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sábado, 28 de maio de 2022

UMA VARA DE MEDIR O SOL


Uma vara de medir o sol. Lisboa: Coisas de ler, 2018


 

Com a luz nas mãos, do corpo pulsante à claridade solar


Notas de leitura ao livro Uma Vara de Medir o Sol, de Graça Pires

De pé, demoradamente invocando

o grito do destino, somos a sombra

de uma vara, presa à inclinação do sol,

que define a vertigem que nos derruba

e que nos ergue.

Graça Pires, em Uma Vara de Medir o Sol

 

O Sol, estrela central do sistema solar é, também, âmago da Poesia de Graça Pires.

 

Quando a autora me convidou para escrever umas palavras sobre o seu livro Uma Vara de Medir o Sol, senti um feliz desafio, o privilégio de traçar umas linhas sobre a intensa claridade que a autora nos oferece. Por outro lado, o título liga-se de imediato ao nome da Colecção de poesia em que agora se integra — Clepsydra1 — sugerindo um encontro feliz com o projecto de poesia em que tenho vindo a colaborar com a editora Coisas de Ler.

Esta é a vigésima publicação da autora e o seu décimo nono livro, embora sendo uma reedição, trata-se da primeira vez que é editado em Portugal (a primeira edição brasileira de 2012, teve a chancela da editora Intermeios de São Paulo). Nascida em 1946 e Licenciada em História, Graça Pires é detentora de cerca de nove prémios literários reconhecidos, convivendo com a sua já extensa publicação e o seu talento literário, sem exuberâncias. Revela-se na poesia com a obra Poemas, em 1990 (editora Vega), publicada após ter recebido o Prémio Revelação de Poesia da APE, em 1988. Em 1993, recebe o Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama, com a obra Labirintos, que virá a ser publicada em 1997, numa edição da Câmara Municipal de Murça que lhe atribuiu o prémio Fernão Magalhães Gonçalves. No mesmo ano de 1993, recebe o Prémio Nacional de Poesia da Vila de Fânzeres, para Outono: Lugar Frágil, livro publicado pela Junta de Freguesia de Fânzeres, no mesmo ano. A premiação das suas obras de poesia, repete-se com Ortografia do Olhar (1995), Conjugar Afectos (1996), Uma certa forma de errância (2003), Quando as Estevas entraram no Poema (2004), O silêncio: lugar habitado (2008). Ainda que várias vezes premiada, denotando o gosto unânime dos seus leitores, é “(…) surpreendente e contraditório o facto de ser simultaneamente uma figura discreta da poesia portuguesa e do panorama crítico literário, sempre tão “urgente” nas suas descobertas e revelações literárias.” (Maria João Cantinho, em apresentação do livro Poemas Escolhidos 1990–2011).

 

Se a medição da inclinação do Sol (2), quer pela vara (gnômon 3) ou por um relógio de água (Clepsydra) na ausência daquele, sugeria um modo de orientação cronológica daquilo que se convencionou chamar “tempo”, no presente livro a autora Graça Pires traz-nos a evocação de um instrumento antigo com recurso a fontes poéticas, à forma tão própria de abraçar as preocupações inerentes ao humano e ao seu meio com a transversal corrente da palavra poética. Natureza e humano interagindo com aspectos psicológicos, sociais e culturais marcadamente presentes nas imagens que Graça Pires nos oferece. Vejamos o poema que se segue:

Há lugares que têm a feição

das coisas instáveis e perecíveis.

Lugares sobrepovoados

onde os gatos vagueiam em silêncio

como se ouvissem os passos dos mortos.

Lugares com ruas sem saída e casas precárias.

Lugares que são faca e cinza,

lume e vento, lixo e medo.

Lugares onde empalidecem os dias

e as pessoas e os deuses, cada vez mais falíveis.

(Graça Pires, em Uma Vara de medir o sol)

Neste poema a autora mostra-nos a condição de alguns “lugares sobrepovoados”, traçando o mundo degradado e perecível, em que vivemos, com metáforas reveladoras de uma sociedade onde convivem guetos, miséria e morte. Atente-se às palavras “medos”, “lixo”, “cinza” e “silêncio” e aos dois últimos versos “Lugares onde empalidecem os dias/ e as pessoas e os deuses, cada vez mais falíveis.” (GP). Os poetas têm uma função social primordial e necessária, como já referia Georges Bataille, quando a humanidade vê negada a possibilidade de existir e transpor os limites do possível, limitada que está a sua voz perante políticas sistemáticas de silenciamento, decorrentes da agressividade dos mercados ou por questões de mentalidade economicista e desumana.

 

Este é um livro que é também lugar construído como um processo de energias conscientes e “inconscientes”, numa dinâmica criativa e reflexiva em que se foram vincando problemáticas ambientais importantes que têm origem na cisão que o “progresso” vem instalando entre a natureza e o humano. Este é um dos temas flagelo do nosso tempo, a que os poetas não se deveriam furtar, e a que Graça Pires faz jus trazendo a claridade do seu corpo poético a este livro com que nos presenteia e chama a atenção.

 

A propósito da luz dos lugares, diz-nos António Salvado num seu poema com o título lugar: “Onde a flor seja gravidez de cravos/e se descubram gritos das montanhas/ a traçar rios, mares, continentes. /Onde o sol não se esconda porque não/ e a claridade seja eternidade/ e a eternidade seja fé e pão. (…)” (A.S, em La hora sagrada, p. 68). Assim é a poesia de Graça Pires “fé” e “pão”, hino silencioso do corpo ancorado à palavra. Do corpo onde nasce a poesia de Graça Pires, um jogo de margens necessárias articula meticulosamente emoções e raízes num quotidiano que oscila entre o lírico, o social e o metafísico.

Não foi em vão que Graça Pires seleccionou os versos de Albano Martins para abrir o seu livro. A “Casa” esse lugar herdado e por nós habitado é também passado, presente e futuro, tempo-lugar vincado pela acção humana e por todos os condicionalismos envolventes.

Conta-nos a autora:

Antes do homem havia a terra

Geografia mágica, sagrada

Que, na luz e na treva, explodiu

De espanto e guardou, milenarmente,

Os mistérios da vida e da morte.

Depois da terra veio o homem.

E o homem tornou-se um morador incauto

E perdeu o paraíso onde agora os deuses,

Quando passam, desviam o olhar.

(GP, em Uma Vara de Medir o Sol)

 

Aqui Graça Pires mostra a ruptura entre a natureza e o humano e o consequente desequilíbrio, “E o homem tornou-se um morador incauto//E perdeu o paraíso onde agora os deuses, / Quando passam, desviam o olhar.”

Se o corpo é um campo de memórias vive-se com ele a percepção do desamparo e do abismo, dos medos com que somos confrontados no planeta azul. E se a criação mostra aos poetas um lugar liminar, entre o ser e o não-ser, dando-lhe recursos de permanente mutação, face ao mundo exterior, os receios persistem em angústias sem horizonte onde se estreitam as janelas de interacção reparadora.

Este livro de uma imensa claridade com que a poeta já nos habituou em todas as suas obras, ressurge entre metáforas metalinguísticas imprevistas e uma linguagem simples, sinal de depurada maturação, de um exercício de escrita em busca do “Absoluto” que a poesia sugere representar na “máxima condensação da linguagem humana” (Eduardo Lourenço, em Tempo e Poesia).

Corpo-espaço, desassossego e espanto, testemunho paradoxal de um mundo moribundo que se faz voz precisa na poeta. Nos poemas de Graça Pires, as palavras são já acção transformadora, lente lúcida e transparente da poeta descobrindo as manhãs, o futuro.

 

A palavra mede aqui a inclinação do sol na terra e no humano revelando a extensão da sombra, mas essencialmente, o seu contraste. Reflexo de si e dos outros a autora cria a partir de uma geografia de sentidos de um quotidiano assimilado e vertido na água do poema.

 

Conheço a obra da poeta e a autora e posso referir que nela a ambivalência onírica e melancólica é seciada por uma semente “amarga” que velozmente se ilumina com a palavra que incide na página, com o sol que faz eclodir a sua poeticidade. “Só a palavra poética é libertação do mundo.” (Eduardo Lourenço, idem).

 

Apesar da solidão e do silêncio sempre presentes na escrita da autora, esta nunca está só, no sentido literal da palavra. Acompanham-na todas as nuances do mundo vivido, por viver e, ainda, o dos leitores presentes neste círculo próximo da palavra poética que ao leitor é oferecido, uma espécie de “encarnação sensível do Infinito no finito” uma das descrições do acto poético como nos refere Eduardo Lourenço.

 

Graça Pires recorre a instrumentos antigos, move o seu arado lavrando a terra poética com a transparência e a intensidade de autores como Daniel Faria, Herberto Helder ou Rilke.

 

Se por um lado a riqueza metafórica da poesia da autora a aproxima de Herberto Helder naquilo que Maria Cantinho afirma ser “uma componente alucinatória fortíssima” e, ainda, se na poesia de Herberto Helder encontramos uma linha que se estende do mítico ao utópico, em Graça Pires o fluxo poético estende-se do concreto (quotidiano) ao utópico assente nas mãos do humano e por isso possível de transformar. Vejamos alguns versos dos dois autores:

 

De Herberto Helder,

“Um poema cresce inseguramente

na confusão da carne,

sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,

talvez como sangue

ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência

ou os bagos de uva de onde nascem

as raízes minúsculas do sol. (…)

(Herberto Helder, Sobre um poema).

 

Da leitura da obra de Graça Pires reconheço na dinâmica pulsante da sua poesia, um fluxo veloz, “um grito do destino” “que define a vertigem que nos derruba/ e que nos ergue” e esse movimento ou força em que progride o poema aproxima-a mais de Daniel Faria com os seus instrumentos de lavoura e a sua arte metafórica tão próxima do sol, como um “candeeiro branco” “que se ergue entre as mãos” (Daniel Faria, em Poesia), onde julgo encontrar algumas afinidades entre escritas e vocações. Se não consegues mudar o teu mundo, imagina essa possibilidade com a tua solidão:

 

De Daniel Faria,

Escrevo do lado mais invisível das imagens

Na parede de dentro da escrita e penso

Erguer à altura da visão o candeeiro

Branco da palavra com as mãos

Como paveia atrás do segador

Vejo os pés descalços dos que morrem sem nunca terem provado o pão

Grito-lhes: imaginai o que nunca tivestes nas mãos

Correi. Como o segador seguindo o segador

Numa ceifa terrestre, tombando. Digo:

Imaginai

(DF, Poesia)

Para Graça Pires a poesia é branca e move-se a uma velocidade infinita que encontro na poesia de Daniel Faria: “Correi. Como o segador seguindo o segador” (DF), “nessa vertigem e nessa claridade repousa a nossa existência sem repouso” refere Eduardo Lourenço (ibidem). No entanto, a escrita de Graça Pires é peculiar no que se liga à tentativa de modelação do quotidiano através da poesia que nela se faz voz terceira, “Aguardamos uma luz de seiva/ que reacenda a treva que nos cega” (GP, em Uma Vara de medir o sol)

 

Diz a autora no poema com que iniciei este texto,

De pé, demoradamente invocando/o grito do destino, somos a sombra /de uma vara, presa à inclinação do sol,/ que define a vertigem que nos derruba/ e que nos ergue.

(GP, em Uma Vara de medir o sol)

 

Diria Rilke sobre o tema de Uma Vara de Medir o Sol:

(…) Mal notam

Como arde tudo o que as suas mãos tocam,

De modo que quando se à sua última orla chegar

Não a podem segurar sem se queimar. (…)

(em O Livro de Horas, p. 273)

 

Em Uma Vara de Medir o Sol, a poesia é material suspenso do desejo de uma nova transformação perante a destruição do mundo. Assistimos neste livro a uma chamada de atenção ao leitor para as grandes ameaças do planeta e à aspiração de perpetuar o devir, a luz do sol em manhãs vindouras, pois somos responsáveis quando “O chão arde em nossos passos, vítimas/e culpados do desvario dos caminhos.” (Graça Pires, em Uma Vara de Medir o Sol).

E refere, ainda, a autora,

“Por quem tocam os sinos a rebate

quando estremecemos voltados para a terra?”

(GP)

 

Graça Pires inscreve a sua voz e o seu silêncio numa escrita-apelo transversal à Terra, à Humanidade, a todos os tempos, à Vida.

 

Gisela M. Gracias Ramos Rosa, Poeta

Prefácio do livro, novembro, 2018

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Autores visitados: António Salvado, Daniel Faria, Eduardo Lourenço, Georges Bataille, Graça Pires, Herberto Helder, Maria João Cantinho, Rainer Maria Rilke, Ronaldo Cagiano, Victor Oliveira Mateus.

*

clepsydra ou relógio de água foi um dos primeiros sistemas criados pelo homem para medir o tempo. Trata-se de um dispositivo movido a água, que funciona por gravidade, no mesmo princípio da ampulheta (de areia).

O relógio de sol é o mais antigo instrumento de medição do tempo, foi inventado há pelo menos 3.500 anos. Nele, as horas são indicadas pela sombra que o gnômon (objeto que, pela direção ou comprimento de sua sombra, indica a hora do dia numa superfície horizontal.) faz na superfície do relógio.

O Gnômon é a parte do relógio solar que possibilita a projeção da sombra.







Um conjunto de poemas curtos oscilando entre a sextilha e a décima. Embora hoje exceção da regra, num poema irregular de 12 versos. Os poemas são formados por uma única estrofe com versos livres. (Estou a reler Whitman que é o chamado pai do verso livre!)

Estamos perante uma portentosa leitura metafórica, onde o leitor, colhido por um irrefreável jogo de imagens e refrações, pode correr o risco de se deixar envolver por um certo maravilhamento especular do sensível, livrando-se assim de outro níveis de leitura, como, por exemplo, o que nos poderá ser dado mais pelo intelecto do que pela sensibilidade, ou seja, a procura do sentido para lá da harmonia e dos jogos formais. Superada “esta armadilha” (?) (lembra-me Agustina!) imposta pelo corpo textual, apercebemo-nos que estamos perante uma obra:


a) Cujos referentes são a marca de água da poeta: os rios, as árvores, os pássaros, a chuva, etc.: uma predominância habilmente conciliada com o mundo humano e social;


b) Obra esta que, apesar de derivações e entremeios estilísticos, apesar desses jogos de velamentos múltiplos, apesar ou sobretudo devido a eles, desvela a inquietação fundamental deste livro, a questão ecológica e ambiental.

No entanto, nessa espinha dorsal do livro, não estamos perante uma enumeração simples que vai sendo desfiada ao longo da obra. Não a estrutura é bem mais complexa:

1) Um dos elementos fundamentais aqui é a “sede”

De seda. Da sede: gota a gota” (. 11)

uma promessa na secreta aventura das sementes / e o cheiro dos pomares alastra sobre a sede” (p. 23)

O pão ázimo lhe sufocou a fome. / A chuva lhe esquecia a sede” (p. 40)

“(…) e é lodoso o fio de água / vertido pela fonte de outras sedes” (p. 55)

Repara: já há amoras no muro de pedra / onde prendemos as raízes da sede” (p. 63)

Por toda a parte as fendas da sede sulcavam o chão” (p. 67)

Mas… sede de quê? E a resposta é-nos dada no antepenúltimo poema:

            “Aguardamos uma luz de seiva

que reacenda a treva que nos cega.

Uma luz que devolva à terra

a farta lembrança das nascentes.

Uma luz para ficar como herança

quando as aves da morte se afastarem

para sempre deste caos

que, assustadoramente, nos acusa”. (p. 81)

 

Ora, é entre esta sede e o vislumbrar do possível que a hecatombe do presente vai sendo desfiada e a poeta reforça esta ideia no penúltimo poema:

                                   

Antes de anteciparmos o futuro

  acrescentemos à voz da terra

  o sobressalto das fontes

  refugiando a sede.

  Nenhuma nascente escapa à exigência,

  tão vulnerável, da secura do barro

  que nos separa das nuvens.” (p. 83)

 

E é entre este trilho simultaneamente ecológico e existencial que vai sendo radiografado o hoje com seus desastres e suas turbulências

                                    

Na estiagem há-de ouvir-se o murmúrio
agonizante dos rios já perdidos do mar.
E quando o inverno chegar, os caudais 
galgarão as margens se o excesso de cimento
consentir às águas que firam as casas
e a estreiteza dos caminhos.” (p. 39)



o clamor dos glaciares desmoronados” (p. 41)

 

                                    “

Lugares sobrepovoados onde os gatos
vagueiam em silêncio como se ouvissem
os passos dos mortos.
Lugares com ruas sem saída e casas precárias”

(p. 43)



“Na pressa das cidades onde o voo se faz fuga”
(p. 45)


E o homem tornou-se um morador incauto
e perdeu o paraíso onde agora os deuses,
quando passam desviam o olhar
” (p. 53)

Etc. etc., os exemplos percorrem todo o livro.


Preso ao olhar e à constatação do eu-poético poder-se-á encontrar a invocação, “a invocação” como estância mediadora entre o marasmo do presente e esse talvez futuro vislumbrado.


“Os rituais da infância não nos deixam esquecer”

                                    (p. 15)

 

O viajante ajoelhou-se sobre a terra

e cantou e cantando rezou” (p. 41)

 

Um dia nos pátios das casas

hão-se acender-se fogueiras

para atrair a chuva (cá está a sede escondida)

como uma crendice de tempos remotos” (p. 47).

 

E é entre esse tempos remotos e os horrendos tempos de hoje onde o homem invoca um futuro diferente que o eu-poético espera, qual vara presa à inclinação sol.

 

          “De pé, demoradamente invocando

o grito do destino, somos a sombra

de uma vara, presa à inclinação do sol

que define a vertigem que nos derruba

e que nos ergue” (p. 35)

 

Victor Oliveira Mateus, poeta

             Apresentação do livro, novembro 2018 (Texto manuscrito)







UMA VARA DE MEDIR O SOL»
- GRAÇA PIRES-

Acabada mais uma excelente leitura, não resisto a reflectir um pouco sobre o último livro da autora e amiga Graça Pires, que estimo e admiro.

"De pé, demoradamente invocando
o grito do destino, somos a sombra
de uma vara, presa à inclinação do sol,
que define a vertigem que nos derruba
e que nos ergue."

Desde o seu primeiro livro editado em 1990, após ter recebido o Prémio Revelação de poesia da APE em 1988, um mar criativo de outros livros, surgiu, bem como alguns prémios literários, de que destaco " O silêncio: lugar habitado" - Prémio Nacional Poeta Ruy Belo em 2008.
Graça Pires navega num mundo extraordinário de descoberta constante, onde respira e dá a conhecer sensações apelativas de quadros metafóricos ímpares. É esta identidade, que numa linguagem simples agarra o leitor, e seduz muitas vezes, a uma releitura esclarecedora dos movimentos envolventes da sua criatividade.

José Luís Outono, poeta

 

E-mail

 







Querida Graça,

 

Acabei de ler o livro hoje. É curioso perceber como a sua poesia dialoga comigo, com as fases da minha vida e, especialmente, com o que também escrevo. No livro são visitados temas que também tenho em mãos neste momento. E isso enche-me de alegria, porque a reconheço como uma irmã. E como é bom ter irmãos! Tenho a sorte de os meus pais me terem dado um. Mas a vida tem-me trazido muitos mais. Muitas, aliás. Irmãs, acima de tudo.

 

Para mim, o livro é um testemunho - e uma profecia - de quem vê o mundo natural e antigo perecer, de quem vê a ruralidade profanada, de quem vê as feridas da Terra. Não consigo partilhar consigo todas as emoções que senti, há poemas belíssimos que explodem dentro de nós quando os lemos. As referências às fontes são-me muito íntimas, pois cresci numa terra (Alcanhões) que fez das fontes símbolo mítico. E como sou do elemento água (sou Peixes), mais ainda, como deve imaginar. Mas há mais referências. O poema em que referencia as mós emocionou-me muito, pois vejo ali a minha ancestralidade beirã, o avô da minha mãe era moleiro, nas proximidades do Dão. E há a sede, o abandono da água, a fome. O abandono dos deuses. O último poema, Graça, é terrível. Ainda vibra dentro de mim. As andorinhas buscando um último lugar para morrer. Quanta dor, quanta solidão, quanto abandono. E quanta beleza! E tudo cantado e contado sob o olhar da sua voz, distante, mas atenta, sem interferir, mas testemunhando. É um livro muito duro!

 

Sabe, Graça, acredito na nobreza. Não na nobreza classista, que demarca a sociedade, pois a minha natureza é libertária. Reconheço que existem almas nobres, almas que andam pelo mundo e são elevadas, puras, limpas, claras. Conhece os elfos que povoam os livros do Tolkien? Almas assim. A poesia é um caminho de nobreza e os poetas são aristocracia. Neste livro vejo a sua nobreza, Graça. Como nunca! Obrigado, muito obrigado!

 

Samuel Pimenta, poeta

e-mail, 21 de dezembro de 2018









O livro começa com um “Regressei”, com um movimento de viagem e uma cartografia em que existem os longes inacabados como desenhados com um fino lápis. A linha do regresso e o alento afetivo e narrativo que abre é cortada bruscamente com o movimento assimétrico da foice a ceifar o trigo e o tempo em ciclos e círculos que deu metáfora ao pensamento para inventar a agricultura. E ainda se abre no poema uma outra possibilidade temporal e narrativa, a do mar e a potência do humano a metaforizar o movimento primordial e constante das marés. Todos os fios narrativos são atravessados por imagens que são metonímia da presença humana, evocando dum lado o agudo, o cortante, nas unhas e nos dentes e a degradação na palidez, e doutro esse alarme para qualquer cousa como a possibilidade dum desenlace catastrófico, dum futuro de terra devastada, que já vai como carga nessa “dupla sombra dos barcos”, imagem do humano e as suas dualidades, sejam elas a marca de como apreendemos o mundo ou a representação das escolhas e as bifurcações dos sentidos.

Todo o livro está atravessado por estas linhas de fuga inacabadas e dinâmicas, portadoras de energias e sentidos: o paraíso que se lembra ou se profetiza, descrito como frágil ou dificilmente percetível, a força do ritual que por vezes consegue impregnar a palavra e dar-lhe o seu fim transformador, o testemunho da destruição e a precariedade, dos estilhaços do mundo, a esperança no caminho da salvação aberto pelo afeto e a capacidade de ver longe, de manter rotas certas ou de portar luz dos personagens femininos, dos viajantes, dos rios e das aves. Narra a história da civilização como um relato das relações entre o humano e o material com a mediação do logos, palavra e pensamento, com estilo fundamentado nas elipses e na captação do essencial por metonímias que nos dão acesso ao todo: a presença primigénia, soberana e mágica da terra, a irrupção do humano, a invenção da agricultura na repetida metonímia do cereal, a perda da transparência dos signos e do sentido do destino, a continuidade da enunciação do natural e a esperança na reconstrução da harmonia entre o humano e o cósmico. Episódios todos relatados sem sequência, mas numa linha de constante presença do todo e a tensão à volta das suas relações, como se tudo convergisse para o momento do corte da harmonia ou a esperança no seu retorno, não se sabe nunca se previsto ou não, que vertebra sem organizar, sem sentidos únicos, a presença humana no seu habitat.

Antes do homem havia a terra:
geografia mágica, sagrada…
Depois da terra veio o homem.
E o homem tornou-se um morador incauto
e perdeu o paraíso onde agora os
deuses,
quando passam, desviam o olhar” (página 46).

Habitat, porque este é um livro sobre o habitar, sobre a casa. Alguns poemas põem o foco sobre o habitar fazendo, plantando e cultivando. O poema titulado “Desconhecemos as cicatrizes das mãos” toma as mãos como metonímia do humano, mãos que se transformam e que ficam marcadas com cicatrizes e gretas pelos instrumentos de lavoura, mós, enxadas ou arados, com os que o humano transforma a natureza para o seu sustento. Mãos, que como os olhos, entram na matéria e a transformam e que, por sua vez, são veículo da transformação do humano no próprio ato de fazer, diluindo relações hierárquicas entre sujeitos e objetos numa realidade de influência, dissolução de margens e interpenetração constante.

Noutros poemas se representa o humano como uma certa tensão na postura que lhe vem da sua verticalidade e uma existência paradoxal que se sente por um destino que se deseja, “invocando”, mas do que não se tem a certeza, pois parece que o centro, a emanação da energia, o sol que traça a linha e projeta o humano em sombras, sempre está fora, como no poema que contem o verso que dá título ao livro:

De pé, demoradamente invocando
o grito do destino, somos a sombra
de uma vara, presa à inclinação do sol,
que define a vertigem que nos derruba
e que nos ergue
” (página 37).

Percorre os poemas uma esperança de que o humano exceda o textual, que tenha a natureza do orgânico e o cósmico. Assim a palavra por momentos consegue representar a fluidez do mundo material em imagens de continuidade e liquidez, num quadro em que começa com um gesto de vontade de fazer e prender, de ter raiz, no poema “Plantei na janela uma hera inclinada para dentro”, poema sem medo ao corte da mutilação que noutros poemas é ameaça constante. Ou no poema “Escavo no peito um declive de seara”, em que a continuidade material entre o terreal e o corpo humano é tal que permite em ambos o labor agrícola.

Os verbos de enunciação, lembrar, esquecer, contar…, são ditos com a esperança de estabelecer uma aliança entre a presença humana e o habitat natural que se situa num momento que por vezes é remoto e por vezes é profetizado. Em vários poemas recolhe-se a ideia de linguagem ritual, sagrada ou mágica que vai atravessando esse relato da humanidade a habitar a terra, como no poema “Temos um quebranto no friso do olhar”. A aprendizagem do ritual na infância permite ter esperança no poema “Os rituais da infância não nos deixam esquecer”, significado reforçado pela repetição constante do adjetivo “verde”, na possibilidade do paraíso, a harmonia, o sentido no passar do tempo. Em outros poemas a enunciação não atinge toda a potência da sua energia e só nos dão testemunho dum movimento de fuga neste mundo dessacralizado da ordem artificial, como no poema que começa com os versos “Nem sempre as janelas oferecem às casas/ todas as possibilidades da luz”.

Outra possibilidade de sentido para o tempo humano se abre com os poemas que variam sobre o movimento, seja o movimento das aves, dos rios ou dos humanos. As aves, os viajantes e os rios fluem para uma mesma mensagem, o de uma rota, um destino, uma memória semelhantes, signos de um alfabeto cifrado que o humano conhece na viagem, como nos poemas “Conta-se que há laranjais que rebentam”, “O viajante ajoelhou-se sobre a terra”, “Seguimos pela noite indiferentes”, em que lemos o verso “destino das aves que trazem a luz das auroras riscada em suas penas”. Ou no poema final, “Naquele mês espalhara-se a insólita notícia”, com a mínima história das mulheres que abandonam as casas e sobem às colinas por terem pressentido a vinda das andorinhas. Ou aqueles poemas que descrevem situam o humano nas margens: a “curva do tempo na concha ansiosa do olhar”, “os homens [que] caminharão na berma das estradas carregando os filhos”, os que “vivem na linha costeira dos continentes” e “enfeitam os pulsos com amuletos de búzios”.

Mas o que fica mesmo inscrito na memória são os versos que falam de um momento de corte, que trouxe o “desvario dos caminhos” e “o exílio de pássaros e aves”, momento catastrófico da cisão entre a ordem natural e a humana que se pressagia nos poemas “Vem do rio um vento interminável, como um cerco” e “Quando as espigas surgiram de repente” ou que se lembra no poema “Conhecemos a obscuridade dos quintais”, impedindo com este cruzamento de perspetivas temporais contar a história humana em linha reta ou em sequência irreversível. É um episódio que parece poder acontecer em qualquer momento, o dum antes e um depois de uma vivência primordial, paradisíaca, essencialmente frágil, que algum saber desfaz, como no poema “No verão todas as manhãs são belas” e a partir do qual o humano já não consegue decifrar o mundo, a pesar de a natureza continuar a ser tão transparente como quando a habitava como paraíso, como no poema que começa com os versos “Envelhecemos com uma vara/ de medir o sol na linha do olhar”: não entendemos os sinais inscritos, ainda que o piar dos pássaros seja tão nítido. Mas a perda do sentido pode ser reversível, como no poema de tom profético “Um dia nos pátios das casas” ou no poema “Aguardamos uma luz de seiva”, um poema de esperança na repetição dum “fiat lux”, duma luz que afaste o humano do caos, da morte e da culpa e dê um sentido único e farto ao cósmico, o orgânico e o humano.

Há o texto, há a autora e a leitora que escreve estas linhas, há a presença da palavra que venha dos longes que vier sempre se faz presente. Há o contexto do tempo com que a poeta fala em palavra transformada pela ação do dizer poético em símbolo que irradia e que é necessário à existência situada no tempo e no espaço. E há o meu olhar que recebe, que compreende desde a sua memória sensitiva, emocional e lírica. Nasci virada a norte, com um dialeto lírico levemente diverso ao da poeta Graça Pires no que ao signo do sol diz respeito. Conheço, estão gravados na minha memória espiritual galega, nos ritos com que cresci, as metáforas que se vivem nos rituais da roda anual do sol, mas também uma tradição lírica, musical e literária, mais recente, que oscila entre o discurso irónico sobre o símbolo solar e a invocação da sua vinda nas alvoradas, tradição, ou vaga contemporânea, que se sente confortável em cenários de luz noturna e diálogos com o luar. Dou como exemplo os cenários em que nos “roubaram o sol” ou em que se prepara “um naufrágio com a ausência cúmplice do sol” dos poemas de Manuel António ou o “Vem-te aurora” da “Alvorada” de Rosália de Castro.

Por outro lado, leio com a minha memória mais pessoal, a da criança que se apaixonou por um romance intitulado Os filhos do sol, que contava a história do faraó herege fundador de uma nova religião, a que fixou na sua arca imaginária pessoal o cenário do sol traçador de caminhos sobre o mar que lia à sombra da torre de Brigântia. Apaixonei-me por esta linha da tradição lírica lusitana que dá sinal da descoberta e a contínua demanda duma medida do universo. Compreendo os achados poéticos como achados sem mais e tenho este livro nas mãos com a emoção de um manuscrito encontrado que não quero datar, que me dá testemunho de quem se situa para além do tempo, na tradição, como dizia Daniel Castelão, para encontrar chaves e interpretar o tempo sequencial, essa dimensão em que o humano se desenvolve sempre em linha reta sem nunca poder voltar.

E, no entanto, este livro tem data, está enraizado neste tempo de dissolução dos territórios e as suas culturas, na duplicidade da metáfora no agrícola e no linguístico de diversas linguagens, da desfeita da mater como matéria que informa todo o pensamento. A palavra “casa” dos versos de Albano Martins que servem de abertura, uma casa que herdamos e que é a própria vida, dão a moldura para pensarmos como poetas a casa, a comunidade e o destino que se decide nesta linha do tempo que passa cortando e que não podemos deixar de transmitir. Há uma postura que se torna emocional e energética, essa vara que é o humano. Na literalidade do livro não leio outra intenção para além da enunciação das palavras, e para mim, como leitora e poeta, é suficiente, pois todo o livro é atravessado por um tom de dizer ritual, como quem quer trazer a emoção e a ação de um tempo em que dizer a palavra é fazer presente a cousa. Uma vara de medir o sol é um exercício de imaginação material, de leitura do mundo e de narração, poesia com movimento de escavação, inscrição, poesia côncava que explora o que se passa no “ângulo interior dos séculos”, da fibra mais íntima do devir humano, poesia que nos faz compreender porquê a escrita nasceu como inscrição, simbolizando os sons aéreos em signos sobre a pedra. Poesia que se sustenta na compreensão de que a natureza é literal e que os poetas leem quando escrevem e os humanos traduzem
quando falam.

Maria Dovigo, poeta

“Palavra Comum”, revista on-line, 01 outubro 2019



terça-feira, 24 de maio de 2022

FUI QUASE TODAS AS MULHERES DE MODIGLIANI

 



Fui quase todas as mulheres de Modigliani. Braga: Poética, 2017


Neste livro, que é um livro de poesia, estamos na senda duma ficção. O que Graça Pires nos oferece são retratos: retratos realizados a partir de retratos, espécie de meta-retratos. Uma voz poética que se expande, que se multiplica nas vozes de quase todas as mulheres de Modigliani, mas que compreende também o sentido duma unidade, ao congregar quase essas vozes numa só voz.

Amedeo Modigliani, pintor italiano, nasce em Livorno (Toscânia), em 1884, e morre em Paris, em 1920. Depois dos primeiros estudos de pintura em Florença e Veneza, aos 22 anos Modigliani transfere-se para França a fim de ter contacto com os grandes movimentos da vanguarda europeia e deles tomar parte. Contam-se inúmeras historietas sobre as suas aventuras de bon vivant, promovidas pelo próprio cenário artístico em que Modigliani se movia, entre Montmartre e Montparnasse, sendo por vezes difícil distinguir a realidade da efabulação. O testemunho mais fiel, como em tantos outros artistas, continua a ser a obra. A delicadeza dos rostos langorosos pintados por Amedeo Modigliani continua a encantar e contém todo o mistério expresso pela poética dum artista que se mantém enigmático.

O seu incomparável estilo concentrou-se em poucos temas: o retrato, o nu feminino e os estudos para esculturas. Mas foi, de facto, o retrato que lhe deu maior notoriedade. Um retrato não é, como sabemos, uma imagem realista de tipo objectivo. Um retrato é sempre uma interpretação da pessoa retratada, projectada pela sensibilidade do artista. A premissa fundamental para a retratística é que o retrato represente a essência interior do sujeito do ponto de vista do artista e não apenas a aparência externa. Ora, o recurso mais evidente quando falamos de representação em Literatura é a Mimésis. A Mimésis é uma figura de retórica, usada pela narrativa e pelo teatro, que se baseia essencialmente no emprego do discurso directo e na imitação do gesto, voz e palavras dum sujeito. Esta imitação verosímil da natureza humana, que constituía, segundo a estética aristotélica e clássica, o fundamento de toda a arte, geralmente abre caminho à autodiegese, isto é, a um sujeito que narra as suas próprias experiências na primeira pessoa.

Como sabemos, a relação entre a literatura e as artes plásticas é hoje um dos campos de estudo das literaturas comparadas, o que tem permitido apontar algumas das principais noções que ocorrem na caracterização da criação artística, desde a conceptualização à imaginação, como extensíveis ao domínio da expressão literária. A presente recensão, porém, não terá por base uma análise deste tipo, pelo que me aproximarei deste campo por instinto e de forma muito espontânea.

Aceitamos então, com base na Mimésis aristotélica, que o intuito da arte não é apenas o de representar a superfície visível dos homens e das coisas, senão o seu âmago, o seu sentido interno, pois neles, e não na aparência ou nos detalhes imediatos, reside o selo da índole humana e a sua realidade autêntica. Por isso o retrato representativo se tem esmerado, ao longo de séculos de história das artes e das ideias, na imitação do carácter e das qualidades morais de diferentes homens e mulheres. Se, nas artes visuais, os olhos são o lugar no qual é vista a informação mais completa, fiável e pertinente sobre o sujeito retratado, que elemento caberá à poesia, que reflecte toda a sua essência unicamente através da palavra? A voz. A voz em toda a sua singularidade intransmissível. Em poesia, o espelho da alma é a voz do sujeito, o que compreende a musicalidade, os campos lexicais, os modos de conexão das imagens, em suma, a espessura vibrante de cada verso é o ADN do sujeito poético.

Dizíamos que Modigliani amava as mulheres. Pois bem, parecia amá-las tanto e de um modo tão passional, que não lhe restava senão essa imperativa necessidade de as pintar para lhes possuir, digamos assim, a alma. Estes quarenta poemas de Graça Pires são, do primeiro ao último, atravessados por uma solidão, uma soturnidade e um erotismo que os liga inconfundivelmente às telas que os inspiraram, daí que o prazer da leitura deste livro, não dependendo exclusivamente disso, se intensifique muito com o recurso às próprias imagens (as quais tive o prazer de receber, coladas a cada poema do manuscrito, pelas mãos da própria autora).


Mas quem foram essas mulheres? Jeanne Hébuterne, a última e a mais importante companheira na vida de Modigliani, modelo na maioria dos seus quadros, é a figura que abre e fecha o livro: «Jeanne», «Jeanne com blusa branca», «Jeanne de ombros nus». Outro nome que se repete é o de Anna – «Anna com vestido preto», «Anna com vestido branco» – provavelmente em referência a Anna Achmatova, a famosa poeta russa que Modigliani também retratara e com quem teria estabelecido uma profunda amizade. Aliás, Achmatova deixaria, após a morte do amigo, um testemunho precioso acerca do verdadeiro Modi. Encontramos ainda uma série de outros nomes dispersos, entre os quais: «Lunia» (numa referência a Lunja Chzechowska, uma mulher polaca, casada, com quem Modigliani viveria uma relação sobretudo espiritual), «Georges van Muyden», «Alice», «Lolotte», «Antonia», «Marie», «Victoria» e mais uma série de figuras mantidas no anonimato.

Embora o livro esteja muito longe de ser exaustivo ou de levar ao extremo a sua fidelidade aos factos – muitas outras mulheres, ausentes neste livro, aparecem nomeadas em estudos sobre o pintor (Gilberte, Maud, Thora, Margherita, Lucienne, Gaby, já para não falar de Beatrice Hastings e Simone Thiroux) – estamos, ainda assim, perante poemas que manifestam uma relação directa com as fontes biográficas que os inspiraram, o que denota algum estudo e um trabalho de pesquisa prévio. Esta procura da verosimilhança, que caracteriza mais a narrativa de ficção do que o texto poético, gera aqui uma importante tensão entre criação e recriação, entre escrita e reescrita. Parece claro que a poeta vê estas mulheres vendo-se a si mesma: elas revelam-se também a partir dum subtil jogo de espelhos. Isto torna-se ainda mais evidente em poemas impessoais, em que o nome da mulher retratada é suprimido. É o caso deste «Menina com bibe», onde a poeta convoca imagens duma infância, dum passado que não será tanto o da menina retratada (precisamente porque ainda é uma menina) senão o seu próprio: «Como esquecer aquele tempo / em que eu brincava com o vento / e rebolava na erva e cantava / com as cigarras e me espantava / com o desenho das nuvens? / Como não lembrar os dias / em que nada quebrava a porcelana / dos lírios de intacta leveza?» (p. 9).

Nesta imersão em aspectos factuais da vida do pintor deparamo-nos ainda, por exemplo, com o poema «Elvira». Elvira, também conhecida por Quique, seria filha de uma prostituta que Modigliani conheceria num café e por quem se sentiria muito atraído. Veja-se como a sua voz, na primeira pessoa, condiz com este perfil de mulher libertina, quando Elvira nos revela: «Não amassei o pão. Não lavei a roupa. / Tenho os pés inchados e a cor do asfalto / trespassada no olhar. / O corpo agitado acima da desordem / tornou-me fugitiva, clandestina, / a versão disfarçada do meu nome» (p. 11). Com Modigliani nasceria uma relação puramente sexual. Segundo algumas fontes, os dois teriam inclusivamente sido vistos a dançar nus no pequeno quintal de Amedeo. Assim, independentemente da figura que os inspire, a nudez e o erotismo assumem-se, pois, como dois marcadores centrais deste livro (de que é exemplo o poema «Nu de costas»).

Outro caso evidente de aproximação biográfica é o poema «A amazona», inspirado num dos poucos quadros encomendados a Modigliani a troco duma remuneração. A mulher que no quadro surge numa pose muito sóbria, claramente aristocrática, teria pedido ao pintor que a retratasse com a sua jaqueta escarlate, facto que não agrada esteticamente a Modigliani, pintando-a de amarelo. Isto terá, supostamente, desencadeado uma discórdia entre ambos e levado a mulher a repudiar o quadro. E, a encerrar o livro, a referência notória ao suicídio de Jeanne Hébuterne, que terá ocorrido um dia após a morte de Modigliani, então com 35 anos, vítima de tuberculose: «Ouço a tua voz. E vejo-te. E desço, / a pique, até à eternidade dos teus olhos» (p. 46). Jeanne, então grávida de nove meses, ter-se-á atirado duma janela de casa dos seus pais logo depois de ter recebido a notícia, deixando órfã uma menina filha de ambos, também ela de nome Jeanne, de apenas dois anos. Embora os pais de Jeanne se opusessem sempre à relação da filha com o boémio Modigliani, dez anos após a morte de ambos aceitam a trasladação do corpo de Jeanne para o Cemitério de Père Lachaise, onde estão sepultados um lado do outro. No seu túmulo pode ler-se: «Compagna devota fino all'estremo sacrifizio».

Também a intertextualidade marca uma presença importante neste livro. São vários os poemas que se deixam atravessar por referências a outros autores: «Gosto de ler Rimbaud / não falarei, não pensarei em nada: / Mas um amor imenso / invadirá a minha alma…», ou mais adiante: «L’amour est a réinventer, on le sait. / Eu também sei» (p. 26). No poema «Lolotte» é citado Herberto Helder, em Os Passos em Volta: «E lembro o poeta: é tão degradante a insolência / dos jovens como a devassidão dos velhos» (p. 27). Ou ainda, Charles Baudelaire, no poema «Nu feminino»: «A citar, com fervor, o teu poeta favorito, / como se ele tivesse escrito para mim: / Há mulheres que inspiram / o desejo de as vencer e possuir, / mas esta dá vontade de morrer / lentamente sob os seus olhos» (p. 37). À excepção de Herberto Helder, a citação de autores que foram contemporâneos a toda aquela ambiência parisiense em que se moveu Modigliani é, mais uma vez, expressiva dessa imersão em aspectos factuais da vida do pintor (aliás, um facto consensual aos inúmeros estudos biográficos é, precisamente, que Baudelaire teria sido o poeta mais lido por Modigliani e o seu favorito).

Claro que, tratando-se de um livro que nasce dessa tensão, a que já aludi, entre criação e recriação, entre escrita e reescrita, coube muitas vezes à poeta intuir, formular um futuro e um passado para cada sujeito poético. Vejamos a «Mulher com gravata preta»: «Houve, na minha infância, / um mar antiquíssimo com barcas / acendidas no meio da noite. / Um vínculo sagrado ou de sangue / me liga à memória das ondas» (p. 10). A poeta acaba, muitas vezes, a personificar uma figura que já em si é personagem, retirando para isso pequenos detalhes, características expressas na tela. A «Cigana com criança» é um caso dessa espécie de “híper-representação” – o quadro apresenta-nos a mesma mulher morena, com um bebé ao colo, que a voz do poema depois confirma e legitima: «Quando embalo o meu filho / antevejo um estranhamento / gravado em sua sina / e um brasido de fogueira em suas veias» (p. 25).

Ora, independentemente da relação que este livro estabelece com a obra dum autor específico como Amedeo Modigliani, o que melhor o define é o elogio da mulher. Da mulher nas suas inúmeras idades, nos seus indecifráveis mistérios, a ponto de podermos regressar ao título e transformá-lo simplesmente em fui quase todas as mulheres. Voz incessante deste encontro profundo entre o género e as palavras, para a poesia portuguesa contemporânea, tem sido Maria Teresa Horta, daí a escolha certeira dos seus versos para epígrafe do livro. Creio que, voluntária ou involuntariamente, a essência deste conjunto de poemas resume-se, em larga medida, à procura dum traço que é o inconsciente feminino (ou, universalmente, o inconsciente humano), aquilo que de mais silencioso define cada um de nós e é comum a todos.


Catarina Nunes de Almeida, poeta

 Apresentação do livro, 27 maio 2017





Um livro por semana

Depois dos recentes «Espaço livre com barcos» e «Uma claridade que cega», este livro novo de Graça Pires concentra os seus 40 poemas no universo do pintor Modigliani. Entre Natureza e Cultura, estes poemas integram um triplo olhar de acordo com o poema de Maria Teresa Horta («Os anjos») na abertura deste livro: «Voamos a lua, / menstruadas. / Os homens gritam: / - são as bruxas. /As mulheres pensam: / - são os anjos. As crianças dizem: / - são as fadas.»

Nestes poemas o ponto de partida são os quadros de Modigliani como pretexto e o ponto de chegada são os poemas de Graça Pires como arte final. O segredo está no facto de o poema articular, organizar e revelar uma osmose feliz entre o quadro do pintor e a memória (sangue pisado da vida) da autora, entre o motivo e a sua explanação, entre a referência e a sua dissertação. A infância (o seu percurso e a sua herança) fica no registo do poema da página 10: «Houve, na minha infância, / um mar antiquíssimo com barcas / acendidas no meio da noite. / Um vínculo sagrado ou de sangue / me liga à memória das ondas.» Mas poderia caber noutro poema: «Como esquecer aquele tempo / em que eu brincava com o vento / e rebolava na erva e cantava / com as cigarras e me espantava / com o desenho das nuvens?». Ou ainda noutro poema na página 24: «Sonhei toda a noite com barcos. / Apetece-me deixar as roupas / tombadas na cadeira / e ir procurar os verões da infância / com navegações alvoroçadas.»

Como convite à leitura cito um poema que assinala a vida como viagem, sua metáfora e seu reflexo: «Sou uma mulher / que ninguém chama pelo nome. / Hão-de nomear-me filha / do vento e dos caminhos. / Hão-de ver asas em meus dedos / quando danço. / Mas a nenhum lugar pertenço / e intrusa me sinto do futuro / adivinhado em minhas mãos. / Quando embalo o meu filho / antevejo um estranhamento / gravado em sua sina / e um brasido de fogueira em suas veias. / Acoitarei na água da retina / a linha inacabada dos seus passos.»

Nota final – a edição do livro integra 40 reproduções de quadros de Modigliani.

José do Carmo Francisco, poeta

“Gazeta das Caldas”, 6 abril 2017





Caríssima Amiga:

 Este seu novo livro, polifónico, por, nele, os poemas virem dedicados a "quase todas as mulheres de Modigliani", é, no fundo, parece-me, um canto ordenado por, para e com a autora, assumida, enquanto poeta, como entidade multiplicada por cada uma das ditas mulheres e por cada um dos poemas. Alguém que toma a voz da última das referidas mulheres - a "Jeanne de ombros nus" - e vai em busca das "palavras certeiras" (as da "Victoria”) ou (como diria "Antónia"), das "palavras únicas". Só com elas poderá "ir com os viajantes ou com as aves" ao encontro da "ausência" e da "infância" (que, na boca da "Antonia", é "aflita" e se confunde com o mar e com as " barcas /acendidas no meio da noite”). Na busca, também, dos "sonhos / brancos de menina", condenada a um regaço onde as mãos “estão trémulas e vazias”.

É, pois, de regressos (toda a poesia é um regresso) e do vazio -mas também de celebração - que falam os seus poemas.

Muito obrigado pela oferta. E um afectuoso abraço do

 Albano Martins, poeta

E-mail junho 2017






Recebi dias atrás “Fui quase todas as mulheres de Modigliani”. Modigliani é um dos meus artistas favoritos, e seus retratos são de uma beleza inigualável; ele e Picasso, com recursos estilísticos diferentes, deixaram obras sem igual retratando as mulheres com uma originalidade inalcançável. Com mais sutileza e menos ousadia do que Picasso, Modigliani traduz de forma sensível as múltiplas nuances do universo interior feminino.

Sua poesia continua sendo a maior que pude conhecer. Esse livro, como sempre acontece a cada novo volume que publica, me faz perguntar se haverá um limite para a sua capacidade de verter beleza em palavras.  Se pretendesse reproduzir aqui tudo que me encantou nessa obra, repetiria praticamente todos os seus versos, seja pela musicalidade, seja pela beleza das imagens criadas, pela escolha precisa e surpreendente de cada palavra empregada.  E sinto em suas entrelinhas uma maturidade existencial de raro encanto. Jorge Luis Borges em "Invocação a Joyce" diz "Eu sou todos aqueles que o teu obstinado rigor resgatou. Sou os que não conheces e os que salvas"; posso dizer a você que a leitura desse seu último livro me deixou a certeza de que a vida ainda vale a pena.

É um privilégio inigualável ter a sua amizade.

Abraços.

José d’Ângelo Rodrigues, poeta

e-mail de 28 de junho de 2017






Já li "Fui quase todas as mulheres de Modigliani" há algumas semanas. E, entretanto, reli "Uma claridade que cega" ontem.

Obrigado pela beleza que acrescenta ao mundo. Para mim, em tempos onde nos vemos rodeados por escombros e tanta cacofonia, poder ler poemas como os seus é ter a certeza de que "a verdade chega-nos apenas / através do silêncio dos que sonharam". A poeta Graça é desses que sonham.

No livro "Fui quase todas as mulheres de Modigliani", em particular, as imagens que evoca, a fragilidade latente a cada poema e a linguagem a que recorre são oxigénio para mim, neste tempo da técnica que sufoca cada vez mais, em que tudo tem de ser forte, sofisticado e perfeito. Não tem! A Graça evoca esse tempo frágil e romântico, mas também selvagem e feminino, o perfume das flores, os raios da manhã, as palavras dos amantes. E o sal do oceano, a água. É redentor lê-la, Graça. E que felicidade enorme, para mim, estabelecer esta troca que temos feito.

 

Resta-nos o mar, a aurora e os passos que damos, peregrinos que somos. É bom caminharmos juntos.

 

Um beijinho (e obrigado!),

 

Samuel Pimenta, poeta

E-mail, 7 julho 2017.







Amigas e amigos,

Na edição n. 416, em fevereiro de 2019, esta página recebeu o título “Versos sobre tela”. Ali juntei poemas de quatro autores escritos com inspiração em pinturas de artistas famosos.

Nesta edição, revisito o mesmo procedimento. Mas agora a abordagem é diferente: os poemas são de uma só autora e os quadros inspiradores também de um só pintor. Portanto, o que vemos no lado direito desta página resulta de uma parceria entre a poeta portuguesa Graça Pires e o pintor italiano Amedeo Modigliani (1884-1920).

Graça Pires teve a luminosa ideia de escrever um livro inteiro com poemas baseados em quadros do genial Modigliani. Entre as dezenas, quiçá centenas, de mulheres retratadas pelo artista, a poeta selecionou 40 e dedicou um poema a cada uma delas. Esses trabalhos estão reunidos em seu livro Fui quase todas as mulheres de Modigliani, publicado em 2017. Você pode ler/ver ao lado cinco duplas desses retratos-poemas.

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Esta edição do boletim foi organizada com a colaboração da poeta carioca Solange Firmino. Ela me recomendou a leitura dos poemas "modigliânicos" de Graça Pires, que estão disponíveis no site da autora lusa, Ortografia do Olhar. Daí me veio a ideia deste boletim.

Solange também me ajudou na seleção dos poemas e, amiga da autora, forneceu-me a foto dela que você vê no alto desta coluna.

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Poeta de impressionante fertilidade, Graça Pires (Figueira da Foz, Portugal, 1946) estreou em 1990 com o volume Poemas e tem dezenas de títulos publicados. Coleciona também um bom punhado de prêmios literários. Veja aqui a lista completa de obras e prêmios da autora. Graça Pires é licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

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Passemos aos poemas. O primeiro texto pinçado em Fui quase todas as mulheres de Modigliani foi “Jovem ruiva com vestido de noite”, criado a partir do quadro homônimo pintado em 1918. Como em todos os textos, Graça Pires exibe refinada criatividade para inventar as histórias de cada uma das mulheres retratadas.

Neste poema, a jovem ruiva é quem fala em primeira pessoa. “Um incêndio atraiu / os meus cabelos em desalinho”, diz. O incêndio, naturalmente, associa-se à cor dos cabelos dela, que parece estar vivendo uma tórrida paixão, com experiências “na margem mais proibida da noite” e também durante a manhã.

“Menina de azul”, texto homônimo de um quadro de 1918, é o próximo poema. Impressionada com o rosto da garota — que é de fato o ponto fulcral da cena —, a poeta considera-o como algo “asfixiado / na moldura do tempo”. Uma infância eterna enquanto durar esse retrato saído dos pincéis de Modigliani.

O poema seguinte, “Mulher com chapéu”, baseia-se no quadro “Retrato de mulher”, de 1917-19. Também neste texto a retratada se exprime em primeira pessoa. Sonhadora, ela explica por que usa a frondosa cobertura para sua cabeça. “Comecei a usar um chapéu de abas / largas para iludir o brilho desmedido / que desliza sobre as coisas”. Mais do que sonhadora, é também dada a arroubos poéticos: “Por isso, apenas posso olhar a lua cheia / como fazem os poetas e as bruxas”.

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O próximo retrato, “Mulher com gravata preta”, foi traçado em palavras por Graça Pires a partir da imagem de mesmo nome, posta em tela há pouco mais de 100 anos, em 1917. Possuída pela ideia da imperenidade das coisas, a dama de gravata pensa em escrever um poema sobre a areia.

Assim como a lenda contada sobre o padre Anchieta, essa mulher entregaria seus dizeres poéticos aos azares da chuva ou das línguas do mar. E é sobre o mar que ela divaga, lembrando a infância, com ondas e veleiros. Mas, diferentemente da mulher com chapéu, ela não sabe ao certo por que começou a usar uma gravata preta.

“Comecei a usar”, diz ela, de forma acertada. Não se pense que amanhã ela poderia aparecer sem gravata, ou com um desses adereços de outra cor. Não: assim como a menina de azul, que será para sempre menina e com vestidinho azul, esta mulher está condenada a usar a mesmíssima gravata preta até o fim dos tempos. Afinal, isto não é cinema, mas fotografia.

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Agora, o último poema, “Jeanne com blusa branca”. Há muito que dizer sobre essa mulher. Trata-se de Jeanne Hébuterne (1898-1920), jovem pintora francesa por quem o coração de Modigliani batia fora do compasso. Esse retrato é apenas um dos muitos que ele pintou da musa, com quem chegou a ter uma filha, Jeanne Modigliani (1918-1984).

Em 1920, o casal teve um fim trágico. Modigliani morreu de tuberculose em 24 de janeiro. No dia seguinte, Jeanne, grávida de nove meses do segundo filho, atirou-se do quinto andar de um prédio. O pintor tinha 35, e ela 21 anos. A filha Jeanne foi criada pelas irmãs de Modigliani.

Mas retornemos ao poema “Jeanne com blusa branca”, baseado num quadro de 1918. Esvoaçante, a personagem criada por Graça Pires se deixa inebriar com a luz: “Abri de par em par as portadas das janelas / para deixar passar a luz deste alvorar ao sul”. Além disso, sente na pele o “veludo dos pêssegos” como prenúncio de “manhãs claras”. Mas não se enganem: nem tudo são idílios. Ela também confessa que sente flutuar no próprio olhar “o pólen da tristeza”.

Cem anos depois das telas de Modigliani, a poeta Graça Pires presenteia, com esses deliciosos e autênticos retratos, a todos os leitores capazes de se emocionar com a língua portuguesa.

 

Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado, poeta

Poesia.net

Salvador, 8 julho 2020






Poesia em vários tons

 

A poesia de Graça Pires começou por arrastar consigo um ónus de descaso crítico quase insuportável, tendo em apreço a sua inquestionável qualidade já nos primeiros tempos. E, todavia, malgrado o fastio comentarista, foi notável a coragem da autora ao teimar, teimar sempre, confiando no reconhecimento completo que um dia acabaria por chegar. Será que ainda não chegou? Em boa verdade, Graça Pires, com os seus livros, já arrecadou um importante conjunto de prémios: Prémio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores, Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama, Prémio Literário Maria Amália Vaz de Carvalho, Prémio Nacional de Poesia Poeta Ruy Belo, entre outros. Falta-lhe talvez o eco altissonante de parangonas nos jornais, entrevistas em canais televisivos, um editor forte e interventivo junto dos media para que o seu talento ganhe a projecção que merece.

Em 2012 a poeta abalança-se a uma primeira recolha de poemas (1990-2011) e a coesão do seu discurso faz ressaltar a solidez do verbo efabulado entre a quimera e a luz predadora, sem complacências interditando o sonho àquele que passou a dormir pelas praias.

 

Era um buscador de pérolas.

Atravessou a mais densa escuridão

para abrigar na expressão do rosto

uma luz absoluta. Ficou cego.

Agora há uma ferocidade

suspensa nos seus olhos.

E dorme pelas praias

onde só as mulheres

vestidas de negro

escutam o grito das areias.

 

A mensagem certeira de GP vinda de um desvendamento de si fortemente mesclado de frémito e ousadia remete os seus afluentes de diferenciação para um mesmo caudal de emoções. E é ao disciplinar esse mesmo caudal até à síntese que dele retém as extensões existenciais mais vibrantes e as ressonâncias mais afáveis, que Graça Pires revela quão engenhosa a sua capacidade para transformar em matéria lírica pulsões primordiais em cujos significados tantos se revêem.

GP pode ser hoje considerada um dos nosso poetas do desejo, da paixão, da experiência amorosa levedada em linguagem assistida por um léxico de fina ourivesaria, que exclui a violência e exalta o prazer, expulsando a grosseria do lugar onde só pode estar “a lembrança dos dias festivos”. Sim, Poemas escolhidos (1990-2011) ajuda e bem a estabelecer o perfil da mulher de letras na relação com a maior parte da sua obra.

Do novo livro de Graça Pires, Fui quase todas as mulheres de Modigliani, (ed. Poética) lançado recentemente na Livraria Ferin, em Lisboa, com apresentação brilhante da jovem Catarina Nunes de Almeida, talvez não seja errado, tendo em conta o percurso em questão, falar-se de divertissement. GP não põe de lado nenhuma das ferramentas com que habitualmente opera, mas a ideia que subjaz ao livro tende a parecer uma homenagem a Modigliani também convertível em louvor às mulheres que o inspiraram e cujos retratos – quarenta – o livro incorpora. Seja como for GP estabelece um surpreendente diálogo com quase todas as mulheres (nuas e vestidas) que para o artista posaram:

 

Deitei-me de bruços revelando,

do corpo, a curva mais perfeita.

Estou quieta. Submissa.

Como quem aguarda o itinerário adiado

das mãos e o lento queixume dos desejos.

Retenho entre as pernas

os despojos de todos os prodígios.

Fico assim nua quando, nas horas

diurnas, provo do teu vinho

(Graça Pires dando a palavra à mulher Nu de costas, p. 20)

 

Júlio Conrado, escritor

“As artes entre as Letras”, julho 2017







GRAÇA PIRES, FUI QUASE TODAS AS MULHERES DE MODIGLIANI. Braga, Poética Edições, 2017, 56 pp.

 

Na literatura portuguesa atual, existem escassos volumes de poesia que abracem o tema da ecfrásis, refletindo de forma criativa sobre uma determinada obra de arte visual. Mais raros ainda são os livros consagrados em exclusivo ao legado de um artista específico, percorrendo as diversas fases da sua criação. Fui quase todas as mulheres de Modigliani (2017), de Graça Pires, reúne ambas as caraterísticas, através de um conjunto de quarenta composições centradas nos retratos femininos pintados pelo célebre mestre.

Amedeo Clemente Modigliani (1884-1920) foi uma figura extraordinária, não surpreendendo que tenha suscitado o interesse de escritores, cineastas e artistas plásticos. Conhecido entre os seus pares como Modi ou l’Italiano, emigrou para a capital francesa, em 1906, então o centro da vanguarda. Aí desenvolveu a sua obra, constituída sobretudo por retratos de mulheres, vestidas ou nuas, de rosto oval, pescoço longo e olhos amendoados. Modigliani cedo cultivou uma imagem de boémio, amante de jovens belas, do absinto e das drogas. Após inúmeros excessos, com apenas trinta e cinco anos, sucumbe à meningite tuberculosa. Em vida, a obra de Modigliani não granjeou uma aceitação significativa, pelo que o artista se viu forçado a vender as suas telas a preços irrisórios, para sobreviver e saldar dívidas. Contudo, depois da morte, o seu legado suscita o apreço dos especialistas, e os quadros atingem, na atualidade, valores astronómicos.

Os poemas incluídos em Fui quase todas as mulheres de Modigliani primam pela capacidade de dialogarem com as obras, reinterpretando-as e expondo-as de acordo com a sensibilidade da escritora. Para tanto, cada texto centra-se apenas num quadro e assume, como título, o nome dessa tela. Neste contexto, o livro em análise constitui uma “galeria de palavras”, onde as telas se recriam através dos versos, ganhando uma nova paleta de cores e significados.

Pires escreve exclusivamente sobre retratos de mulheres, partindo de informações biográficas das várias figuras que posaram para o artista, recolhidas através de uma pesquisa aturada. Quando os dados disponíveis acerca de certas pessoas são escassos ou fragmentários, a autora dá largas à licença poética para preencher as lacunas. Em qualquer dos casos, imprime sempre uma perspetiva feminina aos poemas, onde pontificam o erotismo, o amor, a solidão e a angústia. Nesta breve crítica ao poemário, centrar-me-ei apenas nas duas mulheres que mais indelevelmente marcaram Modigliani, por ordem cronológica de chegada à sua vida: a escritora russa Anna Akhmatova (1889-1966) e a pintora Jeanne Hébuterne (1898-1920), o seu amor mais belo e trágico.

Anna Akhmatova, nome literário de Anna Andreevna Gorenko, conheceu Modigliani em 1910, quando viajou para Paris, em lua-de-mel, na companhia do marido, Nikolai Gumilev. A jovem de vinte e um anos corresponderia ao ideal de beleza do artista: alta, de olhos verdes e cabelo negro. Segundo os relatos da época, Akhmatova impressionaria Montparnasse, ao ponto de os transeuntes pararem para admirar a sua beleza. A poeta encontrava-se mesmerizada pelo artista, comparando-o ao semideus grego Antínoo; por seu turno, Modigliani pintava-a com joias clássicas, como se fora uma divindade egípcia. Naquele verão chuvoso, encontravam-se com frequência, ora para visitarem o Museu do Louvre, ora para declamarem poemas, sentados num banco do Jardin du Luxembourg, sob o guarda-chuva de Modigliani. É lícito pensar que esta paixão, tão breve quanto fulgente, tenha moldado a arte do pintor, que elaborou pelo menos dezasseis retratos da amante.

Pires evoca duas destas obras nos poemas “Anna com vestido negro” e “Anna com vestido branco”, posicionando a musa ora no início, ora no final do dia. O primeiro texto parece-me ser o mais conseguido, pela capacidade de captar o pensamento da retratada:

 

Pouso devagar as minhas mãos

habituadas à luxúria dos gestos

e sento-me, imperturbável,

no meu sofá preferido.

 

Possuo nas costas de cada mão

um risco de contágio de sinais noturnos

oxidados no reflexo de vultos antigos

que me açoitam o olhar.

 

Acolho o silêncio até à nesga de luz

que ilumina a esquiva linha de uma sombra

suspensa na pureza da noite.

 

Se me perguntarem o que faço aqui,

nesta serenidade mordaz, eu direi:

é um ritual diário, este, de me vestir

de negro para ver findar o dia.

 

Até agora nenhum crepúsculo

me deixou indiferente.

Mas a noite, essa, já começa

a pesar-me sobre o peito.

(Pires 2017: 14)

 

A poeta recorre à primeira pessoa, uma voz íntima e confessional, que aproxima o leitor do drama sentido pela jovem, naquele instante. Akhmatova posa no sofá, para um retrato do amado, e recorda os momentos de sensualidade vividos com este, sugeridos pela expressão “mãos / habituadas à luxúria dos gestos” (Pires 2017: 14). Pires recria a atmosfera do estúdio, evocando o silêncio e o final do dia, a “sombra / suspensa na pureza da noite” (Pires 2017: 14). Contudo, a serenidade da musa é aparente, pois sabe que o crepúsculo, que tanto aprecia, é apenas um instante antes da noite, tal como o seu affaire com o pintor. Os versos finais indiciam a tristeza da previsível separação, aquando do seu regresso à Rússia: “a noite, essa, já começa / a pesar-me sobre o peito” (Pires 2017 14).

Na Primavera de 1917, Modigliani travou conhecimento com Jeanne Hébuterne, uma bela estudante de arte, de apenas dezanove anos, que o mesmerizou. O artista termina o seu relacionamento com a poeta inglesa Beatrice Hastings, ao passo que a jovem é afastada pela família conservadora, que não via com agrado a ligação ao boémio. Em breve, vivem num estúdio da Rue de La Grande Chaumière, viajam, trabalham e convivem com alguns dos mais célebres pintores da época. Tratou-se de uma fase particularmente fértil na produção artística de Modigliani, que recorreu à companheira como musa para as telas. No ano seguinte, Hébuterne dá à luz Jeanne (1918-1984) e, em breve, engravida de novo, para gáudio de ambos. Contudo, Modigliani é diagnosticado com meningite tuberculosa, a doença que o mataria. Hébuterne não resiste ao desgosto e, embora grávida de oito meses, suicida-se, precipitando-se de uma janela do quinto andar. O seu epitáfio, "Companheira devota até ao sacrifício extremo", resume a paixão que sentira pelo mestre italiano.

Pires consagra três poemas da obra em estudo a Jeanne, um número superior àqueles que dedica a qualquer outra mulher. Tal reforça a importância desta paixão na vida e obra de Modigliani. A autora abre a coletânea com “Jeanne” (Pires 2017: 7); apresenta, perto do final, “Jeanne com blusa branca” (Pires 2017: 40); encerra com o pungente “Jeanne de ombros nus” (Pires 2017: 3). É precisamente este último texto que transcrevo e analiso:

 

Acordei com coragem de morrer,

como se a tua ausência cortasse

os meus pulsos, até que o sangue

vertesse todo sobre mim.

Sitiada por um silêncio onde me perco

sem recuo, entro, destemida, na luz

oblíqua em que antevi a tua morte.

 

Vou até à varanda para não sufocar de dor.

E ouço claramente a tua voz,

como se a proximidade de um temporal

me enlouquecesse com o ruído do mar.

 

Ouço a tua voz. E vejo-te. E desço,

a pique, até à eternidade dos teus olhos.

(Pires 2017: 46)

 

O poema é marcado pelo signo da morte ­­— quer a de Modigliani, quer a de Jeanne, que se prepara para cometer suicídio, por não resistir ao desgosto causado pela perda do companheiro: “como se a tua ausência cortasse / os meus pulsos” (Pires 2017: 46). O solilóquio confessional é trespassado pelo desespero e pela alucinação: “E ouço claramente a tua voz” (Pires 2017: 46). O final do poema coincide com a verdade biográfica: tal como a Jeanne real, a figura fictícia precipita-se para a morte, procurando o reencontro com o amado perdido: “E desço, / a pique, até à eternidade dos teus olhos” (Pires 2017: 46). Trata-se de um texto típico do livro em análise, pois mistura o factual com a interpretação subjetiva que a poeta tece da realidade. Pires concentra-se num momento singular e apropria-o em versos longos, que geram um ritmo sombrio e melancólico.

Outras mulheres povoam os retratos do mestre italiano e, por inerência, os poemas de Pires. Destaco “Elvira” (Pires 2017: 11), ou Quique, filha de uma prostituta, que o artista tomou por amante e modelo; “Alice” (Pires 2017: 19), pré-adolescente de ar plácido, que a autora reinterpreta nestes versos temperados de sensualidade “Sabem: os agrados das meninas / são suculentos como os medronhos bravos / tão secretos que só as mães os adivinham“ (Pires 2017: 19); “Lunia” (Pires 2017: 24), ou Lunja Czechowska, uma amiga polaca, que viveu com Modigliani enquanto o marido servia na Primeira Guerra Mundial; “Dedie” (Pires 2017: 33), de apelido Hayden, cujo mirar magnético suscita estes versos: “Dentro dos meus olhos, um mar sem limite / (…) / Tão breve a luz na idade do rosto” (Pires 2017: 33).

Em suma, mais do que tecer uma mera descrição das telas de l’Italiano, Pires reinterpreta-os recorrendo à sensibilidade poética e à capacidade de captar pormenores como os olhos, a pose, o vestuário das figuras que Modigliani imortalizou. Neste espírito, enverga a pele das retratadas, imaginando o seu sentir e pensar. Atribui uma voz singular, feminina, a essas mulheres que, no fundo, são também uma parte da autora, tal como o título do livro indicia. Para tanto, socorre-se de informações biográficas, que complementa com invulgar imaginação, certa de que a liberdade ficcional se sobrepõe a qualquer rigor histórico. Com mais de uma dúzia de livros publicados, Pires atinge, em Fui quase todas as mulheres de Modigliani, o domínio da lírica e a capacidade de efabulação inerentes àqueles poetas que o vento não levará.

 

João de Mancelos

(UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR)

 

Nota biográfica: João de Mancelos é doutorado em Literatura Norte-americana, detém um pós-doutoramento em Estudos Literários e uma agregação em Estudos Culturais. Lecionou na Universidade Católica Portuguesa (Viseu) e na Universidade de Aveiro. Presentemente, é professor na Universidade da Beira Interior. É autor de vários livros de poesia, conto e ensaio.