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domingo, 22 de maio de 2022

UMA CLARIDADE QUE CEGA

 


Uma claridade que cega. Macedo de Cavaleiros: Poética, 2015

São Paulo: Intermeios, 2015

 

  SILÊNCIO E MARGINALIDADE NA POESIA 

  DE GRAÇA  PIRES

 

 

O novo livro de Graça Pires, Uma claridade que cega, afirma-se fundamentalmente como uma procura: “eu procuro de novo/ o princípio de tudo,” (p.10); “na marginalidade do sossego/ reacendo o lume…” (p.12); “escuto até à exaustão/ os rumores de um tempo mais remoto” (p.14). Vemos, portanto, que são específicas desta aventura poética três instâncias fundamentais: o sossego – muitas vezes aparecendo sob outras formas, como por exemplo a do silêncio -; a marginalidade, entendida esta não como uma vivência ostensivamente burguesa e urbana, mas tão-só como a rejeição de uma norma que impede a busca dessa claridade absoluta, fundamento do Ser e da escuta poética: “sou da estirpe dos aventureiros, dos caminhantes, dos fugitivos.” (p.30); “fujo na crina de um potro livre, / sem jugo, em veloz cavalgada.” (p.40) e, finalmente, o alvo desta mesma procura metamorfoseado este na imagem da “fonte mais remota, / onde a água tem o sabor/ do leite materno” (p.60). Esta associação sossego/silêncio, procura pela margem e propensão para a fonte originária ou, como neste livro se apresenta, para essa claridade que cega, tem sido uma constante na poética de Graça Pires: “nómada na noite, entro no coração do texto, / para dizer o exílio nos olhos de Ulisses.” (in Uma certa forma de errância, 2003, p.43); “Um saber de dialectos nocturnos, / permite-me riscar nos pulsos um silêncio de fuga.” (op. cit. p.51); “seguimos pela noite indiferentes/ a todos os ruídos que rebentam/ o rigor do silêncio.” (in Uma vara de medir o sol, 2012, p.69).

Vemos também que esta procura é não só uma inquirição em torno do princípio originário, dessa claridade primeira, como também um trabalho em torno da palavra para que dela seja removida toda a ganga do ruído e da inautenticidade:

 

NOME: -

Interpelamos as palavras à procura de um nome para a casa

onde moramos. Um nome que se ajuste inteiro à memória

do olhar e do silêncio.

Um nome tão secreto como as cantigas

que as mães cantam baixinho enquanto embalam

nos braços os filhos e a noite para não perderem

o poder de repartir a sede.”

(in Caderno de Significados, 2013, p.21)

 

E a este almejar de uma claridade que cega, ou seja, desta beleza terrível, não é alheia a poesia de Rilke logo anunciada no quarto poema deste livro. Vejamos o que diz o poeta alemão:

“(…). Pois o belo apenas é

o começo do terrível, que só a custo o podemos suportar,

e se tanto o admiramos é porque ele, impassível, desdenha

destruir-nos. Todo o Anjo é terrível.”

 

(“A Primeira Elegia” in As Elegias de Duíno, Assírio & Alvim, 2002, p.39)

 

“Todo o Anjo é terrível. No entanto, ai de mim!

Pelo canto vos invoco, aves da alma quase mortais,

por saber o que sois. Para onde foram os dias de Tobias,

quando um de entre os mais luminosos apareceu, no simples limiar da entrada

(…)

Porém nós, ao sentir, desvanecemo-nos. Ai de nós,

ao respirar nos extinguimos; de brasido em brasido

vamos perdendo o nosso aroma. (…)”

(“A Segunda Elegia” in As Elegias de Duíno, Assírio & Alvim, 2002, p.47)

Esta antinomia Anjo/terribilidade, claridade/fulminação do olhar na autora, alarga-a Graça Pires à presença de outros autores nomeadamente de Virgínia Woolf de quem a poeta diz, em dois versos que validam esta minha linha de leitura: “As múltiplas faces da vida e da morte/ em diálogo secreto.” (In Uma claridade que cega, 2015, p 35). Há ainda uma outra convergência com a romancista inglesa: em Mrs Dalloway , Clarissa Dalloway interroga-se frequentemente sobre o seu passado, o seu presente e o futuro, ora estas dimensões da temporalidade trespassam todo o livro de Graça Pires, aliás, este jogar no tempo é frequente em Virgínia Woolf, veja-se, por exemplo, outro romance seu: Orlando , que, baseado na vida de Vita Sackville-West, narra a história de um jovem que certo dia acorda mulher e dotado de imortalidade, Orlando acompanha mais de três séculos da vida dessa personagem. Vemos, por conseguinte, que Clarissa Dalloway (o livro narra apenas um dia da sua vida) vive entre a felicidade e a ideia de suicídio, Orlando entre a imortalidade e o efêmero rotineiro, ou seja, ambos desenham a sua errância entre um polo positivo e outro negativo, tal como este livro de Graça Pires entre a claridade e a cegueira. Não é despiciendo enfatizar também aqui a riqueza imagística das autoras: a de Virgínia Woolf deu azo a riquíssimas obras de arte, como por exemplo o romance As Horas de Michael Cunningham, que, por sua vez originou o filme homónimo (2002) de Stephen Daldry com as soberbas interpretações de Maryl Streep, Nicole Kidman e Julianne Moore e ainda a película Orlando (1992) de Sally Potter com o andrógino desempenho de Tilda Swinton. Já as imagens da poesia de Graça Pires, com a sua sobrevalorização do telúrico e/ou do aquífero, bem como o chamar à liça do afetivo e do emocional, entroncando, portanto, em Pascoaes, Torga, Sophia,  Nuno Júdice e algum Ruy Belo, mas  recusando as escritas mais debruçadas sobre as vivências citadinas, corre o risco de – com as suas águas, as suas gaivotas, as suas estevas, a sua urze, etc. - , numa leitura apressada, serem remetidas para um filo passadista, todavia, uma leitura cuidada desta escrita verificará que o que existe é todo um paradigma de referentes ao serviço de intentos outros – exemplo: falar-se do envelhecimento em Outono: Lugar Frágil  (1994), dessa Odisseia que é o estar-aqui em Uma certa forma de errância ( 2003), da falsa oposição que existe entre o trabalho braçal e doméstico relativamente ao aperfeiçoamento moral e religioso em não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos (2007), etc. Um terceiro, e último, diálogo que Graça Pires mantém é com Pablo Neruda: “Hoje, que não escuto o mar/ fujo na crina de um potro livre, / sem jugo, em veloz cavalgada. Tenho nos olhos um incêndio tangível (…) / Doeu-me a voz quando bradei, / sem fôlego, o verso de neruda:/quero inventar o mar de cada dia.”, a abordagem da realidade material, do sócio-económico, na poesia de Graça Pires é sempre feita de forma subtil, mas, paradoxalmente, forte: “Há por todo o lado palcos improvisados/ onde, em bocas distorcidas, se anunciam/ perigos e presságios, ameaças e avisos. / Este é um país de sombras tão baldias que magoa. “(p28): “Cravo as unhas na carne da indiferença. / Escrevo sangue/ com o lápis gasto pela culpa acorrentada/ à cegueira que desfoca os olhares/ (…) / Leio dor. Dolorosamente. / Em lugares desabrigados, / em portas franqueadas aos rasgões/ da vida rondada pela morte.” (p 33), não estamos – nestes versos – longe de tantos poemas de Nazim Hikmet ou do Canto Geral de Neruda, onde podemos ler: “Mas tu não sofreste? Não, eu não sofri. Eu sofro/ apenas os sofrimentos do meu povo. Eu vivo/ dentro, no interior da minha pátria, célula/ do seu infinito e abrasado sangue. “(In Canto Geral, Campo das Letras, 1998, p 480, tradução de Albano Martins).

 O presente livro de Graça Pires ousa ainda três áreas estreitamente conectadas com tudo aquilo de que tenho vindo a falar: o plano do existencial e do dia-a-dia, o da inquirição da palavra e da poesia e, finalmente, um plano metafísico onde a esperança e o sonho têm um papel fundamental. Acerca desse primeiro plano leia-se o poema da página 39 da presente obra:

 

Só folheio os jornais de vez em quando.

Quase tudo o que se escreve

são golpes confusos

que abrem nas entranhas a impressão

de um mundo por entender.

A verdade chega-nos apenas

através do silêncio dos que sonharam

um tempo sem estas ruínas

que descarnam e sepultam

a mais valiosa esperança.

 

Este poema ilustra na perfeição o que temos vindo a dizer: primeiro, estabelece a distinção entre aparências (golpes confusos, mundo por entender) e a busca da verdade, isto é, da claridade que cega ; segundo, reafirma a importância do silêncio e do sonho para bem entender e agir, convém, no entanto, acrescentar que o sonho nunca é, na poesia de Graça Pires, sinónimo de devaneio ou alienação, ele surge sempre ou como capacidade da memória ao serviço da rememoração e do conhecer ou – como aqui – como rasgo da imaginação que alimenta a praxis ; terceiro, a recusa da poeta em integrar o coro das ruínas , em integrar o número daqueles que descarnam a esperança e a ousadia, daí o já referido colocar-se à margem da voracidade da turbamulta, daí também o termo marginalidade que usei no título deste texto ; quarto e último, a distinção acenada no sexto verso: a Graça Pires não interessam as certezas  tão operativas e eficazes nas ciências e tão úteis nos registos de tipo jornalístico, à autora importa a verdade , dito de outro modo: os seus olhares antropológico e histórico aparecem sempre alicerçados numa visão ética, assim como o sociológico se curva ante o metafísico, numa frontal recusa do injusto e do mal, entendido este no seu sentido radical: “Este mal é radical, a partir do momento em que corrompe o fundamento de todas as máximas (morais).” (Kant, In A Religião dentro dos Limites da Simples Razão, Ak. Ausg., VI). Por tudo isto, competirá à Palavra, ou melhor, à Poesia, conduzir-nos neste caminho iluminante, competirá a ela assumir-se plenamente como Uma claridade que cega. 

 

O verbo: clareira em cama de fenos

ou ilha oculta de ocultos silêncios.

Como se o nervo do vento

fustigasse a voz dos poetas

esmagando a rigidez dos sons.

Apta a declinar as regras do jogo

retenho, nas arestas da página,

o som do lápis, como um pião

rodopiando traços inseguros.

A película de imagens no interior do texto,

levemente aberto ao segredo das mãos

deixa que me habite um desvario

que faça regressar um verso invisível.

    (In Uma claridade que cega, p 43)

 Victor Oliveira Mateus, poeta

 

 Na apresentação do livro. Lisboa, 28 de novembro de 2015.






     Para uma leitura de 
    UMA CLARIDADE QUE CEGA  - Graça Pires

 

Em Uma claridade que cega somos levados, logo a partir do título, ao encontro de uma dicotomia de dois polos opostos, luz/sombra, um dos binómios marcantes na poética de Graça Pires, onde abundam outros como: luz/treva, nuvens/abismos, noite/claridade, trevas/luar, vida/morte.

Parece haver da parte da autora uma intenção prévia de justa aproximação do sentir ao dizer que leva o sujeito lírico a declarar o desejo de…cito - descobrir num vinco de texto / a caligrafia ajustada ao barro - isto é, a poeta tem para si como necessidade fazer coincidir a vida e a arte, dando, deste modo, sentido às palavras de Octavio Paz, quando este afirma que os poetas não têm biografia. Sua biografia é sua obra. Com efeito, a escrita parece ser para Graça Pires esta - puríssima luz, só visível em gramáticas de espanto - E o que é a Poesia se não uma «gramática de espanto» onde a luz se «insinua no lado mais misterioso» da vida?

Comecemos então pelo título, pelo conceito de Claridade, sinónimo de luminosidade/ luz que se opõe ao sentido mais vulgar dado à palavra “cegueira”. Mas esta cegueira que aqui nos surge é um reflexo produzido pela neve, logo uma cegueira que se afasta da obscuridade, uma espécie de cegueira branca, uma luz que cega de tão clara e transparente. Este raciocínio leva-nos a Ensaio Sobre a Cegueira de José Saramago, onde no “não ver” está implícita uma ideia de opção, como uma escolha, abstendo-se os “cegos” de se questionarem sobre o Mundo e as coisas do mundo que os rodeiam, mantendo-se em estado de apatia e conformismo. Por outro lado, esta cegueira lembra-nos também uma belíssima definição de Poesia a que Eugénio de Andrade dá corpo no poema Ver Claro, incluído em Sulcos da Sede, (2001). Leio:

Toda a poesia é luminosa,

Até a mais obscura.

O leitor é que tem às vezes,

em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.


E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.

 

Tudo neste trabalho poético nos vem confirmar que Graça Pires alcançou esse lugar mítico onde os Poetas são abençoados e, por isso fazedores de claridades com que “dão a ver” e, simultaneamente, se veem a si próprios.

Em Uma claridade que cega somos postos perante uma expressão poética que é simultaneamente do “Eu” e do Coletivo de onde, subtilmente, a dimensão do feminino nunca se arreda. Do “Eu” porque se espraia em espaços da memória, mapas de retratos, lembranças… Do Coletivo porque são evidentes as marcas de uma preocupação sociológica efetiva, configurada em versos como – Este é um país de sombras tão baldias / que magoa. É uma escrita de tonalidades tendencionalmente disfóricas, uma teia poética que não se distancia do conflito existencial do ser humano, confrontado com a desintegração dos valores tradicionais, a crescente onda de desumanidade, as perturbações e incertezas do tempo em que vivemos. É uma poesia incisiva, sóbria, cujo denominador comum se situa entre o lírico e o prosaico, pontos de convergência, num universo saturniano a impregnar a sensibilidade de quem escreve sob um ambiente sociocultural instável. Como sabemos, a atmosfera que o poeta respira, isto é, o tempo e o espaço em que a sua obra é produzida são inevitavelmente fatores de contaminação a que nenhum artefacto artístico está imune.

É a própria autora que o reconhece logo no poema da página 8, que vamos ouvir:

[…]

Evito que as letras ignorem o lume

Perturbante onde podem arder os sonhos.

Procuro a voz diferida da inocência

Para estilhaçar o verbo no centro do medo

E espalhar o meu nome pelas pedras

Tão alheias a qualquer simbologia.

 

A voz que fala no poema é “voz [adiada] da inocência” que permite a exaltação do verbo, que não se conforma com as amarras do silêncio perante o - lume perturbante onde podem arder os sonhos.

E partindo deste propósito de não silenciar, encontramos uma coerência onde se acumulam indícios claros de perda e de ausência, de mundos e de patrimónios da memória individual e coletiva que confluem em momentos nostálgicos e melancólicos sem que, na sua essência, o poema se abstenha de um acutilante estado de vigília.

Assim, a noite é para a poeta de Uma Claridade que Cega, um tempo de vigília por excelência.

A noite constitui-se um dos temas recorrentes na obra da autora e não só neste livro. Recordo que, por exemplo, em Poemas Escolhidos (1990 – 2011) encontramos versos que nos dão conta disso mesmo. Vejamos: Um pássaro reflete nos olhos o cume dos sonhos / e respira luz à tangente da noite, ou então - Um luminoso olhar sobre a noite do livro de 2007 - Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos – título que aliás dá consistência ao que afirmamos, anuindo, ele próprio à noite como um incêndio do “ver”. A noite é, pois, um lugar de desassossegos, mas também de reflexão, de transfiguração que vai dar origem ao sonho, por um lado e, por outro lado, à consciência da própria realidade por via das emoções e dos desejos. Sonho e realidade convivendo em harmonia na palavra poética de Graça Pires.

Note-se o que nos diz a voz do poema, a dado momento:

Indiferente ao desígnio das sombras / a luz insinua-se no lado misterioso / onde me encovo. / A luz e o silêncio. / Com artifícios insondáveis / e uma leve vigília / de dádiva ou de bênção. Uma leve “vigília”. Este estar sempre atento resulta no desenho de impressões definidas no pensamento que lhe permitem traduzir as imagens com que constrói ou refaz a realidade, a partir de um núcleo sustentado pela sensibilidade e pelas emoções que não se limitam à escrita. Com efeito, a arte poética atinge aqui uma dimensão que abrange outras artes, a música, por exemplo, onde afinal teve origem a própria Poesia. O poema é, neste caso, um encontro de linguagens onde todo o corpo participa: Vem, cadência da música / suspende o silêncio que escorre / em pausas onduladas como água / Encena-me em rituais profanos / acrescenta-me à partitura…

A música quando o canto é pausa e, talvez nem sequer pausa seja, se tivermos em conta que todo o poema é cadência, ritmo, antes mesmo de ser palavra. Uma palavra que é em Uma claridade que cega, tanto lugar de inquietude - Na marginalidade do sossego / reacendo o lume para que haja / colunas de fumo a seduzir o vento - como lugar de desejo prefigurado na leveza de imagens como - sílabas afluentes; palavras à boca de água; levíssimos lábios que enchem de mel a ânfora.

De referir ainda o papel da metalinguagem, isto é, a palavra que se explica a si mesma, patente no poema que termina com o verso que dá título ao livro:

 

Impossível encontrar o esteio certo

para entrelaçar a subtil anuência da fala.

As palavras, essas

são arrastadas pelo vento

que geme nas montanhas

onde se pode olhar de frente

o imponderável declive da neve

que rasga no peito

uma claridade que cega.

 

Uma alusão às limitações da linguagem, com que todo o poeta se debate - palavras arrastadas pelo vento - e a coragem de as olhar de frente - o imponderável declive da neve / que rasga no peito / uma claridade que cega.

Outra marca também visível na poesia de Graça Pires relaciona-se, sem dúvida, com o tempo. O tempo que surge asseverado, logo a partir da epígrafe, num verso de W.B. Yeats - As minhas meditações pertencem ao tempo que me tem transfigurado - o tempo que tudo transforma na sua caminhada ininterrupta até ao fim da viagem, até à morte. Mas não a morte apenas enquanto terminus da existência enunciada nestes versos - Pela respiração do mundo / sei que a vida me cerca/ com mãos inesgotáveis. - A morte também como metáfora, enquanto perda e ausência conforme se pode ver em - É agora o meu tempo acutilante do silêncio. / Faço o inventário inexplicável / dos pássaros que morrem todos os anos, / sempre em novembro / sempre no fundo dos meus olhos/ […] E morro também de morte lenta.

A passagem do tempo e a morte são presenças evidentes que elevam ao nível do consciente o efémero da condição do humano, ideia esta que nos é transmitida de variadas formas. Entrega voluntária, por vezes – cito - Desvinculo-me de todos os enredos / para que a osmose da trevas e da luz / alcance o resgate do corpo/ que se retalha roçando o chão / e se dissipa em pleno voo” - Outras vezes o reconhecimento da finitude como norma reguladora da natureza – Sei que o tempo não se detém/ Os muros mais severos assinalam/ sem dissonância, a escrita repisada das águas/ que a idade guardou na borda das pedras.

Referências às pedras, aos anjos, a Rilke, um conjunto de símbolos que nos transportam invariavelmente a um mesmo estado de inquietude, a uma mesma busca pela essência, pela verdade, que só na poesia parece encontrar abrigo. No poema em que evoca o poeta do romantismo germânico, Rainer Maria Rilke, lê-se - Queremos um anjo de pedra / nos rituais do enlevo - O anjo que dita as elegias ao poeta é aqui alvo de desejo porque - cito: - Eu procuro de novo / o princípio de tudo - Mas, conforme nos diz o próprio Rilke num dos versos mais inquietantes das Elegias de Duíno - Todo o anjo é terrível - justamente porque os anjos transitam entre o visível e o invisível, habitam tanto o mundo dos homens como o mundo do divino. Os anjos lembram-nos, a todo o tempo, as nossas limitações de simples mortais, limitações essas que a poeta de Uma claridade que cega também acusa. “O anjo terrível” ele mesmo, Rilke, cuja voz é superada por outra voz – a da Poesia - “A voz que fala em mim é mais do que eu mesmo” - Como se a construção do poema não fosse da exclusiva vontade do poeta e acontecesse, em certa medida, à margem deste, num espaço indefinido e misterioso, atributos do inexplicável. Também Graça Pires busca essa voz que é no fundo a própria voz, e clama por ela, em jeito de prece, deste modo - Queremos um anjo de pedra / nos rituais do enlevo.

Uma voz já encontrada, a nosso ver, pela sabedoria, pela coerência de pensamento trespassado pelo lirismo que se move no universo do transcendente repassado por uma singular visão simbólica e espiritualista numa estética de encantamento.

Pode dizer-se que o livro termina configurando uma ideia de circularidade onde tudo parece ser passível de se repetir. Atentemos: ao abri-lo podemos ler: - Hesitantes as palavras / procuram um ponto de partida / um recomeço. – Seguidamente, a voz que soa nos poemas, vai-se alteando, reclama, quer ser corpo, quer ser ouvida - Agora as palavras dançam à minha volta. / São serpentinas de todas as cores / enroladas ao corpo - para depois, perto do final, perder energia, talvez porque o que lhe resta seja - cito - o esquecimento dos dias/ na raiz de um som primordial - e remata deste modo sintomático - Com a boca cheia de silêncios / clamo o vazio absoluto em minha voz / tão acabada, tão sequiosa, / tão presa à garganta.

Deixo o leitor aqui, junto à voz de Graça Pires, para a desvendar, esperando que a minha leitura deste livro - Uma claridade que cega - sirva como estímulo para outras, diversas e prazerosas leituras.

 

Lídia Borges, poeta

Apresentação do livro. Porto, 4 dezembro 2015







Vila Nova de Gaia, 04 dezembro 2015

 

Caríssima Amiga Graça Pires:

 

Deixe-me, antes de mais, agradecer-lhe o bonito poema que tão gentilmente me dedica. Na sua linguagem acutilante, este seu livro que agora me chega acrescenta luz à luz (é “claridade que cega”) e instaura, a bem dizer, por entre “a liturgia da música” aquele êxtase de que fala o poema da p. 13, do mesmo passo que organiza aquelas “gramáticas de espanto” referidas no poema da p. 7.

Os poemas tecem uma geografia do corpo e da memória, mas engendram também um espaço de peregrinação e de procura. Esse espaço “onde tudo começa e acaba”, para a decifração do qual o poeta se socorre da “linguagem cifrada dos enigmas”. Porque tudo, afinal, é imagem, tudo é “áspera caligrafia do silêncio”.

Bem-haja e um afectuoso abraço do seu grato

 

Albano Martins, poeta

Carta manuscrita

 

P.S. Com os agradecimentos vão, naturalmente os parabéns. Uns e outros são, neste caso, sinónimos.

 





Estou a ler o seu livro e emociono-me em quase todos os poemas, pela proximidade que sinto com cada imagem, por me rever tanto na sua voz. É tão bom ainda haver quem escreva em busca da Beleza, essa condição solar, mas com tanta sombra oculta em busca de redenção (sombra essa que assumimos, sem medo). Este livro remete-me para estas imagens de luzes e sombras, e também para a condição das águas, as águas redentoras (mesmo as mais revoltas). Já sabia que as nossas vozes poéticas são próximas, irmãs, mas é uma emoção enorme lê-lo na intimidade a que um livro obriga. Obrigado por isso.

 

Samuel Pimenta, poeta

 

E-mail, 5 dezembro 2015






 

  Depois do recente «Espaço livre com barcos» este «Uma claridade que cega» é o 17º título de Graça Pires num percurso iniciado em 1990 com «Poemas» - Prémio Revelação da Associação Portuguesa de Escritores. São 25 anos de actividade poética e não surpreende quando o primeiro poema do livro refere o recomeço que, afinal, todo o poema acaba por ser: «Hesitantes, as palavras / procuram um ponto de partida / um recomeço». Embora o poema eleve a voz do seu autor, é sempre o colectivo que se projecta: «Há por todo o lado palcos improvisados / onde, em bocas distorcidas, se anunciam / perigos e presságios, ameaças e avisos.» Já antes na página 8 surgira uma adversativa: «Evito que as letras ignorem o lume / perturbante onde podem arder os sonhos.» O poema não se fixa no presente, antes viaja pelo passado («Espreito pelos dedos a memória / mais longínqua da infância») pois sabe que o passado pode ser sempre revisto e é «tantas vezes vida, tantas vezes morte». Não sendo esta uma poesia de púlpito ou de panfleto, não fica fora dela o registo veemente da grande dor daquilo que muitos chamam «reajustamento», mas que é de facto, apenas e só, «empobrecimento». Assim: «Pesa-me no peito a fadiga das mãos / enrugadas e o choro silencioso / das mães com a fome no colo.». O poema da página 29 dá origem ao título do livro: «As palavras, essas, / são arrastadas pelo vento / que geme nas montanhas / onde se pode olhar de frente / o imponderável declive da neve / que rasga no peito / uma claridade que cega». Ao longo dos séculos a Poesia sempre chamou todas as coisas pelos seus nomes mesmo quando faz uma dupla inscrição entre vida e literatura como na página 54: «Para o Poeta João Rui de Sousa Quando o dia oferece à paisagem / todas as gradações da luz / a escrita não se fatiga nas palavras. / O poeta é então um artífice discreto / pressentindo no olhar, sem explicação / o manejo das mãos enfeitiçadas / pelo gesto acabado, a marginar um sonho.» (Editora: Poética Edições, Colecção: Poesia) --

José do Carmo Francisco, poeta

26 janeiro 2016







Apresentação do livro “Uma claridade que cega”, de Graça Pires

 

Antes de mais quero agradecer à escritora Graça Pires pelo honroso convite para apresentar a sua mais recente obra poética, na Figueira da Foz, a sua cidade natal.

Em 2009 iniciei a viagem pelos poemas da autora quando pela primeira vez se apresentou como escritora na Figueira da Foz, tendo lido, então, alguns poemas do seu livro “O silêncio: lugar habitado”, agraciado com o Prémio Nacional Poeta Ruy Belo. A qualidade da sua poesia, tecida com sublime filigrana de palavras exactas, de beleza metafórica, que nos emocionam e penetram a alma, justificam a atribuição de muitos outros prémios, ao longo da sua brilhante carreira literária iniciada em 1990 com a edição do seu primeiro livro “Poemas” no âmbito do Prémio Revelação de Poesia, instituído pela Associação Portuguesa de Escritores.

Quando me chegou às mãos este livro de alva capa onde, a azul sobressai o título: “Uma claridade que cega”, confesso que vibrou dentro de mim a ansiedade de o abrir para saborear os poemas que lhe davam forma. De imediato me surgiu o epíteto da praia da Figueira da Foz, que todos bem conhecem: “praia da claridade”, com as nuances de azul e tons dourados do pôr-do-sol, mescladas com essa cor indefinível do imenso areal desta praia do Atlântico, paisagem que tem atraído a pupila exigente dos pintores desta cidade. “Uma claridade que cega”, evocando uma luz do máximo fulgor remete-nos simultaneamente para um clarão que nos encandeia. E este jogo de antíteses, esta dualidade que faz parte da vida, será uma constante ao longo dos 58 vibrantes poemas que se desenham na tela desta artista, onde ganha relevo a poesia do eu.

Uma característica dos livros desta escritora é que os poemas que os constituem não possuem título, em meu entender para que haja uma linha condutora a uni-los e cabe ao leitor estar atento para agarrar o fio de Ariadne que nos conduz ao cerne das palavras. Foi com este intento que me debrucei na análise destes belíssimos poemas que me emocionaram e encantaram, para poder agarrar esse fio de subtil essência e partilhá-lo convosco.

No poema de abertura a poetisa expõe o seu claro propósito de artífice, que pretende moldar as palavras para que elas se ajustem à claridade das duas vivências. “Quero descobrir, num vinco de texto / a caligrafia ajustada ao barro / que molde um favo de puríssima luz / só visível em gramáticas de espanto”. E, humilde, inicia a labuta: “No insondável lugar das encruzilhadas, traço os sons, acolho as formas, corrijo a dicção” (poema 2, p. 28), procurando inspiração nos puros e inocentes sonhos da infância que não quer ver consumidos: “Espreito pelos dedos a memória / da mais longínqua infância” (poema 13, p. 19). Assume que a tarefa não é fácil, pois na sua intenção de moldar a luz, também as sombras a perseguem na noite da criação e a luz encontra o seu oposto numa cumplicidade envolvente, como refere no terceiro poema, arrebatador: “São longos os dedos / que sulcam o rosto difuso das noites […] / Indiferente ao desígnio das sombras, / a luz insinua-se no lado misterioso / onde me encovo. A luz e o silêncio. / Com artifícios insondáveis / e uma leve vigília / de dádiva ou de bênção”. Por vezes a matéria-prima com que constrói a sua obra revela-se insuficiente, gerando sentimentos de revolta e de luta, com alusões à inquietação do ofício do poeta: “O verbo: clareira em cama de fenos ou ilha oculta de ocultos de silêncios […] Como se o nervo do vento fustigasse a voz dos poetas esmagando a rigidez dos sons… retenho nas arestas da página. O som do lápis, como um pião rodopiando traços inseguros” (poema 37, p. 43). Sente-se a ânsia de um constante aprimoramento. E a poetisa acredita no milagre da poesia como uma libertação através da expressão da palavra, dando-lhe forma perfeita, com o intuito de “moldar o favo de puríssima luz” que refere no primeiro poema. Há sempre um desassossego, numa luta aguerrida para conseguir o seu intento: “Às a grafia é escassa / no desadorno do poema. / Ponho no rebordo dos dentes / uma ferocidade / que estremece qualquer culpa…” (poema 5) “Na marginalidade do sossego/ reacendo o lume para que haja / colunas de fumo a seduzir o vento. / E soletro a oração que transporta / de treva em treva uma esquiva chama.” (poema 6).

O mar é a pedra de toque para reacender a chama das recordações. Recordações que seduzem a autora e a fortalecem. Uma temática que serviu de fundo aos poemas da sua obra anterior “Espaço livre com barcos” também aqui presente em inúmeros poemas, construídos em vários cenários. Destaco o poema 7 (p. 13) onde a poetisa convoca, enfaticamente, a força telúrica do mar e a cadência da sua música, enraizando-a em seu sedutor corpo de mulher. “Traço na areia uma linha em movimento de onda e rodo sobre mim mesma / quando as marés me bailam nas ancas […] Vem, cadência da música! Suspende o silêncio que me escorre / em pausas onduladas como água. / Encena-me em rituais profanos. […] Vem e desliza inteira no êxtase da luz”. O cromatismo dos cenários marítimos, o movimento, a expressividade do jogo metafórico e a carga emotiva que nos toca fortemente, fazem de cada poema uma realidade quase palpável, como se da cena de um filme se tratasse: “Sem embaraço vou arrancar, com as unhas, os pregos do barco que inventei […] Enconcho as mãos para transpor a maré / e o litoral devassado pelo lodo. / Enrolo nos pulsos as redes de pesca / e todas as gaivotas me perseguem”. (Poema 12, p. 18). Com o léxico do mar narra histórias que nos comovem: o navio que não voltou, o arpão dos gemidos sangrando a boca das mulheres, a braveza dos marinheiros, os meninos que sonham com piratas… O mar reinventado em cada dia! Mas também a autora pesarosa, tece críticas ao seu país: “Lado a lado com os poemas desenrolo / nas entrelinhas um glossário reticente / para dizer o que dói neste país de mar […] onde lhe pesam no peito “o choro silencioso das mães com a fome no colo”, lhe ferem na boca “os gritos mudos em que se desfazem os sonhos adolescentes”, denunciando que “há por todo o lado palcos improvisados onde, em bocas distorcidas, se anunciam perigos e presságios, ameaças e avisos. E remata, acutilante: Este é um país de sombras tão baldias / que magoa. (Poema 22, p. 28). E a autora assume mesmo esta paixão pelo mar: “De página em página traço linhas de tensão / e verbalizo a linguagem do mar, simultaneamente plural e única / quando em golpes implacáveis. / fere os rochedos como quem rasga / o peito das aves, ou respira sobre os barcos / um rumo de inclinação azul”. (poema 50, p. 56).

Outra marca no fio dos poemas é “a obsessão pelas trevas / o rigor das noites”, talvez porque nesse ambiente poderá rever o passados com “os mais antigos olhos” e constata que ele foi “tantas vezes vida” e “tantas vezes morte / trevas / silêncios / fogo posto (poema 11, p, 17). Procura incessantemente as memórias mais longínquas da infância, não só nos locais conhecidos, mas também em cenários imaginados para que sejam “paisagem na lembrança. Aceita que o olhar teça e desteça o contraste dos dias e situa-se “no centro do espaço onde tudo começa e acaba” onde sente a união e a rutura. Esta dicotomia luz / sombra; luz /silêncio; luz /trevas; vida / morte, vai-se reiterando ao longo da obra, na busca de um horizonte solar. Por vexes a entrega é voluntária; “Desvinculo-me de todos os enredos / para que a osmose das trevas e da luz / alcance o resgate do corpo / que se retalha rocando o chão / e se dissipa em pleno voo”. (poema 26). A sequência dos poemas marca também o passar dos anos… “Inclino-me levemente sobre a nudeza devassada pelos anos. / Um rio suspende a corrente em meus lábios / rodeados pelo rumor de tantas águas. (poema 25, p. 31). E nessa viagem pelo trilho dos aventureiros, dos caminhantes, dos fugitivos, na senda dos sonhos em que se procura, vive o deslumbramento. Vencidos os muitos desafios, a sua voz vai-se sintonizando cada vez mais com a luz redentora que neutraliza as sombras, que já não cega! “Quero que a linguagem simbolize um templo de absolvição e reza nas palavras em fuga pelos olhos” (poema 25, p. 31). E a chegada da primavera anuncia um tempo de renovação, de uma espiritualidade redentora, em comunhão com a natureza alegre e colorida, finalmente liberta de todas as trevas com que se debateu. “É Primavera. As aves regressam em bandos” / e as crianças trazem no olhar uma cintilação quase divina / e os descrentes procuram um deus / no claustro da morte” (poema 30, p. 36); “Num recinto de cânticos mais discretos, / talvez haja um eco de salmos entoados por nítidos anjos a devolver-me a respiração com que celebro cada instante”. (poema 28, p. 34); O lilás claro das hortênsias / galgando a periferia dos jardins / espalha todos os aromas pela terra. / Adorno com aves sagradas / o altar onde se mitigam as crenças”. (poema 42, p. 48). E essa alegria reencontrada nas gradações da luz do dia, transforma-a numa artífice discreta e hábil, como explica no poema dedicado ao poeta João Rui de Sousa (poema 48, p. 54). A sua criação está quase concluída! “Sorvo dentro da manhã, a brevidade de um silêncio sobrenatural. No ritual desse instante / escorre-me pela cara / até à fonte mais remota, / onde a água tem o sabor / do leite materno / em prematuras bocas”.

E o favo de puríssima luz, cristalino e transparente foi finalmente consumado! A poetisa, gloriosa, pinta a ouro o seu último poema!  Vou lê-lo na íntegra, rematando deste modo a minha apresentação:”. Com os lábios ornados de cristal / quebro as razões mais sombrias / no dorso das contradições. / Não me reconheço em jogos encenados. / Disperso as nuvens carregadas / de abismo em duelo com a luz. / Projecto-me num diálogo / que rasga uma outra voz de espanto. / E detenho, em mãos cegas, a sorte e o revés da biografia que me identifica. / Sei que por dentro da dobra do passado / corre o rio intocado dos meus sonhos.

 

Manuela Azevedo, poeta

Apresentação do livro na Figueira da Foz, Biblioteca Municipal, 21 março 2016