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segunda-feira, 8 de abril de 2024

ERA MADRUGADA EM LISBOA: LOUVOR A UM DIA COM TANTOS DIAS DENTRO

 


Era madrugada em Lisboa: louvor a um dia com tantos dias dentro. Lisboa: Poética, 2024


Era madrugada em Lisboa:

Louvor a um dia com tantos dias dentro

Graça Pires

 

Debati-me comigo e com a minha claridade, com as minhas sombras, tentei resgatar o animal emocional que já fui e tentar começar a apresentação do livro” Era madrugada em Lisboa, como convém, temperadamente, da forma mais serena e circunstancial que um acontecimento destes exige.

Disse para mim mesma- vá lá, faz um esforçozinho e concentra-te no essencial que é a poética do livro e rescinde contrato com o demais- Mas eu, sou a Luísa, apenas a Luísa, sem as competências académicas que uma critica literária teria para balizar esta obra sob a perspetiva ajustada, e fazê-lo, - como a enorme autora – a minha querida Graça- merece. Sei, no entanto, que ao lado das minhas dúvidas crescem árvores com as suas raízes antiquíssimas e que se estendem sobre a minha identidade, me atiçam a memória, o que não me deixa alterar a voz do sangue. A minha voz.  E esse é o meu argumento. Ter, também eu, vivido este dia!

Mas, se me permitem, vamos recuar um pouco, não tão pouco assim, para lhes contar o episódio que me deu a conhecer a poesia da Graça Pires.

Foi no ano de 2007, e aconteceu acidentalmente, - aliás como acontecem muitas coisas boas na minha vida- numa biblioteca pública em Alenquer. Levou-me lá a circunstância de estar a acompanhar uma pessoa que lia, como eu, poesia, mas nesse dia, estava à procura de uma obra de filosofia. Enquanto esperava decidi folhear um ou outro livro na secção de poesia. Puxei um, não me disse nada. Peguei outro. Li um primeiro poema, o segundo, virei a página e continuei assombrada com a beleza metafórica, com a elegância imagética na construção do poema e, sobretudo, com um eu poético que nos leva a uma viagem infinita pelas sombras e pela claridade, num diálogo permanente onde o eu existe como reflexo do mundo. Onde o silêncio é o abrigo de todas as dores, mas é também o lugar onde as memórias reconstroem o caminho do presente. E há o rio, esse rumor clandestino de vida, como movimento permanente que purifica e renasce. E há o mar… o mar como alimento, onde, quando se adoece, se descansa o olhar e se resgata da morte,

Foi breve a minha leitura e antes de me chamarem, só tive tempo de reter na memória o nome da autora: Graça Pires. Não podia requisitar o livro- estava muito longe de casa, por isso escrevi num papelinho o nome da autora- não fosse a memória trair-me- para o procurar em Estarreja, na Biblioteca Municipal. Não encontrei e, entretanto, sem acesso a tempo e aos meios de que hoje disponho, acabei por deixar a procura de lado. Porém, sempre que lia poesia, não conseguia deixar de lembrar aqueles poucos poemas lidos, e onde o eu se decifra em demanda permanente. Uma poesia que nos arranha e interroga, que nos descompõe, uma poesia com tal força que me havia atravessado a alma.

Entretanto, talvez um ou dois anos depois, criei uma página onde publicava alguns textos e um dia reencontrei a Graça Pires. Aquela autora…era ela e tinha deixado um comentário no meu texto!

Já passaram muitos anos, a minha admiração pela autora aumentou exponencialmente à medida que conhecia a sua vasta obra poética e uma amizade profundamente afetiva, é hoje a razão de eu estar aqui. Porque só um carinho gigante me faria vir aqui, eu que sou tímida e, em verdade, um desastre a falar em público.

Ah, já existem livros da Graça Pires na Biblioteca de Estarreja.
Eu própria os entreguei, oferecidos gentilmente pela Graça.

Mas vamos então falar sobre o livro que nos trouxe aqui?

E convido todos os presentes à reflexão e à possível explicação do que entendo ser, “Era madrugada em Lisboa”

louvor a um dia com tantos dias dentro.

O subtítulo é, por si só, um hino. Um hino ao tempo, à transgressão do lógico e uma metáfora à medida como se vive a existência. Onde cabem todos os homens, todas as emoções, todas as possibilidades.

 Dizem os entendidos, que as emoções profundas, geram torrentes de palavras e se é verdade que cada imagem vale mil palavras, não menos verdadeiro é que, cada palavra se multiplica em imagens, quando nos ancoramos nas memórias que cada uma delas nos sugere E, quando são genuinamente emocionais, as palavras não têm prazo de validade, as imagens não têm prazo de validade. Neste livro de 25 poemas que a autora dedica aos capitães de abril e a todas as pessoas que amam a liberdade, cabem milhões e milhões de imagens.

Vamos chamar-lhe relâmpago?

A autora abre a sua narrativa poética aludindo ao poema de Sophia de Mello Breyner, que todos conhecemos.

Esta é a madrugada que eu esperava

O dia inicial inteiro e limpo

Onde emergimos da noite e do silêncio

E livres habitamos a substância do tempo

E é desta matéria substantiva, que perdurará no tempo da história e no tempo dos homens, o que as palavras da autora sugerem logo no poema primeiro deste livro.

Quando li os primeiros versos do poema sequente ao maravilhoso poema de Sophia, fui remetida, logo de imediato, para Manuel Alegre e o seu poema “Trova do vento que passa” onde se constata o longo inverno (que inevitavelmente conduz à morte) em que Portugal agonizava, sem encruzilhadas de esperança, - embora pairasse um rumor, de quando em quando, de uma clandestina e almejada primavera- mas que depressa se transformava em queixume aflito de quem vê um país a definhar, e suplica por um milagre.

Apropriei-me de 2 das 16 quadras estrondosamente interpretadas por Adriano Correia de Oliveira, para estabelecer a analogia poética.

 

E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.

E diz ainda o poeta Manuel Alegre

 

Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Peco-lhes a atenção para o poema que a Margarida vai ler.


Sem prazo, sem aviso, sem detença,

aconteceu em abril

o mais esperado tempo

e, com ele, o cheiro

da terra que nos pertence.

No contorno deste chão

um grito abraçou o povo comovido

com o assombro e com os cravos.

Reinventaram-se os sonhos

e as palavras fraternas.

Era madrugada em Lisboa.

E o dia captou a dádiva da luz matinal

para que cintilasse no olhar de toda a gente.

No clamor de cada rua,

a palavra liberdade

passou de boca em boca,

até ao enrouquecimento da alegria.

 

A primeira estrofe do poema de Era madrugada em Lisboa “envia-nos” de imediato, literalmente” numa máquina do tempo, para esse tempo de espera por alguma coisa que venha quebrar o ciclo desse inverno sem fim à vista. O poema termina em festa, com a alusão à dádiva de uma luz matinal que cintila de uma forma absoluta, inequívoca, que toma de assalto o olhar, o corpo, a voz, /até ao enrouquecimento da alegria!

Mais à frente, a poeta diz: Um punhal de transgressão/ derrubou muros antigos/ e o impossível alento foi possível.  Numa referência clara aos capitães de abril, a poeta confirma o que já se intuía nas forças armadas, descontentes com a situação política no país e com a longevidade da guerra do Ultramar, que deixava filhos órfãos, mães permanentes de luto. Estavam distraídos os deuses, / ou encontraram os homens, / a justa medida / da sorte que escolheram? /   Aberta a porta a esta interrogação, a voz poética é convicta, quando afirma que esta ousadia, foi o degelo de uma estação que tolhia a vida.  E que esta ousadia foi absolutamente redentora e os seus protagonistas jamais podem ser esquecidos.

Leitura do 2º poema


Eram militares.

Eram jovens.

Carregavam no peito

o peso da arma e do receio.

Quantos rezaram?

Quantos choraram?

Quantos vacilaram?

O retrato dos filhos perto do coração.

A imagem da mulher a cercar-lhes o corpo.

As mãos das mães cheias de bênçãos.

E todos tão cheios de coragem!

 

Mas até a claridade tem os seus esboços de sombra e eles também estão na voz poética, traduzindo a tensão que, por instantes, digo instantes, porque na dimensão desmesurada deste dia de deslumbre, não há objetividade na contagem do tempo. O tempo é a alegria delirante do povo, é a certeza que o homem faz o tempo dos seus sonhos. É quando, frente a frente, os camaradas se confrontam, uns a abrir-se à definitiva claridade, outros ainda sob o jugo da servidão. Num poema repleto de metáforas, haverá nos céus comuns, possibilidade de harmonia?! Ouvimos a voz da poeta dizer este receio. Duas notas discordantes que acordam o poema e lhe sobem a vitalidade na progressão dos versos. De repente os pombos negros / volteiam em círculos / junto à ribeira das naus /   Num círculo maior / os pombos brancos / sobrevoam o terreiro do paço/ A linha curva traçada em lento rodopio / como se fosse misterioso, / cabalístico, enigmático / o volteio circular dos pombos/.

Insinua-se aqui, o ranger das dobradiças enquanto a janela não se escancara para deixar entrar a luz definitiva. Podemos dar-lhe um nome, podemos dar-lhe um rosto. A autora dá-lhe a essência e o momento decisório, nas palavras que a seguir se vão ouvir

 

Leitura do poema 3

  

Suava-lhe na mão a granada

que apertava com destemor.

Sentia colado na farda

o peso de um país

em esperança, em deriva.

No seu olhar era tão nítida a coragem,

que as armas de fogo

prontas a disparar se renderam.

Houve quem abraçasse o capitão.

E todos o respeitaram.

E muitos lhe chamaram companheiro.

 

E ainda assim o Tejo corria mansamente, alheio ao dilema dos homens, como a corrente inexorável da vida,

 E quem chegava e empoderava os momentos, carregadas de simbolismo e de futuro?! As mulheres! As mulheres com a sua força e o seu equilíbrio. Elas que carregavam braçadas de cravos rubros, vitais e sólidas naquela paisagem humana que se queria inteira. As mulheres fecundas, preponderantes em toda a obra poética da autora, chegam e multiplicam-se em generosidade e paixão oferecendo a flor da alegria que contagiou as multidões.  Os cravos fecundaram os sorrisos de esperança e até os meninos sabiam que era através dele que o futuro se pressentia. Um menino silenciava a morte da metralhadora com uma flor de liberdade. E se já referi que este livro tem milhões e milhões de imagens, esta, de Sérgio Guimarães ficou como símbolo inequívoco de vida e liberdade. Mas foram tantos e tantos os registos que ficaram a solidificar o olhar da memória…Eduardo Gageiro, Alfredo cunha, etc, etc, deixaram-nos testemunhos físicos de beleza arrepiante.

  No olhar da multidão, florescia um verão de contentamento. Nos soldados, nos passantes, nas raparigas, nas ruas, um aroma a puxar a liberdade.

Leitura do poema 4

 

Não havia na cidade sítio algum

onde não cheirasse a cravos.

Na praia, na relva, no campo,

na prumada das casas cheirava a cravos.

Cada mulher, cada homem, cada criança

tinha no hálito e no suor o mesmo aroma.

Os cravos cresciam nas calçadas mais íngremes,

nos becos mais escuros, no asfalto,

nas mãos dos soldados e dos meninos,

nas janelas, nos alpendres, nas portas.

E irrompiam em todos os sorrisos,

como se fossem um clarão de esperança.

Tanto tempo à espera deste dia!

 

  “Unia-se o povo para não mais ser vencido”, relata a autora. E essa promessa, é mais que uma promessa, - porque de tão evidente no rosto de todos, não deixava margem para recuos, - cantou-se em uníssono, espelhou-se nas águas do Tejo e propagou-se nas “trovas do vento que passa “estendendo ao mundo notícias de um país em Liberdade.! E as mulheres fecundas e prenhes de esperança falavam…

Leitura do poema 5

Um brilho inigualável roçava

os olhos das mulheres grávidas.

De respiração descompassada,

a insurgir o brado libertado dos seios,

passavam umas às outras a palavra:

“vamos parir em liberdade”.

Dava-lhes tanta calma essa certeza,

que a certeza ganhou voz

e, a um tempo chorando,

a um tempo rindo, repetiam:

“vamos parir em liberdade”.

 

Estes 25 poemas de “Era madrugada em Lisboa- Louvor a um dia com tantos dias dentro” é uma arqueologia das emoções de quem teve a felicidade e o privilégio de o vivenciar. E honra o passado, porque só o honrando e explicando se consegue construir o futuro.

            

Estes podem ser, - para alguns- os poemas simples, na obra a que a poeta nos habituou, mas, para mim, são a poesia do instante ou, em melhor definição, e penitenciando-me por ir roubar à nossa também poeta e editora presente, Virgínia do Carmo, o título de um livro seu, Poemas simples para corações inteiros!

Para mim, falar deste livro é falar de um alfabeto luminoso!

É falar, como disse, de uma arqueologia de emoções.

É falar de pele e suor. De lágrimas e riso, de fígado, de pulmão, de coração!

É falar da sagração de uma primavera sonhada. De todas as estações de que se alimenta a memória e a emoção.

É falar de rios e caminhos, que transbordam, que levam mágoas e desgraças, mas que acertam finalmente um céu para as aves.

É falar de Salgueiro Maia, é falar dos cravos nas metralhadoras, é falar de um futuro que vai ser medida na esperança das mães.

É o pulsar dos cravos que acende a redenção, como o sangue ou a vital respiração.

É chorar quando se abraça e gritar, gritar uma alegria desmedida que figura como espelho da cidade, da aldeia, do país inteiro...

É acertar o tempo, desacertando o relógio. É fulgor, pulsar e amar, incondicionalmente, a liberdade que chegou e tem de ficar...

É, sobretudo, uma voz plural! De muitos, de tantos, que por mais que passem anos e anos, na voz coletiva do povo e na voz afirmativa da autora se pode cantar, “Foi bonita a festa, pá!”

 

Luísa Henriques

Lisboa, 07 de abril de 2024

 

No lançamento de “Era madrugada em Lisboa: louvor a um dia com tantos dias dentro

                                                        


Há momentos ímpares!
Estar presente na apresentação de mais um livro da estimada amiga e poeta Graça Pires, foi uma honra imensa, e um canto à comemoração dos 50 anos de um Abril marcante.
Edição de POÉTICA GRUPO EDITORIAL, um livro apelativo e dimensionado ao traço de Graça Pires.
Lido numa noite, momentos houve ... bem tocantes, ao lembrar-me do meu "poiso" como militar nas terras da Guiné Bissau, aquando do despertar livre!
Não resisto.

O amanhecer foi tão inesperado
que lisboa vibrou em todos os lugares
antecipando o regozijo.
Nunca se tinha visto uma festa assim,
com carros de combate, chaimites,
com os militares e o povo em euforia
a encher cada rua, cada jardim, cada árvore.
E a cidade era de toda a gente.
Havia palmas, vivas à liberdade a tatuar as bocas,
lágrimas a ancorar o olhar em voos infinitos.
"Foi bonita a festa , pá."

GRAÇA PIRES
"Era Madrugada em Lisboa"
Louvor a um dia com tantos dias dentro
Poesia
2024 - Poética Grupo Editorial

José Luís Outono, poeta
E-mail, 09 04 2024


                        

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