Uma claridade que cega. Macedo de Cavaleiros: Poética, 2015
São Paulo: Intermeios, 2015
SILÊNCIO E MARGINALIDADE NA POESIA
DE GRAÇA PIRES
O novo livro de Graça
Pires, Uma claridade que cega, afirma-se fundamentalmente como
uma procura: “eu procuro de novo/ o princípio de tudo,” (p.10); “na
marginalidade do sossego/ reacendo o lume…” (p.12); “escuto até à exaustão/ os
rumores de um tempo mais remoto” (p.14). Vemos, portanto, que são específicas
desta aventura poética três instâncias fundamentais: o sossego – muitas vezes
aparecendo sob outras formas, como por exemplo a do silêncio -; a
marginalidade, entendida esta não como uma vivência ostensivamente burguesa e
urbana, mas tão-só como a rejeição de uma norma que impede a busca dessa
claridade absoluta, fundamento do Ser e da escuta poética: “sou da estirpe dos
aventureiros, dos caminhantes, dos fugitivos.” (p.30); “fujo na crina de um
potro livre, / sem jugo, em veloz cavalgada.” (p.40) e, finalmente, o alvo
desta mesma procura metamorfoseado este na imagem da “fonte mais remota, / onde
a água tem o sabor/ do leite materno” (p.60). Esta associação sossego/silêncio,
procura pela margem e propensão para a fonte originária ou, como neste livro se
apresenta, para essa claridade que cega, tem sido uma constante na
poética de Graça Pires: “nómada na noite, entro no coração do texto, / para
dizer o exílio nos olhos de Ulisses.” (in Uma certa forma de errância, 2003,
p.43); “Um saber de dialectos nocturnos, / permite-me riscar nos pulsos um
silêncio de fuga.” (op. cit. p.51); “seguimos pela noite indiferentes/ a todos
os ruídos que rebentam/ o rigor do silêncio.” (in Uma vara de medir o
sol, 2012, p.69).
Vemos também que esta
procura é não só uma inquirição em torno do princípio originário, dessa claridade primeira,
como também um trabalho em torno da palavra para que dela seja removida toda a
ganga do ruído e da inautenticidade:
NOME: -
Interpelamos as palavras à procura de um nome para a casa
onde moramos. Um nome que se ajuste inteiro à memória
do olhar e do silêncio.
Um nome tão secreto como as cantigas
que as mães cantam baixinho enquanto embalam
nos braços os filhos e a noite para não perderem
o poder de repartir a sede.”
(in Caderno de Significados, 2013, p.21)
E a este almejar de uma claridade que cega, ou seja, desta
beleza terrível, não é alheia a poesia de Rilke logo anunciada no quarto poema
deste livro. Vejamos o que diz o poeta alemão:
“(…). Pois o belo apenas é
o começo do terrível, que só a custo o podemos suportar,
e se tanto o admiramos é porque ele, impassível, desdenha
destruir-nos. Todo o Anjo é terrível.”
(“A Primeira Elegia” in As Elegias de Duíno, Assírio &
Alvim, 2002, p.39)
“Todo o Anjo é terrível. No entanto, ai de mim!
Pelo canto vos invoco, aves da alma quase mortais,
por saber o que sois. Para onde foram os dias de Tobias,
quando um de entre os mais luminosos apareceu, no simples limiar da entrada
(…)
Porém nós, ao sentir, desvanecemo-nos. Ai de nós,
ao respirar nos extinguimos; de brasido em brasido
vamos perdendo o nosso aroma. (…)”
(“A Segunda Elegia”
in As Elegias de Duíno, Assírio & Alvim, 2002, p.47)
Esta antinomia
Anjo/terribilidade, claridade/fulminação do olhar na autora, alarga-a Graça
Pires à presença de outros autores nomeadamente de Virgínia Woolf de quem a poeta
diz, em dois versos que validam esta minha linha de leitura: “As múltiplas
faces da vida e da morte/ em diálogo secreto.” (In Uma claridade que
cega, 2015, p 35). Há ainda uma outra convergência com a romancista
inglesa: em Mrs Dalloway , Clarissa Dalloway interroga-se
frequentemente sobre o seu passado, o seu presente e o futuro, ora estas
dimensões da temporalidade trespassam todo o livro de Graça Pires, aliás, este
jogar no tempo é frequente em Virgínia Woolf, veja-se, por exemplo, outro
romance seu: Orlando , que, baseado na vida de Vita
Sackville-West, narra a história de um jovem que certo dia acorda mulher e
dotado de imortalidade, Orlando acompanha mais de três séculos
da vida dessa personagem. Vemos, por conseguinte, que Clarissa Dalloway (o
livro narra apenas um dia da sua vida) vive entre a felicidade
e a ideia de suicídio, Orlando entre a imortalidade e o efêmero rotineiro, ou
seja, ambos desenham a sua errância entre um polo positivo e outro negativo,
tal como este livro de Graça Pires entre a claridade e a cegueira. Não é
despiciendo enfatizar também aqui a riqueza imagística das autoras: a de
Virgínia Woolf deu azo a riquíssimas obras de arte, como por exemplo o
romance As Horas de Michael Cunningham, que, por sua vez
originou o filme homónimo (2002) de Stephen Daldry com as soberbas
interpretações de Maryl Streep, Nicole Kidman e Julianne Moore e ainda a
película Orlando (1992) de Sally Potter com o andrógino
desempenho de Tilda Swinton. Já as imagens da poesia de Graça Pires, com a sua
sobrevalorização do telúrico e/ou do aquífero, bem como o chamar à liça do
afetivo e do emocional, entroncando, portanto, em Pascoaes, Torga,
Sophia, Nuno Júdice e algum Ruy Belo, mas recusando as escritas
mais debruçadas sobre as vivências citadinas, corre o risco de – com as suas
águas, as suas gaivotas, as suas estevas, a sua urze, etc. - , numa leitura
apressada, serem remetidas para um filo passadista, todavia, uma leitura
cuidada desta escrita verificará que o que existe é todo um paradigma de
referentes ao serviço de intentos outros – exemplo: falar-se do envelhecimento
em Outono: Lugar Frágil (1994), dessa Odisseia que é o
estar-aqui em Uma certa forma de errância ( 2003), da falsa
oposição que existe entre o trabalho braçal e doméstico relativamente ao
aperfeiçoamento moral e religioso em não sabia que a noite podia
incendiar-se nos meus olhos (2007), etc. Um terceiro, e último,
diálogo que Graça Pires mantém é com Pablo Neruda: “Hoje, que não escuto o mar/
fujo na crina de um potro livre, / sem jugo, em veloz cavalgada. Tenho nos
olhos um incêndio tangível (…) / Doeu-me a voz quando bradei, / sem fôlego, o
verso de neruda:/quero inventar o mar de cada dia.”, a abordagem da
realidade material, do sócio-económico, na poesia de Graça Pires é sempre feita
de forma subtil, mas, paradoxalmente, forte: “Há por todo o lado palcos
improvisados/ onde, em bocas distorcidas, se anunciam/ perigos e presságios,
ameaças e avisos. / Este é um país de sombras tão baldias que magoa. “(p28): “Cravo
as unhas na carne da indiferença. / Escrevo sangue/ com o
lápis gasto pela culpa acorrentada/ à cegueira que desfoca os olhares/ (…) /
Leio dor. Dolorosamente. / Em lugares desabrigados, / em
portas franqueadas aos rasgões/ da vida rondada pela morte.” (p 33), não
estamos – nestes versos – longe de tantos poemas de Nazim Hikmet ou do Canto
Geral de Neruda, onde podemos ler: “Mas tu não sofreste? Não, eu não
sofri. Eu sofro/ apenas os sofrimentos do meu povo. Eu vivo/ dentro, no
interior da minha pátria, célula/ do seu infinito e abrasado sangue. “(In Canto
Geral, Campo das Letras, 1998, p 480, tradução de Albano Martins).
O presente livro
de Graça Pires ousa ainda três áreas estreitamente conectadas com tudo aquilo
de que tenho vindo a falar: o plano do existencial e do dia-a-dia, o da
inquirição da palavra e da poesia e, finalmente, um plano metafísico onde a
esperança e o sonho têm um papel fundamental. Acerca desse primeiro plano
leia-se o poema da página 39 da presente obra:
Só folheio os jornais de vez em quando.
Quase tudo o que se escreve
são golpes confusos
que abrem nas entranhas a impressão
de um mundo por entender.
A verdade chega-nos apenas
através do silêncio dos que sonharam
um tempo sem estas ruínas
que descarnam e sepultam
a mais valiosa esperança.
Este poema ilustra na
perfeição o que temos vindo a dizer: primeiro, estabelece a distinção entre
aparências (golpes confusos, mundo por entender) e a busca da verdade, isto é,
da claridade que cega ; segundo, reafirma a importância do
silêncio e do sonho para bem entender e agir, convém, no entanto, acrescentar
que o sonho nunca é, na poesia de Graça Pires, sinónimo de devaneio ou
alienação, ele surge sempre ou como capacidade da memória ao serviço da
rememoração e do conhecer ou – como aqui – como rasgo da imaginação que
alimenta a praxis ; terceiro, a recusa da poeta em integrar o
coro das ruínas , em integrar o número daqueles que descarnam a esperança e a
ousadia, daí o já referido colocar-se à margem da voracidade da turbamulta, daí
também o termo marginalidade que usei no título deste texto ;
quarto e último, a distinção acenada no sexto verso: a Graça Pires não
interessam as certezas tão operativas e eficazes nas
ciências e tão úteis nos registos de tipo jornalístico, à autora importa
a verdade , dito de outro modo: os seus olhares antropológico
e histórico aparecem sempre alicerçados numa visão ética, assim como o
sociológico se curva ante o metafísico, numa frontal recusa do injusto e do
mal, entendido este no seu sentido radical: “Este mal é radical, a partir do
momento em que corrompe o fundamento de todas as máximas (morais).” (Kant,
In A Religião dentro dos Limites da Simples Razão, Ak. Ausg., VI).
Por tudo isto, competirá à Palavra, ou melhor, à Poesia, conduzir-nos neste
caminho iluminante, competirá a ela assumir-se plenamente como Uma
claridade que cega.
O verbo: clareira em cama de fenos
ou ilha oculta de ocultos silêncios.
Como se o nervo do vento
fustigasse a voz dos poetas
esmagando a rigidez dos sons.
Apta a declinar as regras do jogo
retenho, nas arestas da página,
o som do lápis, como um pião
rodopiando traços inseguros.
A película de imagens no interior do texto,
levemente aberto ao segredo das mãos
deixa que me habite um desvario
que faça regressar um
verso invisível.
(In Uma
claridade que cega, p 43)
Victor Oliveira Mateus, poeta
Na apresentação do livro. Lisboa, 28 de novembro de 2015.
Parece haver da parte da autora uma intenção prévia de justa aproximação do sentir ao dizer que leva o sujeito lírico a declarar o desejo de…cito - descobrir num vinco de texto / a caligrafia ajustada ao barro - isto é, a poeta tem para si como necessidade fazer coincidir a vida e a arte, dando, deste modo, sentido às palavras de Octavio Paz, quando este afirma que os poetas não têm biografia. Sua biografia é sua obra. Com efeito, a escrita parece ser para Graça Pires esta - puríssima luz, só visível em gramáticas de espanto - E o que é a Poesia se não uma «gramática de espanto» onde a luz se «insinua no lado mais misterioso» da vida?
Comecemos então pelo título, pelo conceito de Claridade, sinónimo de luminosidade/ luz que se opõe ao sentido mais vulgar dado à palavra “cegueira”. Mas esta cegueira que aqui nos surge é um reflexo produzido pela neve, logo uma cegueira que se afasta da obscuridade, uma espécie de cegueira branca, uma luz que cega de tão clara e transparente. Este raciocínio leva-nos a Ensaio Sobre a Cegueira de José Saramago, onde no “não ver” está implícita uma ideia de opção, como uma escolha, abstendo-se os “cegos” de se questionarem sobre o Mundo e as coisas do mundo que os rodeiam, mantendo-se em estado de apatia e conformismo. Por outro lado, esta cegueira lembra-nos também uma belíssima definição de Poesia a que Eugénio de Andrade dá corpo no poema Ver Claro, incluído em Sulcos da Sede, (2001). Leio:
Toda a poesia é luminosa,
Até a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.
Tudo neste
trabalho poético nos vem confirmar que Graça Pires alcançou esse lugar mítico
onde os Poetas são abençoados e, por isso fazedores de claridades com que “dão
a ver” e, simultaneamente, se veem a si próprios.
Em Uma claridade que cega somos postos
perante uma expressão poética que é simultaneamente do “Eu” e do Coletivo de
onde, subtilmente, a dimensão do feminino nunca se arreda. Do “Eu” porque se
espraia em espaços da memória, mapas de retratos, lembranças… Do Coletivo
porque são evidentes as marcas de uma preocupação sociológica efetiva,
configurada em versos como – Este é um
país de sombras tão baldias / que magoa. É uma escrita de tonalidades
tendencionalmente disfóricas, uma teia poética que não se distancia do conflito
existencial do ser humano, confrontado com a desintegração dos valores
tradicionais, a crescente onda de desumanidade, as perturbações e incertezas do
tempo em que vivemos. É uma poesia incisiva, sóbria, cujo denominador comum se
situa entre o lírico e o prosaico, pontos de convergência, num universo
saturniano a impregnar a sensibilidade de quem escreve sob um ambiente
sociocultural instável. Como sabemos, a atmosfera que o poeta respira, isto é,
o tempo e o espaço em que a sua obra é produzida são inevitavelmente fatores de
contaminação a que nenhum artefacto artístico está imune.
É a própria autora que o reconhece
logo no poema da página 8, que vamos ouvir:
[…]
Evito que as letras ignorem
o lume
Perturbante onde podem
arder os sonhos.
Procuro a voz diferida da
inocência
Para estilhaçar o verbo no
centro do medo
E espalhar o meu nome pelas
pedras
Tão alheias a qualquer
simbologia.
A voz que fala
no poema é “voz [adiada] da inocência” que permite a exaltação do verbo, que
não se conforma com as amarras do silêncio perante o - lume perturbante onde podem arder os sonhos.
E partindo
deste propósito de não silenciar, encontramos uma coerência onde se acumulam
indícios claros de perda e de ausência, de mundos e de patrimónios da memória
individual e coletiva que confluem em momentos nostálgicos e melancólicos
sem que, na sua essência, o poema se abstenha de um acutilante estado de
vigília.
Assim, a noite é para a
poeta de Uma Claridade que Cega, um
tempo de vigília por excelência.
A noite constitui-se um dos
temas recorrentes na obra da autora e não só neste livro. Recordo que, por
exemplo, em Poemas Escolhidos (1990 –
2011) encontramos versos que nos dão conta disso mesmo. Vejamos: Um pássaro reflete nos olhos o cume dos
sonhos / e respira luz à tangente da noite, ou então - Um luminoso olhar sobre a noite do
livro de 2007 - Não sabia que a noite
podia incendiar-se nos meus olhos – título que aliás dá consistência ao que
afirmamos, anuindo, ele próprio à noite como um incêndio do “ver”. A noite é,
pois, um lugar de desassossegos, mas também de reflexão, de transfiguração que
vai dar origem ao sonho, por um lado e, por outro lado, à consciência da
própria realidade por via das emoções e dos desejos. Sonho e realidade
convivendo em harmonia na palavra poética de Graça Pires.
Note-se o que nos diz a voz
do poema, a dado momento:
Indiferente ao desígnio das sombras / a luz
insinua-se no lado misterioso / onde me encovo. / A luz e o silêncio. / Com
artifícios insondáveis / e uma leve vigília / de dádiva ou de bênção. Uma leve “vigília”. Este
estar sempre atento resulta no desenho de impressões definidas no pensamento
que lhe permitem traduzir as imagens com que constrói ou refaz a realidade, a
partir de um núcleo sustentado pela sensibilidade e pelas emoções que não se
limitam à escrita. Com efeito, a arte
poética atinge aqui uma dimensão que
abrange outras artes, a música, por exemplo, onde afinal teve origem a própria Poesia.
O poema é, neste caso, um encontro de linguagens onde todo o corpo participa: Vem, cadência
da música / suspende o silêncio que escorre / em pausas onduladas como água /
Encena-me em rituais profanos / acrescenta-me à partitura…
A música quando o canto é
pausa e, talvez nem sequer pausa seja, se tivermos em conta que todo o poema é
cadência, ritmo, antes mesmo de ser palavra. Uma palavra que é em Uma claridade que cega, tanto lugar de
inquietude - Na marginalidade do sossego
/ reacendo o lume para que haja / colunas de fumo a seduzir o vento - como
lugar de desejo prefigurado na leveza de imagens como - sílabas afluentes; palavras à boca de água; levíssimos lábios que
enchem de mel a ânfora.
De referir ainda o papel da
metalinguagem, isto é, a palavra que se explica a si mesma, patente no poema
que termina com o verso que dá título ao livro:
Impossível encontrar o esteio certo
para entrelaçar a subtil anuência da fala.
As palavras, essas
são arrastadas pelo vento
que geme nas montanhas
onde se pode olhar de frente
o imponderável declive da neve
que rasga no peito
uma claridade que cega.
Uma alusão às limitações da
linguagem, com que todo o poeta se debate - palavras arrastadas pelo vento - e a coragem de as olhar de frente - o imponderável declive da neve / que rasga
no peito / uma claridade que cega.
Outra marca também visível
na poesia de Graça Pires relaciona-se, sem dúvida, com o tempo. O tempo que surge asseverado, logo a
partir da epígrafe, num verso de W.B. Yeats - As minhas meditações pertencem ao tempo que me tem transfigurado - o
tempo que tudo transforma na sua caminhada ininterrupta até ao fim da viagem,
até à morte. Mas não a morte apenas enquanto
terminus da existência enunciada
nestes versos - Pela respiração do mundo
/ sei que a vida me cerca/ com mãos inesgotáveis. - A morte também como
metáfora, enquanto perda e ausência conforme se pode ver em - É agora o meu tempo acutilante do silêncio.
/ Faço o inventário inexplicável / dos pássaros que morrem todos os anos, /
sempre em novembro / sempre no fundo dos meus olhos/ […] E morro também de
morte lenta.
A passagem do tempo e a
morte são presenças evidentes que elevam ao nível do consciente o efémero da
condição do humano, ideia esta que nos é transmitida de variadas formas.
Entrega voluntária, por vezes – cito - Desvinculo-me
de todos os enredos / para que a osmose da trevas e da luz / alcance o resgate
do corpo/ que se retalha roçando o chão / e se dissipa em pleno voo” - Outras
vezes o reconhecimento da finitude como norma reguladora da natureza – Sei que o tempo não se detém/ Os muros mais
severos assinalam/ sem dissonância, a escrita repisada das águas/ que a idade
guardou na borda das pedras.
Referências às pedras, aos
anjos, a Rilke, um conjunto de símbolos que nos transportam invariavelmente a
um mesmo estado de inquietude, a uma mesma busca pela essência, pela verdade,
que só na poesia parece encontrar abrigo. No poema em que evoca o poeta do
romantismo germânico, Rainer Maria Rilke, lê-se - Queremos um anjo de pedra / nos rituais do enlevo - O anjo que dita
as elegias ao poeta é aqui alvo de desejo porque - cito: - Eu procuro de novo / o princípio de tudo - Mas, conforme nos diz o
próprio Rilke num dos versos mais inquietantes das Elegias de Duíno - Todo o
anjo é terrível - justamente porque os anjos transitam entre o visível e o
invisível, habitam tanto o mundo dos homens como o mundo do divino. Os anjos
lembram-nos, a todo o tempo, as nossas limitações de simples mortais,
limitações essas que a poeta de Uma
claridade que cega também acusa. “O anjo terrível” ele mesmo, Rilke, cuja
voz é superada por outra voz – a da Poesia - “A voz que fala em mim é mais do que eu mesmo” - Como se a
construção do poema não fosse da exclusiva vontade do poeta e acontecesse, em
certa medida, à margem deste, num espaço indefinido e misterioso, atributos do
inexplicável. Também Graça Pires busca essa voz que é no fundo a própria voz, e
clama por ela, em jeito de prece, deste modo - Queremos um anjo de pedra / nos rituais do enlevo.
Uma voz já encontrada, a
nosso ver, pela sabedoria, pela coerência de pensamento trespassado pelo
lirismo que se move no universo
do transcendente repassado por uma singular visão simbólica e espiritualista
numa estética de encantamento.
Pode dizer-se que o livro
termina configurando uma ideia de circularidade onde tudo parece ser passível
de se repetir. Atentemos: ao abri-lo podemos ler: - Hesitantes as palavras / procuram um ponto de partida / um recomeço. –
Seguidamente, a voz que soa nos poemas, vai-se alteando, reclama, quer ser
corpo, quer ser ouvida - Agora as
palavras dançam à minha volta. / São serpentinas de todas as cores / enroladas
ao corpo - para depois, perto do final, perder energia, talvez porque o que
lhe resta seja - cito - o esquecimento
dos dias/ na raiz de um som primordial - e remata deste modo sintomático - Com a boca cheia de silêncios / clamo o
vazio absoluto em minha voz / tão acabada, tão sequiosa, / tão presa à
garganta.
Deixo o leitor aqui, junto
à voz de Graça Pires, para a desvendar, esperando que a minha leitura deste
livro - Uma claridade que cega -
sirva como estímulo para outras, diversas e prazerosas leituras.
Lídia Borges, poeta
Apresentação do livro.
Porto, 4 dezembro 2015
Vila Nova de Gaia, 04 dezembro 2015
Caríssima Amiga Graça Pires:
Deixe-me, antes de mais, agradecer-lhe o bonito
poema que tão gentilmente me dedica. Na sua linguagem acutilante, este seu
livro que agora me chega acrescenta luz à luz (é “claridade que cega”) e
instaura, a bem dizer, por entre “a liturgia da música” aquele êxtase de que
fala o poema da p. 13, do mesmo passo que organiza aquelas “gramáticas de
espanto” referidas no poema da p. 7.
Os poemas tecem uma geografia do corpo e da
memória, mas engendram também um espaço de peregrinação e de procura. Esse
espaço “onde tudo começa e acaba”, para a decifração do qual o poeta se socorre
da “linguagem cifrada dos enigmas”. Porque tudo, afinal, é imagem, tudo é
“áspera caligrafia do silêncio”.
Bem-haja e um afectuoso abraço do seu grato
Albano Martins, poeta
Carta manuscrita
P.S. Com os agradecimentos vão, naturalmente os
parabéns. Uns e outros são, neste caso, sinónimos.
Estou a ler o seu livro e emociono-me em quase todos
os poemas, pela proximidade que sinto com cada imagem, por me rever tanto na
sua voz. É tão bom ainda haver quem escreva em busca da Beleza, essa condição
solar, mas com tanta sombra oculta em busca de redenção (sombra essa que
assumimos, sem medo). Este livro remete-me para estas imagens de luzes e
sombras, e também para a condição das águas, as águas redentoras (mesmo as mais
revoltas). Já sabia que as nossas vozes poéticas são próximas, irmãs, mas é uma
emoção enorme lê-lo na intimidade a que um livro obriga. Obrigado por isso.
Samuel Pimenta, poeta
E-mail, 5 dezembro 2015
Depois do recente «Espaço livre com barcos» este «Uma claridade que cega» é o 17º título de Graça Pires num percurso iniciado em 1990 com «Poemas» - Prémio Revelação da Associação Portuguesa de Escritores. São 25 anos de actividade poética e não surpreende quando o primeiro poema do livro refere o recomeço que, afinal, todo o poema acaba por ser: «Hesitantes, as palavras / procuram um ponto de partida / um recomeço». Embora o poema eleve a voz do seu autor, é sempre o colectivo que se projecta: «Há por todo o lado palcos improvisados / onde, em bocas distorcidas, se anunciam / perigos e presságios, ameaças e avisos.» Já antes na página 8 surgira uma adversativa: «Evito que as letras ignorem o lume / perturbante onde podem arder os sonhos.» O poema não se fixa no presente, antes viaja pelo passado («Espreito pelos dedos a memória / mais longínqua da infância») pois sabe que o passado pode ser sempre revisto e é «tantas vezes vida, tantas vezes morte». Não sendo esta uma poesia de púlpito ou de panfleto, não fica fora dela o registo veemente da grande dor daquilo que muitos chamam «reajustamento», mas que é de facto, apenas e só, «empobrecimento». Assim: «Pesa-me no peito a fadiga das mãos / enrugadas e o choro silencioso / das mães com a fome no colo.». O poema da página 29 dá origem ao título do livro: «As palavras, essas, / são arrastadas pelo vento / que geme nas montanhas / onde se pode olhar de frente / o imponderável declive da neve / que rasga no peito / uma claridade que cega». Ao longo dos séculos a Poesia sempre chamou todas as coisas pelos seus nomes mesmo quando faz uma dupla inscrição entre vida e literatura como na página 54: «Para o Poeta João Rui de Sousa Quando o dia oferece à paisagem / todas as gradações da luz / a escrita não se fatiga nas palavras. / O poeta é então um artífice discreto / pressentindo no olhar, sem explicação / o manejo das mãos enfeitiçadas / pelo gesto acabado, a marginar um sonho.» (Editora: Poética Edições, Colecção: Poesia) --
José do Carmo Francisco,
poeta
26 janeiro 2016
Apresentação do livro “Uma
claridade que cega”, de Graça Pires
Antes de mais quero agradecer à escritora Graça
Pires pelo honroso convite para apresentar a sua mais recente obra poética, na
Figueira da Foz, a sua cidade natal.
Em 2009 iniciei a viagem pelos poemas da autora
quando pela primeira vez se apresentou como escritora na Figueira da Foz, tendo
lido, então, alguns poemas do seu livro “O silêncio: lugar habitado”,
agraciado com o Prémio Nacional Poeta Ruy Belo. A qualidade da sua poesia,
tecida com sublime filigrana de palavras exactas, de beleza metafórica, que nos
emocionam e penetram a alma, justificam a atribuição de muitos outros prémios,
ao longo da sua brilhante carreira literária iniciada em 1990 com a edição do
seu primeiro livro “Poemas” no âmbito do Prémio Revelação de Poesia, instituído
pela Associação Portuguesa de Escritores.
Quando me chegou às mãos este livro de alva capa
onde, a azul sobressai o título: “Uma claridade que cega”, confesso que
vibrou dentro de mim a ansiedade de o abrir para saborear os poemas que lhe
davam forma. De imediato me surgiu o epíteto da praia da Figueira da Foz, que
todos bem conhecem: “praia da claridade”, com as nuances de azul e tons
dourados do pôr-do-sol, mescladas com essa cor indefinível do imenso areal
desta praia do Atlântico, paisagem que tem atraído a pupila exigente dos pintores
desta cidade. “Uma claridade que cega”, evocando uma luz do máximo fulgor
remete-nos simultaneamente para um clarão que nos encandeia. E este jogo de
antíteses, esta dualidade que faz parte da vida, será uma constante ao longo
dos 58 vibrantes poemas que se desenham na tela desta artista, onde ganha
relevo a poesia do eu.
Uma característica dos livros desta escritora é
que os poemas que os constituem não possuem título, em meu entender para que
haja uma linha condutora a uni-los e cabe ao leitor estar atento para agarrar o
fio de Ariadne que nos conduz ao cerne das palavras. Foi com este intento que
me debrucei na análise destes belíssimos poemas que me emocionaram e
encantaram, para poder agarrar esse fio de subtil essência e partilhá-lo
convosco.
No poema de abertura a poetisa expõe o seu claro
propósito de artífice, que pretende moldar as palavras para que elas se ajustem
à claridade das duas vivências. “Quero descobrir, num vinco de texto
/ a caligrafia ajustada ao barro / que molde um favo de puríssima luz /
só visível em gramáticas de espanto”. E, humilde, inicia a labuta: “No
insondável lugar das encruzilhadas, traço os sons, acolho as formas, corrijo a
dicção” (poema 2, p. 28), procurando inspiração nos puros e inocentes
sonhos da infância que não quer ver consumidos: “Espreito pelos dedos a
memória / da mais longínqua infância” (poema 13, p. 19). Assume que a
tarefa não é fácil, pois na sua intenção de moldar a luz, também as sombras a
perseguem na noite da criação e a luz encontra o seu oposto numa cumplicidade
envolvente, como refere no terceiro poema, arrebatador: “São longos os dedos
/ que sulcam o rosto difuso das noites […] / Indiferente ao desígnio das sombras,
/ a luz insinua-se no lado misterioso / onde me encovo. A luz e o silêncio. /
Com artifícios insondáveis / e uma leve vigília / de dádiva ou de bênção”.
Por vezes a matéria-prima com que constrói a sua obra revela-se insuficiente,
gerando sentimentos de revolta e de luta, com alusões à inquietação do ofício
do poeta: “O verbo: clareira em cama de fenos ou ilha oculta de ocultos de
silêncios […] Como se o nervo do vento fustigasse a voz dos poetas esmagando a
rigidez dos sons… retenho nas arestas da página. O som do lápis, como um pião
rodopiando traços inseguros” (poema 37, p. 43). Sente-se a ânsia de um
constante aprimoramento. E a poetisa acredita no milagre da poesia como uma
libertação através da expressão da palavra, dando-lhe forma perfeita, com o
intuito de “moldar o favo de puríssima luz” que refere no primeiro
poema. Há sempre um desassossego, numa luta aguerrida para conseguir o seu
intento: “Às a grafia é escassa / no desadorno do poema. / Ponho no rebordo
dos dentes / uma ferocidade / que estremece qualquer culpa…” (poema 5) “Na
marginalidade do sossego/ reacendo o lume para que haja / colunas de fumo a
seduzir o vento. / E soletro a oração que transporta / de treva em treva uma
esquiva chama.” (poema 6).
O mar é a pedra de toque para reacender a chama
das recordações. Recordações que seduzem a autora e a fortalecem. Uma temática
que serviu de fundo aos poemas da sua obra anterior “Espaço livre com barcos”
também aqui presente em inúmeros poemas, construídos em vários cenários.
Destaco o poema 7 (p. 13) onde a poetisa convoca, enfaticamente, a força
telúrica do mar e a cadência da sua música, enraizando-a em seu sedutor corpo
de mulher. “Traço na areia uma linha em movimento de onda e rodo sobre mim
mesma / quando as marés me bailam nas ancas […] Vem, cadência da música!
Suspende o silêncio que me escorre / em pausas onduladas como
água. / Encena-me em rituais profanos. […] Vem e desliza inteira no êxtase da
luz”. O cromatismo dos cenários marítimos, o movimento, a expressividade do
jogo metafórico e a carga emotiva que nos toca fortemente, fazem de cada poema
uma realidade quase palpável, como se da cena de um filme se tratasse: “Sem
embaraço vou arrancar, com as unhas, os pregos do barco que inventei […]
Enconcho as mãos para transpor a maré / e o litoral devassado pelo lodo. /
Enrolo nos pulsos as redes de pesca / e todas as gaivotas me perseguem”.
(Poema 12, p. 18). Com o léxico do mar narra histórias que nos comovem: o navio
que não voltou, o arpão dos gemidos sangrando a boca das mulheres, a braveza
dos marinheiros, os meninos que sonham com piratas… O mar reinventado em cada
dia! Mas também a autora pesarosa, tece críticas ao seu país: “Lado a lado
com os poemas desenrolo / nas entrelinhas um glossário reticente / para dizer o
que dói neste país de mar […] onde lhe pesam no peito “o choro
silencioso das mães com a fome no colo”, lhe ferem na boca “os gritos
mudos em que se desfazem os sonhos adolescentes”, denunciando que “há
por todo o lado palcos improvisados onde, em bocas distorcidas, se anunciam
perigos e presságios, ameaças e avisos. E remata, acutilante: Este é um
país de sombras tão baldias / que magoa. (Poema 22, p. 28). E a autora
assume mesmo esta paixão pelo mar: “De página em página traço linhas de
tensão / e verbalizo a linguagem do mar, simultaneamente plural e única /
quando em golpes implacáveis. / fere os rochedos como quem rasga / o peito das
aves, ou respira sobre os barcos / um rumo de inclinação azul”. (poema 50,
p. 56).
Outra marca no fio dos
poemas é “a obsessão pelas trevas / o rigor das noites”, talvez porque
nesse ambiente poderá rever o passados com “os mais antigos olhos” e
constata que ele foi “tantas vezes vida” e “tantas vezes morte / trevas /
silêncios / fogo posto (poema 11, p, 17). Procura incessantemente as
memórias mais longínquas da infância, não só nos locais conhecidos, mas também
em cenários imaginados para que sejam “paisagem na lembrança. Aceita que o
olhar teça e desteça o contraste dos dias e situa-se “no centro do espaço onde
tudo começa e acaba” onde sente a união e a rutura. Esta dicotomia luz /
sombra; luz /silêncio; luz /trevas; vida / morte, vai-se reiterando ao longo da
obra, na busca de um horizonte solar. Por vexes a entrega é voluntária; “Desvinculo-me
de todos os enredos / para que a osmose das trevas e da luz / alcance o resgate
do corpo / que se retalha rocando o chão / e se dissipa em pleno voo”.
(poema 26). A sequência dos poemas marca também o passar dos anos…
“Inclino-me levemente sobre a nudeza devassada pelos anos. / Um rio suspende a
corrente em meus lábios / rodeados pelo rumor de tantas águas. (poema 25,
p. 31). E nessa viagem pelo trilho dos aventureiros, dos caminhantes, dos
fugitivos, na senda dos sonhos em que se procura, vive o deslumbramento.
Vencidos os muitos desafios, a sua voz vai-se sintonizando cada vez mais com a
luz redentora que neutraliza as sombras, que já não cega! “Quero que a
linguagem simbolize um templo de absolvição e reza nas palavras em fuga pelos
olhos” (poema 25, p. 31). E a chegada da primavera anuncia um tempo de
renovação, de uma espiritualidade redentora, em comunhão com a natureza alegre
e colorida, finalmente liberta de todas as trevas com que se debateu. “É
Primavera. As aves regressam em bandos” / e as crianças trazem no olhar uma cintilação
quase divina / e os descrentes procuram um deus / no claustro da morte”
(poema 30, p. 36); “Num recinto de cânticos mais discretos, / talvez haja um
eco de salmos entoados por nítidos anjos a devolver-me a respiração com que
celebro cada instante”. (poema 28, p. 34); O lilás claro das hortênsias
/ galgando a periferia dos jardins / espalha todos os aromas pela terra. /
Adorno com aves sagradas / o altar onde se mitigam as crenças”. (poema 42,
p. 48). E essa alegria reencontrada nas gradações da luz do dia, transforma-a
numa artífice discreta e hábil, como explica no poema dedicado ao poeta João
Rui de Sousa (poema 48, p. 54). A sua criação está quase concluída! “Sorvo
dentro da manhã, a brevidade de um silêncio sobrenatural. No ritual desse
instante / escorre-me pela cara / até à fonte mais remota, / onde a água tem o
sabor / do leite materno / em prematuras bocas”.
E o favo de puríssima
luz, cristalino e transparente foi finalmente consumado! A poetisa, gloriosa,
pinta a ouro o seu último poema! Vou
lê-lo na íntegra, rematando deste modo a minha apresentação:”. Com os lábios
ornados de cristal / quebro as razões mais sombrias / no dorso das
contradições. / Não me reconheço em jogos encenados. / Disperso as nuvens
carregadas / de abismo em duelo com a luz. / Projecto-me num diálogo / que
rasga uma outra voz de espanto. / E detenho, em mãos cegas, a sorte e o revés
da biografia que me identifica. / Sei que por dentro da dobra do passado /
corre o rio intocado dos meus sonhos.
Manuela Azevedo,
poeta
Apresentação do livro na
Figueira da Foz, Biblioteca Municipal, 21 março 2016