: “Persigo-lhe a imagem / ou a sombra dessa imagem”.
Ainda de acordo com Bachelard (1998, p. 96-97):
Sonhamos enquanto nos lembramos. Lembramo-nos enquanto sonhamos. Nossas lembranças nos devolvem um rio singelo que reflete um céu apoiado nas colinas. Mas a colina recresce, a enseada do rio se alarga. O pequeno faz-se grande. O mundo do devaneio da infância é grande, maior que o mundo do oferecido ao devaneio de hoje. Do devaneio poético diante de um grande espetáculo do mundo ao devaneio da infância há um comércio de grandeza. Assim, a infância está na origem das maiores paisagens. Nossas solidões de criança deram-nos as imensidades primitivas.
A infância ressurge sob a forma de devaneios à
medida que vão e vêm as imagens, acionadas
pelo sentimento de perda, de recuperação, de nostalgia. Rememorar, entretanto, não é apenas
imergir nas águas do passado; é, também, fazer
emergir a solidão, porque a certeza de não mais poder reviver o passado
causa dor e sentimento de perda.
Assim, as sombras perseguem os caminhos da
poesia de Graça Pires, bem como a água, que representa a memória que se esvai,
líquida, como se pode
averiguar neste poema sem título do livro Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos (2007):
e guardo, no olhar, a líquida sombra,
Eu não sei a cor dos navios,
quando os marinheiros avistam as dunas
e o cheiro quente da areia arde em suas bocas.
(PIRES, 2007, p. 34)
Nesse poema, a noção de água aparece
apenas uma vez. O adjetivo
“líquida”, ao caracterizar o substantivo sombra, diz muito: tudo se
esvai na memória fluida, porque nada
mais é. O adjetivo se inscreve no tempo do que foi e não mais será, a não ser no plano das
reminiscências. A liquefação das sombras em água é tema recorrente em Graça Pires, em um movimento que traz, mas
também leva, como o mar, no vaivém de
suas ondulações ininterruptas. Trata-se de um ciclo que se mantém na natureza e se repete na lembrança da poeta.
Além de líquida a sombra, líquido também é tudo
que se inscreve no plano da abstração: sombra é substantivo abstrato e, nessa condição, é intangível, não possuindo
a materialidade das coisas concretas. É tão líquida, metaforicamente, como a água. “A sombra é, de um lado, o
que se opõe à luz; é, de outro lado, a própria imagem das coisas fugidias, irreais
e mutantes” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2012, p. 842).
Outra interpretação que se soma à de Chevalier e Gheerbrant é a de Bachelard
(1997) que, ao analisar a obra de Edgar Alan Poe, postula que a sombra vive enquanto presa às águas, que por sua
vez absorvem a matéria ausente de luz. Essa
ausência de luz faz incidir a sombra sobre o que não mais pode ser. Nesse sentido, em uma perspectiva junguiana, a
sombra está relacionada àquilo que o sujeito
recusa admitir ou reconhecer, e que, no entanto, sempre se impõe a ele. Na poesia de Graça Pires,
as sombras remetem às impressões e incertezas do futuro.
Em seu artigo intitulado “A água e a vida”
(1993), José Carlos Bruni, professor do
Departamento de Sociologia da FFLCH-USP (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo),
conta que, em uma das primeiras aulas de Filosofia
a que assistiu, se inquietou
quando o professor citou o
filósofo
Tales de Mileto atribuindo-lhe a afirmação “Tudo é água”. No século VI a. C., esse filósofo grego cunhou a expressão que, por meio da tradição
aristotélica, passaria a ser
considerada a primeira frase filosófica do Ocidente que remete à ideia de uma filosofia da natureza. Nessa
perspectiva, a água adquire um sentido amplo:
Sendo preocupação dos primeiros filósofos a determinação de uma substância material primordial, concebida como princípio, origem e matriz de todas as coisas. Para Tales, essa substância, a physis, seria a água, e todos os seres existentes seriam, essencialmente, produtos da transformação da água ou água transformada. (BRUNI, 1993, p. 53)
Bruni, entretanto, não se deu por satisfeito
com a explicação de Tales de Mileto sobre a água. De acordo com o professor, tal explanação contrariava a percepção comum
flagrante que desmentia a afirmação filosófica: na natureza, por exemplo, os seres não são, visivelmente,
resultados da transformação da água ou a água
transformada. Embora contestasse esse conceito, o pesquisador não ignorou a frase,
como se ela fosse um disparate qualquer
e não merecedor de alguma atenção.
Ela sempre me perturbou, nunca deixei de pensar no desafio que ela significa para a compreensão, pela sua radical brevidade, pela brutal distância que estabelece com o senso comum, pelo mistério e beleza que a envolvem na sua pureza e no seu isolamento. “Tudo é água!” O que isso quer dizer? (BRUNI, 1993, p. 54)
As reflexões de Bruni o levaram a ir buscar
ajuda em outros filósofos, e foi em Hegel
que ele encontrou uma explicação plausível: “só há um universal, o universal ser em si e para si, a intuição simples e
sem fantasia, o pensamento de que apenas um
é” (HEGEL, 1973, p. 15). Hegel entende que a afirmação filosófica “Tudo é água” quer dizer que tudo é um, contrariando a percepção comum da dispersão
do pensamento e a percepção
sensível que vê o mundo como uma multidão de coisas distintas e distantes de serem uma unidade (BRUNI,
1993).
Ainda na trilha do pensamento
filosófico, Nietzsche, no entanto, entende que a água de Tales é apenas um recurso
metafórico para comunicar o “pressentimento da solução
última das coisas”
e “o acanhamento dos graus inferiores do conhecimento”
(NIETZSCHE, 1973, p. 18).
Contudo, ao inspecionarmos o nosso cotidiano,
somos impelidos a entender que a água
é tudo no dia a dia. Na manutenção da higiene pessoal, no preparo da terra, no plantio, no preparo dos
alimentos. Ela é essencial à ordem doméstica, tanto na limpeza das nossas casas, quanto na lavagem das vestimentas, na prevenção a
doenças.
Logo, é difícil concebê-la apenas como um ser unilateral ou como uma metáfora.
A água é tudo, de fato. Se presente em tudo, como
quer a filosofia, a água está na
poesia de Graça Pires mesmo quando o tema não é a água, e sua presença é patente no poema a ser interpretado na
sequência, transcrito do livro Não sabia que a noite podia incendiar-se nos
meus olhos (2007).
Peregrina de outras luas, resgato a música
que me restou da infância, como um sobressalto,
ou uma canção de embalar,
ou água fresca a ferir-me a boca, de tanta sede.
(PIRES, 2007, p. 36)
Nesses versos, o eu lírico se recolhe em si
mesmo, percorrendo um itinerário em
que a atitude é silenciar-se, sentir a solidão, outro tema recorrente na poesia
de Graça Pires. Para a filosofia, o
silêncio não pode ser confundido com a ausência de som, posto que, paradoxalmente, pode ser considerado como aquilo
que existe de não humano no homem. E,
como vimos anteriormente, a voz que fala no poema deflagra o ser solitário; resta-lhe, mais uma vez, refugiar-se
na memória da infância, nas sombras,
essa canção de embalar como água fresca, mas não sem ferir, pois a sede é
voraz que chega a ferir.
Além disso, a água é o elemento que mata a
sede, sua frescura fere: “água fresca
a ferir-me a boca, / de tanta sede”. Observa-se aqui o antagonismo da água, ela é bem e mal. Ela fere porque sacia
momentaneamente a sede, mas nunca a fará cessar
para sempre. Metaforicamente, a água adquire um valor dúbio: deflagra a presença
e a ausência. Presenças de vivências remotas, aprisionadas no tempo.
E neste devaneio de uma poesia que vai da
superfície ao subterrâneo para buscar
na zona profunda da água a existência humana e sua solidão, o eu lírico tem na memória o acalanto para o repouso, no
seio materno. “As águas que são as nossas
mães e que desejam tomar parte em sacrifícios vêm até nós seguindo os seus caminhos
e nos distribuem o seu leite” (BACHELARD,
1998, p. 122).
A vertente lírica de Graça Pires, de acordo com Cantinho (s/d), dá-se sobretudo
a partir de seu livro intitulado Conjugar Afectos, de 1997. Já na obra Quando
as estevas entraram no poema, de 2005, a poeta exibe características oníricas e força telúrica que lhe
conferem, muitas vezes, violência alegórica notável, como se pode notar nos versos
a seguir:
Bichos sonâmbulos ferem-me a garganta.
Mas a planície enrosca-se-me na voz
e não me devolve o eco,
que só o coração ouve.
(PIRES, 2005, p. 15)
O onírico é percebido nas imagens criadas pelo
eu lírico quanto às horas noturnas e
o que nele é despertado: a sede. Há visões de bichos sonâmbulos, que estão lá inquietando o sujeito, ferindo-o
na garganta. Falta-lhe a água, o elemento que simboliza
a vida, aquela que dá saciedade aos anseios poéticos.
Ainda no devaneio
onírico, percebem-se imagens
surreais: “bichos sonâmbulos”, “um barco alado”, “a
planície” que enrosca. Tais elementos exteriores imbricam-se às sensações
interiores, são eles que ferem, mutilam, silenciam
a garganta, as mãos, o peito, a voz
e o
coração, respectivamente.
Segundo Bachelard (1997), o sonho é a expressão
surreal das forças da vida: ser e
estar no mundo. No poema sob análise, é nas horas noturnas que o sujeito se move como um animal
sonâmbulo movido pela “voz”
que soa do fundo do coração.
Neste outro exemplo do mesmo livro, também há uma tônica especial das características recorrentes que remetem à
água, como podemos constatar no verso “E
ensandeceram à procura da fonte”:
na hora do sol em sombra.
E ensandeceram à procura da fonte.
Agora vivem em casas de paredes
É irremediável a solidão,
Encontra-se, em ambos os poemas, uma fúria
onírica que é irrompida pelo desejo
não alcançado. Esta violência devaneadora certamente tem origem em uma melancolia ou um desassossego evocado pela reminiscência, desvelando a inquietude do ser e sua solidão. A condição
de errância do sujeito poético pode ser
constatada no verso
“É irremediável a solidão”, o que parece
ser uma antecipação da morte.
O terceiro verso faz referência à fonte que, do
ponto de vista mítico, carrega um
caráter sagrado em quase todas as culturas. De acordo com Cavalcanti (1999), a simbologia da fonte está estritamente
ligada à água que regenera e purifica, um elemento
de cura e símbolo da imortalidade. A escolha pelo verbo “vir” na terceira pessoa do plural do pretérito perfeito do
indicativo revelaria a ação de regressar, de
voltar ao lugar de origem. Desse modo, o caminhar em direção à fonte
torna-se a busca pela energia divina,
que pode renovar
o ser tanto no aspecto
do conhecimento quanto no da
vida espiritual. Como imagem da esperança, a água que emana renova e, portanto, contém o alimento para imortalidade.
A fonte, em nossa leitura, é tida como um lugar de emergência,
pois é dela que jorra a água da vida.
A violência que irrompe pelo poema e abala
nossas estruturas emocionais certamente
tem origem em uma melancolia ou um desassossego evocado pela reminiscência. A constituição dessa lembrança, que é individual, representa a associação das memórias dos diferentes grupos aos quais o
sujeito pertence.
Assim, “cada memória
individual é um ponto de vista sobre a memória
coletiva”, uma vez que as “lembranças permanecem coletivas e nos são
lembradas por outros, ainda que se
trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isso acontece porque jamais estamos
sós” (HALBWACHS, 2013, p. 30).
Por fim, somos atingidos pelo sentimento de
solidão e de sofrimento daqueles que vieram à fonte antes de nós e não encontraram água. Abalamo-nos emocionalmente quando água, que é a vida,
se esvai, podendo ser revivida apenas no plano da memória.
Em Ortografia
do olhar, publicado pela Editorial Éter em 1996, a poeta faz uma peregrinação pela memória. Por essa
razão este livro é considerado como aquele
no qual a solidão revivida nostalgicamente é uma estratégia de defesa e evocação
mnemônica.
Nesse livro, Graça Pires se reaproxima do
crepúsculo das paixões. O olhar poético
volta-se, por exemplo, ao rio, ao verão, ao outono e ao mar: “...e vestem-se de luto, à espera da morte”. A morte é
crepuscular, posto que representa o fim da vida.
No poema intitulado “O rio”, verifica-se
novamente a inclusão de elementos provenientes
da natureza que reverbera a água como fonte de inspiração em sua poética:
Onde estivermos, a madrugada
será íntima de veleiros
que transportam a voz do rio,
Tanto azul, só pode ser
que o mar se agita rente aos ventos.
Há uma invocação
ao leitor – “Porém, não acredites na excessiva/ vertigem
da corrente” – que, do lado de cá da poesia, é convocado a ouvir, com a voz que fala no texto, a canção entoada pela
intimidade que se descreve entre o rio (o ser de dentro da poeta) e a paisagem. As formas verbais permitem que
postulemos as seguintes noções: “Onde
estivermos”, no primeiro verso, exprime a possibilidade. Há uma hipótese de o espaço descrito habitar
o possível futuro – “a madrugada/ será íntima
de veleiros”. Mesmo o azul intenso da paisagem é hipotético: “só pode ser a cor dos pássaros
marinhos”, logo, nada é, mas tudo pode ser, porque está sedimentado no plano psíquico do eu que
fala, e esse eu está em “nós” – “Onde estivermos”, ou seja, a sensação individual se torna coletiva,
como explanado anteriormente.
A voz do rio, presente nos silêncios, também ecoa na poesia, e só pode ser voz porque existe o silêncio. A certeza da voz reside no fato de que há uma não voz, a qual serve de referência para a outra, o ser e o não ser coexistem e se permitem existir, e o mar é a matéria da poesia, porque é nas águas que a corrente, vertiginosamente, se agita rente aos ventos. Neste poema há a imagem de dois mundos paralelos e opostos entre si, a “voz e o silêncio” que, de acordo com Cavalvanti (1999, p. 108) representam o “poder de ligar uma coisa e mesmo ao seu extremo, ou ao contrário, é uma característica da água em geral e mais particularmente, da água do rio.” Clemente reforça a ideia quando alude aos vocábulos antônimos “palavra e silêncio”:
Nem sempre a palavra é o fervilhar de sons e de harmonias. Nem sempre a palavra é o fremir de sílabas ou de fonemas. A palavra, às vezes, apresenta-se sob os véus do silêncio, sob a sombra da mudez. O silêncio também fala, o silêncio também diz, ora alegria, ora tristeza, ora amor. As reticências, as suspensões da corrente, algumas vezes, falam mais que dezenas de palavras ou frases. É a palavra silenciosa. O ser humano envolto em seu mistério, desvela-se e desvenda-se pelo gesto, pela palavra ou pelo silêncio. (CLEMENTE, 1978, p. 53)
Essa profusão de metáforas remete à vida: é da
água, do ponto de vista da teoria da evolução, que as criaturas
emergem, evoluem e se adaptam
às circunstâncias posteriores,
à agitação dos ventos. A metáfora do rio, que desemboca no mar, remete
à imagem de passagem para outro mundo desconhecido, logo,
à vida e à morte. Assim, a
água se expande como a vida nos contornos metafóricos da poesia de Graça
Pires.
No poema abaixo intitulado “O verão”, retirado
do livro Ortografia do olhar (1996), há elementos que evocam a
natureza, com destaque para a força metafórica
da água no processo
criativo.
Agosto aqueceu, sem aviso, a margem dos dias.
Por isso, não dizemos o quebranto do sol
ou reclamar o sazonal fruto
que anuncia nos lábios uma mitigada sede.
Descoberta a praia onde o corpo se aquenta,
para navegar o verbo e incluir, no texto,
e soletrá-las sem profanar a sombra
daqueles que, à lembrança
(PIRES, 1996, p. 16, grifos da autora)
Trata-se de um poema metalinguístico que metaforiza questões
como a comunicação de corpos entregues ao prazer no verão, estação
em que o sol propicia o sazonal fruto (prazer entre um
e outro ser). Os corpos se descobrem na praia quente
e, “à lembrança de um abraço,
/ se
enternecem”.
Paz (2012, p. 42) nos auxilia
no entendimento de tal procedimento estético:
A essência da linguagem é simbólica, porque consiste
em representar um elemento da realidade
por outro, como ocorre com as metáforas; assim, a linguagem é poesia em estado natural.
É, pois, a comunicação do enternecimento que
culmina no abraço, no contato físico
que, versos antes, faz navegar o verbo “incluir” no verso 10 e, a partir desse instante, tem-se a geração de vida (trigo,
árvore, asa, nascente). O trigo germina, a árvore
amplia a germinação, a asa confirma o que, adiante, no termo “nascente”, representa o resultado do verão:
o encontro de seres que se entregam
ao afeto.
Nesse poema, portanto, Graça Pires faz
referência ao amor, ao encontro, à paridade
entre pessoas tocadas pelo sol do verão, porque, afinal, “agosto aqueceu, sem aviso, a margem dos dias”. O sol metaforiza o calor no sentido de energia vital à
medida que aquece o corpo e a alma. Nesse sentido, pode se inferir que
simboliza o amor, sendo ambos a
chama motriz, a fonte
da vida.
No poema a seguir, também extraído do livro Ortografia do olhar (1996), apresenta-se agora o outono, quando se percebe
que o eu lírico refaz o caminho cíclico
da vida e da morte, como o vaivém marítimo metaforizado nas reminiscências do eu lírico:
Não sabemos que fruto se pressente na boca,
Urgente se torna refazer o frágil
caminho das manhãs: um trajecto de água
nas pupilas dos pássaros, conquistando
Setembro escreve-se a cor de mel,
e os dias, mais curtos, garantem
(PIRES, 1996, p. 21)
Após o verão, é chegado o outono, tempo em que
a natureza gesta o fruto e a vida
eclode depois de ter se entregado, no verão, ao afeto, ao enternecimento, à união física eufemisticamente denominada abraço enternecedor no poema “O verão”.
Outono é tempo de refazer a trajetória que, cíclica por natureza, levará novamente ao verão que ficou para trás e,
ao mesmo tempo, está lá adiante, à espera
de ser outra vez. As estações vão e vêm tal qual o mar vai e vem nas reminiscências da poeta.
A água, novamente, traz a vida:
“Urgente se torna refazer o frágil/ caminho
das manhãs: um trajecto de água”. A natureza, mais uma vez, é recorrente
no poema: água, pássaros, planície,
vento, luz, terra, noite... todos os elementos
remetem à paisagem, eles são a paisagem explicitamente fora e dentro
do eu que fala no poema. São paisagens externas porque representam o
espaço natural, e internas porque representam a memória, as vivências do sujeito lírico.
Nesse sentido, podemos dizer
que sua poesia é autobiográfica na medida em que recupera toda a sua vivência ante o mar, essa
metáfora da vastidão e de tudo que compõe a existência e consagra o humano.
Paz (2012, p. 237) declara que a “poesia é
revelação da condição humana e consagração
de uma experiência histórica concreta”. Graça Pires, desse prisma, se consagra
na sua humanidade diante do mar e na relação
com as águas que, metaforicamente, são a sua vivência.
O poema a seguir com o título “O mar” faz parte
do mesmo livro e traz as forças
imaginantes que buscam novamente o tema da água na composição dos versos:
O mar
Sem hora marcada,
os navios passam ao largo das ondas.
Nem o mar existe sem a silhueta dos mastros,
De tão ausentes, as naus esqueceram
No excerto, há um predomínio da paisagem marítima,
uma imagem construída mediante a subjetividade do eu
lírico líquido. O sujeito poético, diante desta
cena, dialoga com o mar e com outros elementos da natureza numa relação simbiótica que somente é possível através
da palavra poética.
O sujeito lírico contempla
essa paisagem e se expressa pelas imagens sinestésicas relacionadas a visualização da natureza e por intermédio
da linguagem metafórica capta o mar e alguns
elementos para exaltar o instante,
o presente.
A imagem que se abre à mente do leitor,
por meio da configuração metafórica, é difusa e carrega um
turbilhão de sentidos. O verso “Os navios passam ao largo das ondas” parece aludir à existência revolta e às
intempéries. Há uma reflexão ante a
contemplação da paisagem e essa atitude contemplativa mobiliza o devaneio, as ideias permitindo à poeta
tecer considerações filosóficas acerca da existência: “De tão ausentes,
as naus esqueceram/ o orgasmo
das marés/ e permanecem, exaustas/ na memória das conchas”. Tais versos representam, portanto, a mobilização da faculdade do pensamento
quando o ser se põe em atitude contemplativa.
Há também uma espécie de rememoração dos tempos
áureos dos mares portugueses, atravessados pelas naus movidas
para grandes conquistas dessa nação que se
lançou ao mar com o objetivo de conquistar novas terras para serem anexadas
aos domínios da Coroa. O orgasmo remete ao frenesi,
à agitação experimentada pelos navegantes de outrora, que já não mais se faz presente.
Tudo é memória contida na metáfora das conchas, o que significa que o tempo é o invólucro dos acontecimentos e, simultaneamente, aquele que os
aprisiona para que o sujeito
os possa acessar.
No livro Uma certa forma de errância, publicado
em 2003 pela Editora Ausência Quebrada, escolhemos o seguinte
poema que tem como questão central a solidão e a presença
da ausência tão marcantes
que o vazio se instaura.
não tem búzios, nem conchas, nem corais.
sinto a luz de teus passos.
a tornar transparente a tua ausência?
Composto de apenas seis versos escritos em uma
única estrofe, a solidão retorna à
palavra. O eu lírico procura longamente o rosto da pessoa amada, no entanto,
tudo que resta são errâncias, memórias fugidias, uma ausência cuja transparência
constrói a noção de clareza, mas não no sentido de que amplia o campo de visão, e sim no sentido de uma
certeza daquilo que não há: a presença é apenas
a não presença – “a tornar transparente a tua ausência”. As sensações remontam, todas elas, ao vazio, uma vez
que o ser amado agora é apenas uma entidade sensorial.
Além das emoções sinestésicas, a água volta ao
poema em forma de onda, fugidia, que
não se prende ou não quer se prender ao sujeito lírico, e assim a indagação demonstra seu estado solitário e
sem esperança: “Ou será uma onda fugitiva/
a tornar transparente a tua ausência? A dúvida e a falta de respostas se esvaem,
como as águas na imensidão do mar.
O poema na sequência também faz parte do livro Uma certa forma de errância (2003). Nele, Graça Pires busca na tradição mitológica, mais precisamente na Odisseia de Homero e na figura do herói Ulisses, inspiração para compor sua obra poética. Paz (2012) nos explica que a narrativa da Odisseia costuma ser evocada na poesia quando escritores trabalham o tema da viagem, fazendo referência ao herói mítico de Ítaca. No caso dos versos a seguir, há uma semelhança no sentido de que o eu lírico empreende uma viagem pelos recônditos da memória com o objetivo de presentificar o passado.
A pouco e pouco, aloja-se-me
Alheio-me da minha cronologia
porque o passado se tornou permanente.
Caminho tão perto do mar,
que Ulisses avalia a direção do vento
pelos vestígios do meu respirar,
lento ou apressado.
(PIRES, 2003, p. 21)
Como podemos notar pela leitura do poema, o eu
lírico encontra Ulisses em sua viagem
interior, tendo o mar como cenário e testemunha. Ao evocar a presença do herói grego,
conhecido pelos seus dons de raciocínio e discurso, o eu lírico
busca, na experiência desse herói, a retórica que contém um vasto poder
persuasivo e provoca grande admiração
nos leitores até os dias de hoje. Ulisses personifica a imagem do herói racional, sabe agir e falar, reflete e é
moderado. Soluciona os problemas por meio da lógica e não
com fúria e emoção.
A narrativa épica é, na contemporaneidade, bastante referenciada quando os escritores a utilizam como metáfora da bravura, do heroísmo, do amor intocado pelo tempo e a distância:
A Odisséia, escrita em fins do século VIII, é, sem dúvida, a mais grandiosa epopeia marítima da Grécia Antiga. Narra o retorno de Ulisses a sua terra natal, Ítaca, depois da Guerra de Tróia. Obra lendária, está inserida no início da expansão grega no Mediterrâneo, revelando o grau de intimidade e conhecimento sobre o mar existente na época. O mar-oceano, espaço ainda assustador e temível, comandado pela divindade marítima Posseidon, era o reino do desconhecido, dos monstros marinhos, das sereias perigosas. (DIEGUES, 1998, p. 137-138)
A história mítica e épica mostra o herói,
Ulisses, em busca do desbravamento marítimo.
Na verdade, sua viagem é interior, posto que ele desbrava a si mesmo ao vencer as limitações físicas do corpo e as
psicológicas ao enfrentar o oceano bravio, as
terras habitadas por seres mágicos e os monstros que representam a ira dos deuses.
Referenciar o herói grego significa, por
conseguinte, aceitar sua magnitude a fim
de transferir, pela estratégia da metáfora, toda sua potencialidade a outrem. Quem ou o quê com Odisseu se compara está
à altura de seu heroísmo e adquire todo o seu
status.
Voltando ao poema objeto desta comparação com o
clássico grego, nele Ulisses pode ser
compreendido como a metáfora da espera por um tempo e um espaço que a aventura errante aprisionou. O eu lírico, por um
evento que sabe ser irrecuperável no
plano da realidade: o passado. O tempo remoto não pode ser recuperado, ainda que ele seja presença
na memória.
O mar, na obra da poeta portuguesa Graça Pires,
é presença, está no tempo do agora e,
simultaneamente, habita o tempo primitivo. No presente e no passado, é imagem mnemônica mais que concreta.
A diferença é que, no presente, sua concretude evoca o mar não concreto,
aquele que aparece
nos devaneios em momentos
de solidão, quando o sujeito lírico
retoma a infância, evocando tudo que já se foi: “Há pouco aloja-se-me no coração/ a cicatriz
da espera”.
Ulisses é, portanto, uma evocação simbólica,
por vezes onírica, a reinterpretar o
mundo e o homem. Segundo Eco (2003), a linguagem, seja simbólica ou não, evoca imagens e constitui uma forma de
desvendar o mundo e transmitir valores estéticos.
Suas ponderações nos licenciam a dizer que, no plano na linguagem poética, as referenciações dão corpo às
interpretações, redimensionando o fato para
dar-lhe, no campo da forma, sentidos
vários.
O próximo poema, transcrito do mesmo livro, Uma certa forma de errância (2003), apresenta como temática
a raiz homérica do herói em conflito
com os desafios do mundo. A grandeza indomável do empreendimento
marítimo culmina na referência à narrativa do herói grego, para, em tom confessional, o eu lírico encontrar o seu próprio
barco, encontrar a si mesmo.
É um verso toda luz filtrada pelo olhar,
quando me surge, das mãos, um barco desvairado.
Vozes longínquas me interrogam sobre a tinta azul
Nota-se que a água corre, flui e, mais uma vez, conduz
a embarcação rumo ao desconhecido, aos conflitos interiores que são revisitados, pois que se assemelham
aos de Ulisses. Ao citar o herói da Odisseia,
a poeta aborda a metáfora da
grandeza, da bravura, do conflito do herói e do mundo em que ele se move, além do próprio ato “heróico” de escrever. As
águas do mar em que Ulisses se aventura são
metaforizadas pelas “tintas azuis”, elemento com que se escreve o poema. Nessa direção, pode se inferir que a
narrativa homérica é um metapoema. O barco a
cingir as vagas marítimas é o próprio poema. Em Homero, está a raiz do
heroico e a consciência da tragédia (PAZ, 2012).
Nos versos anteriores de Graça Pires, o eu
lírico confessional procura, nas vozes longínquas, o barco desvairado singrando os mares, ao modo da nau conduzida pelo herói da Odisseia. Toda essa descrição evoca o
mar, as águas e constrói, no plano da linguagem, a “metáfora
homérica”: a odisseia homérica é também a odisseia
do eu lírico, que busca, na luz, o esconderijo para as sombras.
Consoante Paz (2012, p. 204), o
tema de Homero não é tanto a Guerra de Tróia ou a volta de Odisseu, mas o destino dos heróis. Esse destino está enlaçado com o dos deuses e com a própria saúde do cosmos, de modo que é um tema religioso. E aqui surgem outros traços distintivos da poesia épica grega: o fato de ser uma religião. Homero é a Bíblia Helênica.
As peripécias heroicas da obra homérica são,
por conseguinte, mais que a deflagração
da bravura de Odisseu, o entrelaçamento entre o terreno e o sagrado, representado por homens e deuses. O
destino dos primeiros é determinado pelas divindades
que, ao confrontarem as forças heroicas com os desafios da natureza divina, pretendem operar uma espécie de
batismo da criatura ante o criador. É assim
que nasce o herói sob os desígnios
do criador.
Outro ponto a ser abordado
na obra de Graça Pires, e que se destaca
nos dois últimos poemas em
questão, é o diálogo com a tradição literária que toma corpo ao ser evocada a figura do herói Ulisses.
Como se pode entender pelo debate de Paz,
a figura do herói também se configura como elemento de inspiração na obra de Baudelaire e de Apollinaire, com algumas características semelhantes à personagem épica:
O herói romântico era aventureiro, o pirata, o poeta convertido em guerreiro da liberdade ou o solitário que passeia à margem de um lago deserto, perdido numa meditação sublime. O herói de Baudelaire era o anjo caído na cidade; se vestia de negro e em seu traje elegante e puído havia mancha de vinho, óleo e lama. O personagem de Apollinaire é um vagabundo urbano, quase um clochard, ridículo e patético, perdido na multidão. É a figura que mais tarde encarnaria Charles Chaplin, o protagonista de “A nuvem de calças” de Maiakovski e o de “Tabacaria” de Pessoa. Um pobre-diabo e um ser dotado de poderes ocultos, um palhaço e um mágico. É a clara filiação romântica do personagem e de suas atitudes; e também o de sua novidade. (PAZ, 1993, p. 44)
Desse modo, a relação que podemos estabelecer
entre os heróis da tradição e Homero,
os da Modernidade de Baudelaire e Apollinaire e a obra poética de Graça Pires é o fato de associarem a
aventura errante do ser humano ajustadas ao seu
tempo e à sua cultura. As indagações do ser e a busca pelo desconhecido, patentes por meio das ações
comportamentais desses heróis, permitem pensar o passado e o presente
em uma nova roupagem de mais
consciência.
Walter Benjamim (1994), ao estudar a obra baudelairiana,
empregou o termo “herói” com um sentido
pitoresco, paródico. Conforme
sua concepção, o herói adquire
contornos modernos à medida que viver em sociedade é um desafio
digno de heroísmo. Os poetas
modernos, por sua vez, encontram no lixo da sociedade a temática e a matéria-prima da sua
obra poética.
Embora a aventura humana – suas paixões, loucuras iluminações – continue na nova poesia, os interlocutores mudaram. A antiga natureza desaparece e com ela suas selvas, vales, oceanos e montes povoados de monstros, deuses, demônios e outras maravilhas; em seu lugar, a cidade abstrata e, entre os velhos monumentos e as praças veneráveis, a terrível novidade das máquinas. Mudança de realidade: mudança de mitologia. Antes o homem falava como universo; ou acreditava que falava: se não era o interlocutor, era o seu espelho. No século XX, o interlocutor mítico e suas vozes misteriosas se evaporam. O homem ficou sozinho na cidade imensa e sua solidão é a de milhões com ele. O herói da nova poesia é um solitário na multidão ou melhor dizendo, uma multidão de solitários. (PAZ, 1993, p. 44)
Ao compreendermos com Paz que a concepção do
herói muda porque se alteram os
cenários – deixamos a paz das paisagens bucólicas para adentrar no burburinho constante das metrópoles e na
sua solidão compartilhada – poderíamos afirmar
que na obra de Graça Pires a temática da solidão reincide e coincide com o tópico da busca pela infância perdida, da
perda do ser amado, da falta de conexão com a natureza, da metáfora da água e da aventura homérica, como se pode
perceber nos versos
e os braços, quase enfermos, de tanto chamamento.
Os verões que “couberam na boca” do eu lírico
são a representação simbólica do
tempo marcado por mágoas: “A curva do meu riso indica/ o sul da mágoa”, e o barco impresso no braço remete à
existência heroica entranhada no ser, de tal forma que se converteu em tatuagem nos ossos. As marcas das
experiências que agora são invocadas
e evocadas se perdem em meio ao chamamento que não recebe resposta,
não é atendido. Resta, então, esperar o verão, ou seja, a próxima oportunidade para viver novamente aquilo que se foi.
Desta vez, o eu lírico se programa para, no
futuro, vestir-se de branco, pois assim
fazendo, a cor da solidão pode ser vista pelos veleiros que singram as águas do mar. As metáforas, nesse poema, se
constituem a partir das imagens que flagram
o sujeito poético caminhando para seu entardecer, seu crepúsculo, sua
finitude existencial. Enquanto se
aproxima do fim, ele constrói na memória o trajeto de solidão, de mágoas até aquele momento. A paisagem natural se
junta para construir a paisagem
humana interior, e as duas não são alvissareiras, porque se fundem no drama da existência.
Navegar nas metáforas
da água presentes na poesia de Graça Pires é mergulhar nas profundezas do ser errante,
inquieto, agitado e questionador e identificar
um eu lírico mnemônico, amoroso, solitário, que faz incursões ao tempo primevo, à infância como quem busca o lugar ideal para o refúgio.
No poema a seguir o eu lírico revela um
caminhar que não é apenas aquele que
se faz de pés no chão, com os passos leves de quem segue por uma estrada. Antes, trata-se de uma trajetória tortuosa
e enviesada, que percorre a existência e, assim
fazendo, passa por todos os percalços enquanto vai sendo conduzida pela inevitabilidade do tempo que tudo devora:
Vou pela irregularidade das pedras
Há casas vazias com manchas de verdete
que são o fim e o começo de múltiplas evasões.
Os líquenes cobrem aleatoriamente
os degraus de granito e é lodoso o fio de água
(PIRES, 2018, p. 47)
Em um plano de superfície, neste poema que
também não apresenta título, o eu lírico revela uma caminhada aparentemente em um vilarejo,
um lugar abandonado, antigo. No primeiro
momento, tem-se a impressão de que é um caminhar
simples, porém, ao mesmo tempo, revela que não é fácil, já que se escolheu
o caminho das pedras irregulares, como uma reação de negação dos padrões
estabelecidos: “Vou pela irregularidade das pedras/ de uma aldeia envelhecida”.
Os versos exibem uma irregularidade que se
estende às formas do poema: há uma
negação às normas, em uma atitude que tanto pode representar as escolhas na vida quanto às formas poéticas da
liberdade estrutural e temática. Entendemos que se trata de um lugar desgastado, envelhecido e ao mesmo tempo esquecido, congelado no tempo
e, por isso, que demanda renovação.
No terceiro verso, “Há casas vazias com manchas
de verde”, a descrição trata de um
espaço abandonado em que as casas revelam uma ausência. Essa ausência que toma conta do espaço físico é a materialização
de um vazio interior do eu lírico, uma
projeção do espaço interno de quem fala
no poema. Tem-se a impressão de que os trincos não são utilizados há
tempos, porém não se trata de um abandono recente
do espaço de morada: a casa física é o espaço da alma que se sente só e, por isso, os muros já se encontram caídos
há tanto tempo que a própria natureza se encarregou de germinar a ferrugem, os musgos.
No verso seguinte, o eu lírico expõe o fim no primeiro plano, pois se trata das evasões dos antigos moradores daquele lugar habitado outrora. A segunda evasão foi a da própria natureza que agora, distante do intruso, reage. É lodoso o fio de água que resta, pois o eu lírico mostra que há muito tempo o líquido escoa naquele local. Mostra-se então uma água envelhecida, sem qualquer vislumbre de que possa ser limpa.
No último verso, entrevê-se uma mudança de
situação: há a ideia de que existem
outras fontes das quais a água jorra, e que viabilizam a sede de renovação para tudo que está
estagnado no tempo e no espaço.
Refletindo sobre a metáfora da água e sua
associação com a passagem do tempo
que tudo consome, o poema escolhido tematiza a experiência impressa nas marcas físicas dos pescadores, cuja história constitui
uma espécie de mapa existencial, em que se pode ler o labor, a faina diária.
que separa a noite da madrugada.
A navegação costeira faz-se ao mar.
Têm talhado no rosto o rumo dos cardumes
e uma rosa-dos-ventos engastada em cada mão.
O verso que abre este poema revela uma
imensidão no olhar do eu lírico, tão vasta quanto vasto é o mar das lembranças. E para maior contemplação, é necessário
subir mais alto para ouvir a silenciosa voz dos barcos que, secretamente, sempre
quer dizer algo para quem lhes dirige o olhar.
A imagem explícita
que se configura mostra um espaço percebido
e que atrai o sujeito
poético, pois a imaginação é enriquecida, ou seja, renovada por novas imagens
que surgem através da contemplação de um espaço feliz. Bachelard (1997,
p. 19) corrobora com esta ideia da poética do imaginário e do espaço feliz:
O espaço percebido pela imaginação não pode ser o espaço indiferente entregue à mensuração e à reflexão do geômetra. É um espaço vivido. E vivido não em sua positividade, mas em todas as parcialidades da imaginação. Em especial, quase sempre ele atrai. Concentra o ser no interior dos limites que protegem.
Portanto, o eu lírico lança-se neste espaço à procura do real e apreende-o na poesia através da linguagem metafórica que molda os sentidos da composição das imagens contempladas.
A composição das imagens com elementos que
remetem ao elemento água é um
exercício do lirismo que contempla e mergulha na matéria da água e permite o poetizar.
Instaura-se assim, nesse poema, a
importância da construção das imagens
que se associam aos sentimentos de quem as criou e a
ligação do eu lírico com elementos da natureza.
No segundo verso do poema, o sujeito poético
sobe à torre do farol para contemplar a paisagem que é revelada
pelo contato do mesmo em relação à natureza no seu sentir e viver as coisas.
Seu olhar se abre à contemplação, revelando o tempo passado que é guardado
pela memória e a realidade do tempo presente
expressado pelos verbos no presente do Indicativo que remetem ao agora. Destarte, só hoje é possível ao eu lírico
acessar sua sensibilidade e consciência, por
meio da figura dos pescadores, homens comuns com experiências
culturalmente herdadas e transmitidas
por via simbólicas. O rosto e as mãos dos trabalhadores do mar destacam-se metonicamente, marcando,
pela experiência com a lida diária, sujeitos
conhecedores da sua função individual e social, passíveis de evocar o ontem e
projetar-se no futuro.
3. GRAÇA PIRES NA TRADIÇÃO
DA POESIA PORTUGUESA
3.1 O itinerário da construção poética de Graça Pires
Neste capítulo analisaremos alguns poemas da autora em seus aspectos estruturais e semânticos, relacionando-os
ao tema central de nossa pesquisa, ou seja, o fundamento simbólico do elemento água. Enfatizamos, entretanto, a noção de que um texto não se abre em toda a sua extensão à leitura de uma só pessoa. Um poema, por exemplo, ao ser submetido
à apreciação de leitores diversos,
expande-se em sentidos que se complementam. Paz (2012, p. 198) corrobora
essa percepção: “O poema é uma obra
inacabada, sempre disposta a ser completada e
vivida por um novo leitor”. A participação do leitor faz o poema atingir
o estado denominado por Paz de poético e, nessa experiência, a leitura torna-se
uma variação criadora do ato
original, ou seja, cada leitor recria o poema ao lê-lo e, a partir daí, “produz”
outro texto à medida que desvenda o primeiro e o abre à plurissignificação (PAZ, 1984, p. 202).
A natureza plurissignificativa do texto poético
também se deve aos arranjos formais,
às escolhas lexicais, aos recursos rítmicos, melódicos e métricos. Tais aspectos se aglutinam para construírem
sentidos que configuram a instância literária
da linguagem.
Em Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos (2007), é possível
fazer um mapeamento das características da obra poética de Graça Pires que, de acordo com Bonafim
(s/d), é um “livro, todo simétrico e dicotômico, funciona[ando] como uma verdadeira
arquitetura pacientemente engendrada”. Uma das coisas que chama a atenção, por exemplo, é o fato de a poeta não dar
títulos aos poemas.
Da obra supracitada, o poema escolhido
para discussão apresenta
características estruturais e semânticas recorrentes na obra de Graça
Pires: o eu lírico que se enreda no emaranhado de sombras da infância e da noite e faz questionamentos
acerca do sentido da vida, em um misto de sentimento e emoção consubstanciados na linguagem. Seu ritmo é
solto e livre, revelando os traços da poética contemporânea que delineiam o itinerário de escrita da autora:
À espera de um momento de luz retorno,
Peregrina de outras luas, resgato a música
que me restou da infância como um sobressalto,
ou uma canção de embalar,
ou água fresca a ferir-me a boca, de tanta sede.
(PIRES, 2007, p. 36)
Um intercurso pelo poema mostra o aspecto
formal de liberdade estética e uma
instância semântica de inquietação emocional do eu lírico. Na forma, constata- se uma única estrofe, onze versos brancos
em que há o uso da versificação livre e ausência da posição melódica
rimada. A assimetria na medida dos versos é evidente.
Adotar essa estratégia formal é uma
característica defendida e experimentada pelos poetas modernistas e levada a resultados por vezes absolutamente inovadores pelos autores
contemporâneos e adeptos
das novas experiências com as palavras em
sentido literário. Observa-se, como já referido, o ritmo mais solto e o distanciamento das regras da métrica tradicional, mas ainda um certo rigor na pontuação dos versos. O modo de
compor desta poeta traduz a visão de uma época, o modo de vida, o compasso
incerto do homem
contemporâneo.
Dessa feita, faz-se pertinente trazer à
discussão o postulado modernista de uma
posição crítica que se assenta na inovação e analisa “o ritmo do verso livre, [como uma] inovação
modernista que não segue nenhuma
regra métrica, apresentando um ritmo novo,
liberado e imprevisível” (GOLDSTEIN, 1990, p. 11).
Nesse sentido, a corrente modernista deixou à
contemporaneidade o legado da
liberdade de escolha e de expressão poética. A partir de uma nova postura
frente à tessitura do poema, o verso livre modernista aboliu a obrigatoriedade da adoção
do esquema rítmico
preestabelecido e passou a representar o espírito de rompimento com os cânones
da tradição literária. Isso, porém, não corresponde a um
radicalismo negacionista a ponto de excluir, irrevogavelmente, a cultura
poética de outrora.
Trata-se de adotar uma liberdade de escolha
que, vez ou outra, retoma, nos versos,
o ritmo decorrente da métrica canônica, visto que a literatura não é estática e as novas estratégias poéticas não são uma lei imutável. Poetas de diferentes períodos a partir do movimento modernista adotam em suas obras a tradição clássica e a inovação simultaneamente,
podendo privilegiar, ou não, ora uma, ora outra estética
literária.
No aspecto melódico, os versos do poema
analisado são brancos (não são rimados),
embora apresentem uma característica melódica na aliteração em “m”, “n” e “s”, imprimindo-lhes musicalidade, como exemplificado
abaixo
RetorNo,
SeM heSitar, ao itiNerário Secreto do
SilêNCio e cultivo a Solidão MultiplicaNdo aS SoMbraS.
O recurso estilístico da aliteração fonêmica
consonantal em “s”, além de imprimir o tom melódico
aos versos, remete,
ao mesmo tempo, à noção onomatopeica
do sibilar do vento (ssssss!), evidenciando, assim, a presença de uma voz líquida e inquietante, escorregadia,
que permeia toda a melodia do poema. Na instância semântica, denota a passagem
do tempo e a deflagração do silêncio introspectivo do eu lírico que se põe no
lugar de reminiscente, “À espera de um momento
de luz”. Há, aí, uma fluidez do estado d’alma do eu mnemônico. O sujeito lírico sabe que esta espera não pode ser de qualquer jeito, visto que há um método e uma intenção
para se chegar à
luz desejada e mergulhar nas
sombras.
O sujeito lírico,
assim, exercita a angústia da espera para capturar os momentos
breves de raios de luz necessários para promover o processo da imagem e registrar o momento de revelação, dando
forma a sua criação poética. Faz-se necessário
estar só, não há que estar acompanhado de ninguém durante essa espera que caracteriza a ausência de
conhecimento. Há no poema vários momentos que
se desencadeiam nos tempos presente e passado. O tempo presente é a iniciação
idealizada, na qual ele deseja mergulhar. Contudo, não o pode fazer de maneira
aleatória, é preciso
esperar o momento
adequado. O presente
é fundamental, é luz que insiste na iluminação do espírito.
A partir daí, deflagra-se o processo da memória, ao passo que o sujeito oculto, implícito na desinência da forma verbal no presente do indicativo – “Retorno” – faz o caminho de volta ao passado. Retornar ao itinerário do silêncio e cultivar a solidão são condições naturais à mobilização da memória. Neste texto, verifica-se a busca de aproximação com o cosmo pela arquitetura da memória, a ordem e a construção do caminho que leva o eu lírico a remontar imagens que o levam ao encontro de suas origens. Diante dessas imagens experimentadas pelo sujeito lírico, a poesia se faz por meio do processo pelo qual ele se encontra a si mesmo, confirmando as palavras de Paz (1993, p. 31) de que “o poema é a via de acesso ao tempo puro, imersão nas águas originais da existência”.
Ademais, a transitividade indireta do verbo
“retornar”, cujo objeto indireto é “itinerário”, compõe o conjunto
imagético do acesso igualmente indireto
às lembranças. O itinerário se abre à alteridade, à memória social em um desdobramento do eu no tempo passado
que se abre para multiplicar na presença da criança, do eu para se chegar ao
próprio eu. O sujeito poético não alcança suas
reminiscências senão por meio de, antes, colocar-se em estado de silêncio e solidão.
Consequentemente, o silêncio nada mais é que a forma de poder estar no deserto
em que precisa viver para colher seu momento de luz.
Percebe-se, na poesia de Graça Pires, um eu
lírico em busca de um ajuste diante da realidade na qual se encontra, à procura, na memória, de vivências remotas para compor sua subjetividade e
desvelar a plenitude da vida e da morte no instante de alumbramento.
Constatamos,
no ofício da poesia de Manuel
Bandeira, a recorrência do substantivo
alumbramento para denominar o momento de iluminação do eu lírico, estado de maravilhamento de quem se
deslumbra com algo. É sinônimo também de inspiração
e revelação, que corresponde ao sopro do criador. Segundo Arrigucci Jr. (1990, p.
15):
Para o poeta, o alumbramento, revelação simbólica da poesia, pode dar-se no chão do mais “humilde cotidiano”, de onde o poético pode ser desentranhado, à força da depuração e condensação da linguagem, na forma simples e natural do poema. Atento aos instantes de paixão reveladora, em que amor e morte poeticamente se iluminam, mas debruçado sobre a operação concreta da forma em que o complexo se faz simples, o ensaio, por fim, se arrisca na sondagem do sentido último e mais geral de todo o itinerário bandeiriano: como sua poesia meditativa, erótica elegíaca se torna ao mesmo tempo uma forma de imitação da natureza e um meio humilde de preparação para a morte. (ARRIGUCCI JR., 1990, p. 15, grifos do autor)
No poema de Graça Pires, a visão de alumbramento acontece pela peregrinação itinerária que leva o sujeito
lírico a retornar ao passado, ao tempo primevo
e trazer de volta valores humanistas. Assim, é capaz de transpor o elo entre o passado e o presente de maneira
consciente, promovendo a elevação da alma. Isso vivenciado
a partir das imagens de sede evidenciadas pela inquietude do ser.
De acordo com Cantinho (p. 4, s/d), o “poema
salva, porque vai a caminho do sonho e
é através dele e da memória que pode o tempo florescer”. Só a partir dessa condição de silêncio é que se torna
possível acessar as múltiplas sombras, nas lembranças opacas e
fluidas.
Enquanto o passado habita o campo da memória, o
agora em que se situa o sujeito
memorialista é marcado pelas formas verbais de primeira pessoa do singular no presente do indicativo: retorno,
cultivo, resgato. Retornar e resgatar demandam
um movimento em direção “a”: do presente ao passado.
Na instância lexical do poema, a tessitura das
construções demarca o campo semântico
de base antitética: “luz” em oposição à “sombra”; a lua traz a luz, que por sua vez projeta sombras onde não incide a
claridade; água fresca que fere a boca. As noções antitéticas a partir das escolhas e dos arranjos
lexicais exprimem momentos antagônicos que marcam o
estado de espírito
do eu lírico.
Sintaticamente, a inversão construcional dos
períodos assinala o sentido não linear
da memória. Recordar é um fenômeno avesso à linearidade, à ordem direta dos fatos lembrados. Os acontecimentos vêm
à memória sem obedecer a qualquer critério
preestabelecido de organização ou linearidade cronológica: fatos primevos ocorrem por último quando rememorados;
fatos últimos ocorrem primeiro na fluidez mnemônica.
Essa aparente desordem das lembranças pode se entrever nos versos “À espera de um momento de luz/ retorno,
sem hesitar, ao itinerário/ secreto do silêncio e cultivo a solidão/ multiplicando as sombras”.
Para fazer qualquer itinerário no plano da memória é preciso, antes, posicionar-se: primeiro o eu lírico se põe na condição de quem espera; depois se mobiliza (retorna) na direção do itinerário que as lembranças constroem. Por isso o percurso do silêncio é secreto, por ser imprevisível determinar, por antecipação, o lugar a que as lembranças levarão. Sabe-se apenas, a partir da oração reduzida de gerúndio, que as sombras se multiplicarão, isto é, as recordações diluídas na ação do tempo e, por isso, tornadas sombras. O eu lírico as convoca e multiplica, lugar de dúvidas onde nasce sua poesia, que reúne elementos do cotidiano oscilantes entre o lírico, o social e o metafísico. Nada é nítido no campo da memória: tudo é desvalido do colorido dos fatos no momento em que foram vividos.
De acordo com Fialho (2007, p. 2-35), sobre a
segunda parte desta obra intitulada “Sombras”:
A sombra surge
como o lugar do não lugar, ou seja, como a imagem
de uma inquietude que tenta
resolver-se, a inquietude de quem se encontra
defronte à “inevitabilidade da morte”, a inquietude de quem busca a luz primaveril da adolescência ou de quem procura a simplicidade
de uma infância onde o conflito não
tinha lugar. Palavra com forte tradição poética, a sombra não é, nestes poemas, o lugar do sonho, do pecado e do
crime. É antes o lugar da dúvida, da
inquietação, de uma sede ainda por saciar que,
só por milagre, não resultou
numa solidão definitiva. (FIALHO, 2007, p. 2-3)
A
partir da explanação de Fialho (2007), podemos inferir que a poesia de Graça Pires engendra, na aparente
delicadeza de sua escrita, o fluir
de vozes sedentas através
das quais ecoam os sentimentos de perturbações, dúvidas
e inquietações, enquanto permanece o sujeito lírico
atento à sua contemplação.
Semanticamente, os substantivos abstratos
silêncio, solidão e sombra corroboram a noção de um estado de
espírito deflagrado no momento em que o eu lírico se põe em posição de busca de si mesmo desde suas memórias. Os substantivos
concretos que se seguem, lua, música, infância, sobressalto e canção constroem
o sentido antitético em relação ao trinômio silêncio, solidão e sombra.
Nos dois campos semânticos opostos em que luz e sombra se opõem ao mesmo tempo em que constituem complementos,
posto que a luz só é luz porque existe seu oposto e vice-versa, os nomes de natureza abstrata
correspondem à natureza
abstrata dos estados
d’alma, da memória
e da própria “sede” que encerra o poema.
FIALHO, Henrique Manuel Bento. O silêncio: lugar habitado. O texto foi lido em 2007 durante a sessão comemorativa do 77º aniversário do
poeta Ruy Belo, aquando da apresentação de O
silêncio: lugar habitado, de Graça Pires,
livro vencedor da primeira edição
do Prémio Nacional
Poeta Ruy Belo.
O poema é o vestígio da infância, é o portal que abre ao eu lírico a possibilidade de se comover
com a própria solidão, lembrando da canção de ninar
delicada. Portanto, só através da poesia é possível o reencontro idílico
com a infância perdida e o poema torna-se uma metáfora da música, a
própria melodia que embala o sujeito poético
e que apazigua a memória, os sonhos, a sede.
Entretanto, não podemos nos esquecer de
que a memória é água e, logo, impossível
de ser aprisionada. Desse modo, em vez de saciar a sede de sensações do sujeito lírico, ela fere e machuca,
transforma-se em uma sede que nunca será mitigada,
visto que sacia e fere ao mesmo tempo, em um movimento reiterado de reconciliação do tempo linear
e do tempo cíclico,
sem se prender em nenhum deles.
A oração “que me restou da infância”
subordina-se à oração principal “Resgato
a música”. Essa relação de dependência expressa
pela construção sintática
converge para o sentido de subordinação do eu lírico em relação
à dependência de seu passado
para aliviar sua solidão no presente. A transitividade direta das formas verbais “cultivo” e “resgato” assegura que essas escolhas se concretizem nos seus respectivos complementos
(objetos diretos): “a solidão” e “a música”. Há uma subordinação a esse tempo pretérito, já que “lá” é o refúgio idealizado, expresso na sequência
opcional ou alternativa manifesta nas construções iniciadas pela conjunção
subordinativa “ou”: “Ou uma canção de embalar/ ou água fresca a ferir-me
a boca/ de tanta sede”.
O desejo de saciar-se e preencher com lembranças da infância a lacuna ocasionada pela solidão é tamanha que o eu
lírico cria opções de refúgio: ou uma coisa
(canção de embalar) ou outra (água fresca). As conjunções de alternância (ou/ou) instauram incertezas,
possibilidades, ao mesmo tempo em que viabilizam a escolha do eu lírico. Similarmente, os verbos de mobilização (retorno/resgato) impelem o sujeito
lírico na direção
de um passado que se pretende presentificado. Os sentidos das escolhas verbais são reveladores do apego ao
passado como um lugar de aconchego.
Retomando o conceito
de devaneio de Bachelard (1988, p. 106), relacionado a vivências memoriais, temos que:
Então o devaneio voltado para o nosso passado, o devaneio que
busca a infância, parece devolver vida a vidas que não aconteceram, vidas que foram imaginadas. O devaneio é uma
mnemotécnica da imaginação. No devaneio
retomamos contato com possibilidades que o destino não soube utilizar. Um grande paradoxo está
associado aos nossos devaneios voltados para
a infância: esse passado morto tem em nós um futuro, o futuro de suas imagens vivas, o futuro do devaneio que
se abre diante de toda imagem redescoberta.
A infância configura, no poema de Graça Pires,
esse devaneio representado pela
recorrência da procura por reviver a infância. Ainda nessa direção, no verso
“Ou uma canção de embalar”, a imagem
construída pelo verbo embalar remete à figura
materna, cuja imagem da mãe pode ser rememorada como alguém que foi e desempenhou um papel
importante no plano de
formação do sujeito
lírico.
Trazendo a leitura para o sentido mítico,
o substantivo “água” no verso “ou água
fresca a ferir-me a boca de tanta sede”, que se apresenta como a segunda opção de refúgio do eu lírico, pode
simbolizar, de acordo com o que diz Cavalcanti
(1997, p. 159), “o arquétipo da Água-Mãe, na sua polaridade positiva,
[que] detém as qualidades de
nutridora, protetora, doadora, auxiliadora, proporcionadora de prazer, de conforto e bem-estar”.
Assim sendo, diante dessa realidade
difusa entre passado
e presente, o tempo
vigente faz-se primordial quando o sujeito poético se encontra frente a seu objeto:
a imagem da mãe que simboliza o afago, o embalar, aquela que gera a vida e
também cuida, protege. O eu lírico capta em profundidade o momento de ternura vivido e reveste-se de amor, do mistério e
da revelação poética, experiência que conduz ao alumbramento, uma iluminação simbólica
que se torna epifania experimentada pela poesia.
Outono é primordialmente a metáfora da solidão, a água que faz bem ao corpo é, paradoxalmente, a base do construto semântico da mágoa, de dúvidas e cicatrizes geradas pela solidão inscrita no decorrer do tempo. De acordo com Cavalcante (1997, p. 134), no sentido mítico, os “rios subterrâneos representam este retorno, o caminho de volta para casa, o regresso à totalidade primordial, à unidade do ser, à fonte original de onde tudo começou”.
A imagem da água evocada pelo sujeito lírico no poema a ser analisado na sequência, extraído do livro Outono: lugar frágil (1994), ecoa a saudade de tempos remotos aprisionados no próprio tempo, que se faz rio que geme e realiza o percurso contrário, à procura da fonte em busca da água regeneradora. Nesse sentido, fica evidenciado neste poema o uso da linguagem metafórica que exprime a relação entre corpo e água e remete à solidão como parte da própria natureza humana.
Procuro uma fonte para recuperar o brilho aguado
Regresso ao acaso dos rostos abertos aos alarmes da melancolia.
O espanto latente nas minhas veias, leva-se a qualquer lado
A similitude da água com o corpo,
Sou habitante da cidade, como os pombos
Sou habitante da cidade, como todos
As ruas esvaziam-se. Um som sufocado de baladas
(PIRES, 1994, p. 18)
Tomando como partida a análise formal, temos um
poema de versos longos e estamos
diante de uma construção que não contém rimas, composta por duas
estrofes e com uma arquitetura textual que toma quase a prosa como base
estrutural do texto.
Os espaços indicadores de parágrafos, bem como
os recuos das linhas à margem esquerda
do papel e suas extensões
assimétricas permitem que se depreenda uma visão das curvas dos rios,
que não seguem a linearidade reta em suas
margens e se mostram livres. Assim é
o texto de Graça Pires: seja na
poesia ou na prosa, a poeta
portuguesa contemporânea pratica a liberdade formal, ainda que por vezes mostre uma ou outra adoção
de medida clássica, como vimos na análise do poema
anterior.
Ainda na trilha da análise formal, a primeira
pessoa oracional das construções sintáticas
evidencia o sujeito lírico em posição de quem inicia as linhas do texto, como em “Fico à entrada...” (linha 1),
“Procuro uma fonte...” (linha 2), “Regresso ao
acaso...” (linha 7), “Sou habitante da
cidade...” (linha 13). Essa
posição do sujeito que fala no texto
ainda dá ênfase ao seu lugar social de habitante do espaço urbano: “Sou habitante da cidade” é a única
oração que se replica: ela reincide, inicia as
linhas 13 e 15. Esses versos apresentam uma similaridade sintática
que não deixa dúvida quanto à condição social do sujeito poético. Há uma
ênfase à confissão “Sou habitante da cidade”.
As formas verbais
“fico”, “procuro”, “regresso” e “sou” são indicativas de estado:
ficar e ser exprimem a noção de estado; procurar e regressar são, também prototipicamente, verbos que denotam
mobilização do sujeito, indicam movimento, ação.
Contudo, na instância da linguagem poético-literária de Graça Pires, essas formas expressam sentidos simbólicos à
medida que “procurar” possui sentido de busca
interior por algo que se perdeu. Na verdade, não se trata de uma busca externa por algum objeto perdido, e sim de
um estado de quem vasculha a memória para
acessar o passado. Do mesmo modo, a forma verbal “regresso” exprime o movimento de acionar os mecanismos da
memória: não há um regresso literal, mas simbólico da dona da voz que fala.
O texto
em questão é composto de oito
parágrafos, sendo que apenas o último
deles se constrói de um período cuja extensão vem dividida por pontos finais. Os períodos anteriores se compõem de
frases pontuadas apenas por vírgulas. Uma interpretação
possível seria a de que a ausência de ponto final no interior dos períodos – do primeiro ao sétimo
parágrafos – configura o todo do sujeito lírico, que inteiramente se mostra ao leitor do texto. Já no oitavo e último
parágrafo, o uso do ponto final
representaria o foco da abordagem temática: aí se retrata a cidade que, por sua vez, é um composto de partes
(bairros, setores etc.). O sujeito inteiro inserido no todo feito de partes é a base do imagética
do texto. A arquitetura construcional
dos períodos se carrega de sentidos possíveis graças à análise dos elementos e das escolhas da poeta.
Bachelard (1997, p. 158) lança luzes sobre o
que acabamos de dizer: “O rio, malgrado seus mil rostos, recebe um
destino único; sua fonte tem a
responsabilidade e o mérito de todo o curso”. A cidade é o reduto de mil rostos, que por sua vez compartilham
de um destino único: o “abismo fatal no interior do silêncio” representado pela solidão, reforçada
no plano do léxico.
As escolhas lexicais, assim, se juntam para construir as noções semânticas de solidão, cansaço e ruína: “entrada da noite”, “brilho aguado de um incêndio”, “paisagens desabitadas no âmago dos homens”, “rostos abertos ao alarme da melancolia”, “As ruas esvaziam-se”, “Um som sufocado de baladas protege os culpados das ruínas do outono”. Tudo corrobora para o estado de solitude profundo do sujeito poético, inclusive a semelhança entre a água e o corpo, “abismo fatal no interior do silêncio”.
Pode se inferir
que a água, neste poema de Graça Pires, é um líquido
universal e, por isso mesmo, pode ser interpretada como o sangue, ainda
que esse substantivo não esteja
textualmente expresso nos versos. Bachelard (1997) explicita que a água se valoriza pelo sangue, à
medida que ambos são o líquido da vida: no sangue há o componente água. De fato, para o autor,
ela é o sangue não nomeado.
A linguagem metafórica da água na produção
poética da autora remete às cicatrizes,
às mágoas, às dúvidas que assombram diante da solidão que a distância provoca. Por esse ângulo, pode se dizer
que o eu lírico busca na fonte a água que purifica
e abranda o peso acirrado da solidão. Há aí um componente imagético que, por sua carga semântica de peso árduo,
pode ser associado à imagem do sangue, que
no inconsciente da poeta simboliza a memória de vivências assentadas na dor: “Então a noite é substância como a água é
substância. A substância noturna vai confundir-se intimamente com a substância líquida” (BACHELARD, 1997, p. 56-57).
Podemos constatar as marcas deixadas pelo tempo
nos versos “procuro uma fonte para recuperar o brilho aguado de um/ incêndio e descubro que todos os rios do mundo nascem por /cima dos meus
olhos”. Há neles a correlação da vida e do tempo:
as marcas deixadas por ambos nas entranhas do ser. É na fonte que brotam os rios, é na fluidez das águas que o
sujeito lírico se reconhece e é impelido a recuperar,
na memória, as paisagens que não mais
habitam nos homens.
A água é o elemento que possibilita ao eu
lírico regressar às paisagens do tempo
primevo, que permitem que reconheça a si mesmo e tenha consciência do peso do mundo à sua volta. O elemento
líquido leva-o à recriação e ao encontro com
novos sentidos, os quais são capazes de permitir a liberação do
imaginário, dos sonhos, pois é nas
imagens aquáticas que o sujeito poético entra em estado de devaneio para o processo da sua criação
poética: “para alguns sons em uníssono na memória
dos gestos, há múltiplas paisagens desabitadas no âmago dos homens”. Nesses versos constroem-se imagens
cotidianas e metaforiza-se a própria poesia,
ambas compostas de inúmeros significados e elementos que carregam
essências do imaginário poético.
Em “O espanto latente nas minhas veias, leva-me a qualquer lado aonde/posso ser uma pessoa igual às outras, sem o peso das sílabas sobre os meus ombros”, o sujeito poético consciente do seu ofício, na atitude visionária do instante de alumbramento, não se envaidece, pois reconhece que, de acordo com Collot:
É nesse nó entre identidade e alteridade que se funda a responsabilidade da palavra poética, que faz com que o poeta possa responder por ela, e com que nós possamos responder-lhe: ele “está carregado da humanidade, dos próprios animais”. Na medida em que o poeta traz para a palavra, não o seu eu, mas esse Eu desconhecido que cada um traz em si, o poema pode nos falar, a nós mesmos. (COLLOT, 2013, p. 231)
Desta forma, o eu lírico carrega nos versos a
poesia da leveza imbuída de uma
linguagem que expressa e suaviza a
inquietação causada pelo emaranhando de
sensações e fantasias diante de uma realidade que o circunda e da qual não há como fugir. Somente o instante de criação
pode levá-lo a ser como as pessoas comuns
e, nesse momento, aplaca-se o peso do labor que é o fazer poético. Logo, a mensagem
que fica ao leitor é de que
apenas a poesia é capaz de remover, com sua mais pura
linguagem, o que nos inquieta, nossas dores, nossa solidão e trazer de volta a sensibilidade e a
capacidade de ser e viver em um
mundo conflitante.
No entanto há uma tensão aparente na poética da
negação do sujeito lírico que, embora
inserido no meio social, nega o convívio em sociedade. O objetivo da linguagem poética nesse contexto é
expressar a experiência de quem se encontra numa
luta diante da angústia para inscrever-se na linguagem e, simultaneamente, procura
trazer à consciência as atitudes e as neuroses na qual está inserido.
Nos versos “A similitude da água com o corpo é tudo
quanto sei da/ solidão: abismo fatal
no interior do silêncio”, a água metaforiza o autoconhecimento ao fazer parte do corpo. Líquido essencial
na experiência poética,
a água vai no mais profundo
do ser e evoca a expressão da sua voz, sua solidão, seus gemidos, de maneira desordenada e em tom de
atormentação, pois, neste turbilhão de vozes, o sujeito lírico, no limite da linguagem, não consegue se
expressar na sua totalidade. As metáforas
da água e do corpo ressaltam, mais uma vez, a solidão,
e são exteriorizadas com o uso de uma linguagem habitada por símbolos
na expressão da forma de ver
a vida diante dos
sentimentos mais profundos.
Na comparação “Sou habitante da cidade,
como os pombos que esvoaçavam/ a
esperança de lés a lés” o eu lírico se compara às aves que não cessam os voos, ainda que a esperança se esvaia no
movimento dos dias. Os voos, por outro lado,
evocam a paz diante das vicissitudes humanas, agregam a fantasia à
imaginação do leitor associada
com a realidade e criam um devaneio
da criação poética
à proporção que o eu que fala no poema encontra-se em contato com a realidade
do mundo e sua solidão.
O estado solitário, por conseguinte, é elemento motriz que
gira a roda da vida incessantemente.
Há, na expressão poética desses versos, a
leveza, a pureza e a autenticidade dos
gestos como algo que podemos refugiar dentro do nosso próprio eu a fim de esquecermos as tormentas e as complexidades do dia a dia. Esse fenômeno rompe o
tempo cronológico por meio da poesia que transcende o movimento e remete a outros tempos, passado e futuro no aqui e
agora – “Sou habitante da cidade, como os sobreviventes do/ cansaço ritmado
de horários”. Ao referenciar o cansaço proveniente dos horários excessivos da
vida urbana, o eu lírico conduz o leitor a se
ater a questões relacionadas ao tempo a que só a poesia é capaz de
resistir. A ação voraz de Cronos instala
o cansaço, a solidão e as preocupações individuais emergidas
da tensão das experiências e vivências históricas de cada indivíduo que compõe a metrópole.
No último segmento do poema, o eu lírico
demonstra autoconsciência e sabe que
as ilusões da vida podem trazer ruínas e conduzi-lo às novas dores. Então, num ato de recolhimento, em um casulo de
proteção, no lugar confessional, a claridade
se estabelece na consciência deste sujeito histórico. O tempo cíclico e
o movimento em espiral, o choro da
noite, a solidão e o silêncio se repetem e se fazem presentes na vida cotidiana
da grande cidade e ninguém
mais “chora a noite depois da passagem
dos barcos”.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Apreender a poesia na obra desta poeta é tarefa
que demandou sensibilidade e perspicácia, pois sua escrita, apesar de se mostrar de certa forma tímida,
é engendrada de temas que abordam as aflições, as dores, a solidão e a inquietude do homem do século XXI. Há a presença de
uma voz que assinala a relação da poeta com sua experiência vivida no espaço
geográfico frente ao mar.
Pode se chamar, dessa forma, de poesia fluida,
poesia-água por tudo que compõe a temática e a forma predominantemente livre da versificação, pela sacralização da sensibilidade lírica,
da linguagem fluida que busca a liberdade
dentro e fora das margens. A liberdade
da escrita de Graça Pires não se faz de forma
aleatória, pois há nos seus textos um rigor de pontuação e uma construção arquitetônica do fazer poético.
Nada é ao acaso em sua produção, cuja obra poética
possui um corpo de dezoito livros,
sendo o último deles publicado
em março de 2020, e a maioria
premiada por sua qualidade. Sua temática diversa mostra, ao mesmo tempo,
uma predileção pelo elemento água,
essa matéria que sacraliza a vida no momento do batismo e, a partir de então, intenciona trazer o homem para junto de si mesmo e da divindade que, em tese, o criara: Deus e deuses, em tempos diversos, estão
na base da existência, da vida.
Graça Pires se dizia batizada em nome do mar
por sua mãe, em cuja voz havia
barcos. Esses barcos desenhariam o horizonte a se abrir adiante, e o mar simbolizaria o impulso à poética interior,
a inspiração onírica,
os devaneios, a metáfora suprema
vestindo a linguagem,
o verso, a poesia.
A água presente em seus poemas se inscreve
na semântica da vida e da solidão, da
infância e das perdas, das viagens interiores: mas se a viagem inscreve na pele o destino, também leva à infância,
como o ir e vir das ondas revoltas. A água leva, mas também traz à medida que evoca
memórias. O antigo
e o novo se
encontram na superfície e nas profundezas das águas. Lá, o
passado, a infância perdida, aqui, a solidão das perdas.
Em seus versos, o antigo e o novo coexistem,
sempre com o rosto revigorado e surpreendentemente
inovador, como postula o pesquisador Alexandre Bonafim em um dos textos avulsos escritos sobre a poeta da solidão.
Por fim, a água na obra de Graça Pires pôde ser
entendida como o elemento que vai do
sagrado ao profano, sendo o líquido que carrega a vida e morte, parte que compõe toda a natureza
e o ser humano.
Esta pesquisa bibliográfica, portanto, se
inscreve sob o signo da relevância à crítica
literário-acadêmica, por contribuir para o conhecimento e a análise universal da poesia portuguesa contemporânea e da
obra de Graça Pires. Sua contribuição, certamente,
se somará a futuras pesquisas a respeito da poética fluida cuja matéria- prima é a metáfora da água.
A pesquisa possui relevância acadêmica
pelo fato de que há poucas publicações cujo estudo adota como objeto
a obra poética dessa autora. Desse modo, ao eleger sua produção como objeto de pesquisa deste trabalho de investigação,
tivemos a certeza de que abrimos caminho não apenas para outros olhares
sobre a produção dessa autora,
mas também para a importância da pesquisa acadêmica
nas humanidades de modo geral e na literatura em língua portuguesa de modo específico.
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