Uma vara
de medir o sol. São Paulo: Intermeios, 2012
Vila
Nova de Gaia, 13 abril 2012
Ao abrir esta manhã a sua
“Vara de medir o sol” que teve a gentileza de me enviar, sou agradavelmente
surpreendido com a epígrafe retirada do meu “Espaço partilhado”, ali estampada.
Começo, pois, por lhe
agradecer a escolha e, em seguida. Felicitá-la por mais esta prova de
maturidade da sua escrita. Há nestes versos, a meu ver, uma perfeita combinação
entre “o som e sentido”. Uma nuvem negra, de espécie felina paira por sobre as
páginas deste livro, e não é por acaso que a sua última palavra é morrer. Com
alguém disse, temos feito o nosso melhor para piorar o mundo. Ao poemas deste
livro, na sua semântica poética, são um grito de alarme. Pudessem os políticos
deste mundo ouvi-lo.
Parabéns, bem-haja e um
abraço amigo do
Albano Marins, escritor
Carta manuscrita
Um
livro por semana
Graça Pires (n.1946) estreou-se m 1990 com «Poemas» (Prémio Revelação A,P.E. 1988) sendo este “Uma vara de medir o sol o seu 13º título publicado. Os poemas deste volume situam-se entre a Natureza e a cultura. «Envelhecemos com uma vara / de medir o sol na linha do olhar. / Não entendemos os sinais inscritos / nas margens do abismo.»
O ponto de partida é um
regresso («Regressei com a lentidão de quem vem de longe / do mar com pedras na
boca para cuspir nos lugares / onde o vento envolve a gruta das nascentes.»)
mas o regresso é o tempo da infância: «Os rituais da infância não nos deixam
esquecer: / Era verde a sombra das árvores no pátio da escola. / Eram verdes os
trigais pejados de papoilas».
Esse era um tempo de
harmonia, um paraíso entretanto perdido: «Antes do homem havia a terra. / geografia
mágica, sagrada / que, na luz e na treva, explodiu / de espanto e guardou
milenarmente / os mistérios da vida e da morte. / Depois da terra veio o homem.
/ E o homem tornou-se um morador incauto / e perdeu o paraíso onde agora os
deuses / quando passam, desviam o olhar.»
No mundo onde as aves
procuram lugares para morrer, só o Amor pode responder à Morte: «Vem, meu amor.
/ Não tarda aí o fim do dia / e ainda não plantámos as avencas / junto do
ribeiro para que o rosto / da terra resplandeça nos prados. / Repara: já há
amoras no muro de pedra / onde prendemos as raízes da sede.»
José do Carmo Francisco,
poeta
Blogue “Aspirina B”, 15
abril 2012
A
magia poética do livro “Uma vara de medir o sol” é produzida com a
matéria-prima do silenciar e das lembranças. Em sua décima terceira obra a
poetisa portuguesa compõe seus versos entre as fronteiras da vida natural e da
elaboração cultural. Nela o espaço da saída é também o da volta, que por sua
vez é a instância da infância; em seus ritos é impossível perder o fio das
memórias.
“Envelhecemos com uma vara
/ de medir o sol na linha do olhar. / Não entendemos os sinais inscritos / nas
margens do abismo”.
Pois esse era o momento de
concórdia, o éden longínquo, a era mítica que não mais retorna, já que
destruída pela ação humana. Daí a sensação do leitor, ao se deparar com estes
poemas, de estar diante do inventário de tudo que se ama e pelo que se padece.
Neles também se plasma a angústia de todos que olham à sua volta com surpresa e
admiração, sempre sob o ponto de vista de uma revelação mais consciente.
“Os rituais da infância não
nos deixam esquecer. / Era verde a sombra das árvores no pátio da escola. /
Eram verdes os trigais pejados de papoilas”.
Nos versos de Graça há a
impressão de que a constante iminência do despenhadeiro pode intensificar
nossos temores. Afinal, vivemos na mesma esfera onde se abrigam presságios e
aflições primitivas. Em sua poética o ser se esforça para se aproximar de um
mundo no qual se infiltram raios de alvoradas de outrora e de cada puro
amanhecer do porvir.
Neste imaginário criado
pela autora as divindades rejeitam o mundo desvirtuado pelo Homem, e cruzam
este espaço sem lançar seus olhos sobre ele. Nele os pássaros buscam um espaço
para morrer. Somente o Amor tem poder para argumentar com a Morte, esta esfera
na qual o ser se enraizou sedento deste sentimento.
A publicação deste livro da
famosa poeta portuguesa é a primeira chance do leitor brasileiro se tornar
íntimo do seu processo de criação. Graça Pires teve a sua estreia literária em
1990 com o livro Poemas, que conquistou em 1988 O Prémio Revelação da
Associação Portuguesa de Escritores. O leitor terá diante de si uma teia de
sentimentos entretecidos por símbolos que têm o poder de nos surpreender, tal a
familiaridade que a escritora preserva com estas metáforas.
Graça Pires nasceu na
cidade da Figueira da Foz, distrito de Coimbra, em Portugal, no dia 22 de
novembro de 1946. A poetisa obteve a licenciatura em História pela Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa.
Ana Lúcia Santana
“InfoEscola”, 05 julho 2013
UMA
VARA DE MEDIR O SOL: CANÇÃO DE ALERTA AO HOMEM
Despertar
sentidos no leitor é uma das belas especificidades, no manejo do verso, da
poeta Graça Pires. A cada novo livro, sua forma peculiar de escrita referenda
temas relevantes, nos quais estão refletidos a sua visão de mundo, os
conflitos, os sonhos, as apreensões dos sentimentos humanos. Uma vara de medir o sol, primeiro livro
editado no Brasil (Intermeios – Coleção Margens) é uma canção de alerta ao
homem do século XXI, convocando-o a reavaliar as suas ações diante de um tempo
de severas transformações a nível, social, econômico, cultural e,
principalmente, ambiental.
O
tato sutil de Graça, ao lidar com os grandes temas que norteiam a vida e o
universo, compõe uma melodia, cujos acordes vibram nossos sentidos, permitindo,
assim, que o leitor absorva com requintes e minucias o lamento da terra, da
água, dos pássaros, dos peixes, das flores (Depois
da terra veio o homem. /E o homem tornou-se um morador incauto/e perdeu o
paraíso onde agora os deuses/quando passam desviam o olhar). Permite-lhe
vislumbrar o desenlace de uma batalha há muito iniciada: homem versus sobrevivência no Planeta Azul.
Numa
reflexão sobre o que a poesia representa da antiguidade aos dia atuais,
rememorando suas formas primitivas, verifica-se que ela manteve-se viva não
apenas como escrita poética, mas desempenhando múltiplos papéis dentro de uma
coletividade. Foi e ainda é usada nos rituais religiosos; serviu para manter
viva a história de povos, quando não havia o registro da escrita; o drama grego
se desenvolveu a partir dos ritos religiosos e só com o correr do tempo
adquiriu estruturas particulares e próprias. Virgílio utilizou-se da poesia
para dar informações precisas sobre a agricultura; os romanos escreveram
tratados astronômicos e cosmológicos em versos.
Nessa
longa trajetória, a poesia exerceu e continua desempenhando funções diversas.
Ela é uma chama que aguça, que retém a imagem real, selvagem do tempo, mas,
também resguarda, em sua essência, os ideais, os sentimentos, as conquistas, os
desalentos do ser e do estar no aqui e agora. Em Uma vara de medir o sol, a poeta da Figueira da Foz mantém a tradição
viva ao realizar o intercâmbio entre a palavra (poesia) e a sociedade,
estabelecendo com o leitor uma cumplicidade.
Semelhante a sabedoria dos ancestrais sensíveis aos sinais da mãe
natureza, submissos à prosperidade, respeitando a seiva viva a manter os homens
e seus sonhos Graça, com vigor de consciência, conjuga sua angústia diante de
um universo em decomposição.
Cleri
Aparecida Biotto Bucioli, poeta
Brasil/agosto/2012
Ortografia de um olhar em plenitude, a poesia de Graça Pires
Os leitores brasileiros têm, desde 2012, a oportunidade de conhecer a
poesia da escritora portuguesa Graça Pires. A autora de Ortografia do olhar
publicou, no Brasil, onde até então era inédita, o seu mais recente livro Uma
vara de medir o sol pela editora Intermeios de São Paulo.
Ao longo de vinte anos de produção poética, Graça Pires vem erigindo, com a
descrição dos verdadeiros artífices, dos que sabem que o sucesso literário nem
sempre é sinônimo de verdadeira literatura, uma obra coesa, contundente, na
qual podemos vislumbrar poemas de perfeito acabamento formal, dignos de figurar
em qualquer antologia de respeito.
A poeta descende da linhagem dos grandes líricos, dos escritores videntes,
inspirados, para os quais a palavra é sagração da existência, ato demiúrgico a
fundar um mundo perenemente inaugural, pátria germinada pelos devaneios,
incendiada pelos sonhos. Nessa obra de delicadezas raras, o poema torna-se
matéria de encantação, espelho por onde o universo fenomênico, prosaico, ganha amplitude
e êxtase. Pela palavra de Graça Pires o mundo se intensifica, abre-se em
fecundidade; as coisas resgatam sua aura feérica, sacra; o homem encontra sua
condição de ser transcendente, irmanado às fontes genesíacas da natureza, às
pulsões cósmicas do corpo.
Como sabemos, do início do século XX aos nossos dias, pudemos observar, na
literatura portuguesa, a gestação de um período prodigioso, fértil, em que se
sobressaltaram nomes de grande proeza. No campo poético, a tradição do lirismo
adensou suas forças. Observamos com assombro o advento de uma poesia que,
quanto mais lírica, quanto mais arraigada às fontes do ser, mais se tornou
lucífera, extática, legando-nos poemas de grande amplitude estética. Já
afirmava Novalis: “O poético é o autêntico real absoluto e quanto mais poético
tanto mais verdadeiro”. Nesse aspecto, a lírica de Graça germinou dessa
tradição de grande húmus lírico: José Agostinho Baptista, Sophia de Mello
BreynerAndresen, Ruy Belo, Al Berto, Nuno Júdice. Entretanto, dentre todas as
suas leituras, a escritora soube captar, de fato, com maestria, com sapiência,
a leveza do traçado de Eugénio de Andrade, grande poeta de nossa língua
portuguesa.
O escritor verdadeiramente criativo é aquele que sabe fecundar-se na
tradição e extrair dessa a sabedoria de um lirismo inaugural, obra que se torna
singular justamente por ter sido gestada pelo encontro com o outro. Essa é a
situação existencial de Graça Pires. A poeta sorveu o que havia de melhor na
tradição lírica de seu país e, por isso, tornou-se dona de sua própria voz,
legando-nos uma obra sutilíssima, de grande comoção poética, pela qual a
palavra atinge agudeza lírica, estertor de uma beleza em febre. Em verdadeiras
partituras musicais, de traçados melódicos sutis, a escritura de Graça desvela
o mundo como irresistível epifania, paixão pela condição humana no que ela tem
de terrível e magnânimo.
Graça, assim, desde seu livro de estreia, modulou uma dicção poética ímpar,
fiel à sua voz, palavra que, ao ser sempre idêntica a si mesma em cada livro,
desvela, paradoxalmente, uma novidade irrepetível, como se seu primeiro texto
ecoasse, eternamente, com face sempre renovada nos demais poemas de sua obra.
Esse é o húmus ontológico pelo qual se move um poeta: ser em autenticidade,
desvelar sua face primeva, arquetípica.
Em consequência disso, Graça modulou um leque pequeno de temas que, para
nosso assombro, são sempre retomados como se fossem tratados pela primeira vez.
Desses destacam-se alguns: a busca da infância perdida, o erotismo, a solidão,
a celebração do encontro, a exaltação da natureza.
A busca pelo tempo perdido é signo de uma nostalgia encantada, fascinada
pelas coisas do universo. O olhar do poeta é aquele que jamais perde a
amplitude da infância, a raridade do êxtase, da jubilação dos primórdios da
vida. Para tanto, o poeta vive em estado de alumbramento, enraizado no devaneio
lírico. Como afirma o filósofo Gaston Bachelard, em A poética do devaneio (ed.
Martins Fontes), a criança sente-se “filha do cosmos”. Para o autor francês, a
cosmicidade, assim, é despertada naquele que se entrega aos devaneios do poeta:
“Sem infância não há verdadeira cosmicidade. Sem canto cósmico não há poesia. O
poeta desperta em nós a cosmicidade da infância”. É dessa celebração do cosmos
que Graça extrai seus idílios paradisíacos:
“Encosto a cara às
quimeras da infância, para exorcizar
a inocência
perdida e rodopiar, sobre os sonhos, a valsa
solitária da
criança que fui, quando as minhas mãos, nativas
do sol, eram aves
de múltiplas cores.”
A memória paradisíaca transfunde o corpo no cosmos (mãos = aves), quebrando
a cisão entre sujeito e objeto. O universo palpita no sangue do eu lírico e o
pulsar humano torna-se o grande fluxo das galáxias, dos cometas, das enchentes
e procelas. O universo revela-se com toda vastidão e encantamento para aqueles
que o contemplam com olhos ingênuos, puros, libertos das amarras e limitações
que a sociedade impõe entre o homem e o mundo. Essa pureza da percepção visual,
por sua vez, relaciona-se com o olhar que o homem arcaico estende sobre o
universo, um olhar que busca sempre o momento primevo, as fontes de tudo o que
existe. De acordo com o Mírcea Eliade, em Mito e realidade (ed. Perspectiva),
conhecer “os mitos é aprender o segredo da origem das coisas”. Dessa forma, o
lirismo de Graça é mítico, pois coliga-se às fontes primeiras da existência.
Por outro lado, com grande sensibilidade, essa consubstanciação entre corpo
e cosmos motiva poemas em que o erotismo surge como força vital capaz de
ordenar o caos da dor e da morte. Eros irrompe, na lírica da poeta portuguesa,
como energia telúrica, arrebatamento místico, resgate da sacralidade do amor.
Poderíamos afirmar que Graça Pires é exímia poeta do corpo. Em sua obra,
através de imagens de grande beleza, o corpo baila enamorado, movido pelos
fascínios do outro:
“No verão, os
mastros têm o brilho
intenso do sal e
da água.
E são como as tuas
mãos :
levemente
inquietas,
levemente acesas,
levemente
inocentes.
Não sei o que
procuro nos teus olhos.
Talvez uma
pretérita adolescência.
Ou um mar.
Ou um barco feito
às ondas.
O que digo pode
parecer paradoxal.
Encostada ao
passado,
o coração
tornou-se-me tão frágil
e, simultaneamente
tão cruel.
Mas os teus olhos,
os teus olhos
perpetuam nos meus
a claridade das
manhãs,
a chegada dos
pássaros
e este estranho
fascínio de te amar.”
Um intenso desejo manifesta-se no mundo e pelo mundo. Trata-se de um desejo
cósmico, um desejo que se reflete no universo, configurando a beleza total. O
erotismo transforma-se na encarnação da própria poesia, poema que se faz corpo
e sangue, poema que se concretizou em carne e desejo. Octavio Paz reflete sobre
a íntima relação entre o erotismo e a poesia, no seu clássico A dupla chama
(ed. Siciliano): “A relação entre erotismo e poesia é tal que se pode dizer,
sem afetação, que o primeiro é uma poética corporal e a segunda uma erótica
verbal.”
Quando a comunhão com o outro finda-se, abre-se a ausência e, com isso, a
desordem do ser e também da natureza: “Rasgo, nos pulsos, a veia onde guardei/
o primeiro sinal da tua ausência./ Esvaio-me em sangue, ou em raiva,/ como se a
morte fosse o único modo/ de resgatar os sentimentos/ pelo percurso do coração”
. Desse caos irão nascer as imagens de automutilação, pelas quais a poeta
comunga o caráter dionisíaco da paixão. Entretanto, ao nos revelar a dor, o
sofrimento, a poeta, com sua palavra de sopros e levezas, mostra-nos também o
sortilégio da poesia: a palavra lírica leva-nos à dor, mas a uma dor em estado
de encantamento, de gratidão pelo dom da vida. A poesia intensifica todas as
nossas sensações, a nossa sensibilidade ante o mundo, a tal ponto, que o real
nos arde, nos dardeja, nos fere. Todavia, tal sofrimento vem sempre embalado
pelo bálsamo da palavra poética, cântico a transmutar a cicatriz em bailado, em
voo.
Em momentos de plenitude, porém, a exaltação de Eros e do amor desvela
momentos de carpe diem, em que o tema do locusamoenus é retomado, em sensíveis
imagens do amor e da natura:
“O alecrim
incendiou-se de aromas
nas vertentes da
serra
e contagiou a
giesta, o mirto, o rosmaninho.
Aderiu à pele dos
que traziam no corpo
a violência do
fogo.
Se mais desordem
houvera,
mais desenfreado
se tornaria
o cavalo alado
galopando prazeres.
Como dizer o rio
que não coube
no êxtase de ser
apenas água,
mas uma torrente
imensa
a rebentar nos
poros dos amantes?”
A poeta faz da palavra, para lembrar Rimbaud, uma alquimia, uma tessitura
repleta de imagens de grande inventividade e beleza.
Portanto, para Graça Pires, a poesia é uma verdadeira entrega, irrestrita,
à vida, no que ela tem de magnífica e terrível, de sublime e sofrida. A poesia
é feita das veias da existência, dessa condição humana misteriosa, limitada,
mas ao mesmo tempo pródiga, pois é o verdadeiro terreno da paixão. Aliás, se há
uma palavra que poderia designar, com precisão, a sua escrita, essa palavra é
justamente paixão. Paixão pelo amado, pela contemplação do pequeno e infinito
cotidiano, com seus pássaros, barcos, estevas e árvores; paixão pelo mistério
da noite, pelo silêncio vivo do que é sagrado e pleno; paixão pela memória,
pela infância sempre a latejar e a pulsar o fio de suas palavras.
Pela ortografia desse olhar apaixonado, encontramos, enfim, nosso rosto, o
verdadeiro rosto da poesia.
(Alexandre
Bonafim, professor de literaturas de língua portuguesa da UEG de Morrinhos; e-mail:
alexandrebonafim@hotmail.com)
“Diário da Manhã”
(Brasil) agosto 2012