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domingo, 15 de maio de 2022

UMA VARA DE MEDIR O SOL

 



Uma vara de medir o sol. São Paulo: Intermeios, 2012



Vila Nova de Gaia, 13 abril 2012

 Cara Amiga Graça Pires:

 

Ao abrir esta manhã a sua “Vara de medir o sol” que teve a gentileza de me enviar, sou agradavelmente surpreendido com a epígrafe retirada do meu “Espaço partilhado”, ali estampada.

Começo, pois, por lhe agradecer a escolha e, em seguida. Felicitá-la por mais esta prova de maturidade da sua escrita. Há nestes versos, a meu ver, uma perfeita combinação entre “o som e sentido”. Uma nuvem negra, de espécie felina paira por sobre as páginas deste livro, e não é por acaso que a sua última palavra é morrer. Com alguém disse, temos feito o nosso melhor para piorar o mundo. Ao poemas deste livro, na sua semântica poética, são um grito de alarme. Pudessem os políticos deste mundo ouvi-lo.

Parabéns, bem-haja e um abraço amigo do

 

Albano Marins, escritor

Carta manuscrita






Um livro por semana

 Graça Pires (n.1946) estreou-se m 1990 com «Poemas» (Prémio Revelação A,P.E. 1988) sendo este “Uma vara de medir o sol o seu 13º título publicado. Os poemas deste volume situam-se entre a Natureza e a cultura. «Envelhecemos com uma vara / de medir o sol na linha do olhar. / Não entendemos os sinais inscritos / nas margens do abismo.»

O ponto de partida é um regresso («Regressei com a lentidão de quem vem de longe / do mar com pedras na boca para cuspir nos lugares / onde o vento envolve a gruta das nascentes.») mas o regresso é o tempo da infância: «Os rituais da infância não nos deixam esquecer: / Era verde a sombra das árvores no pátio da escola. / Eram verdes os trigais pejados de papoilas».

Esse era um tempo de harmonia, um paraíso entretanto perdido: «Antes do homem havia a terra. / geografia mágica, sagrada / que, na luz e na treva, explodiu / de espanto e guardou milenarmente / os mistérios da vida e da morte. / Depois da terra veio o homem. / E o homem tornou-se um morador incauto / e perdeu o paraíso onde agora os deuses / quando passam, desviam o olhar.»

No mundo onde as aves procuram lugares para morrer, só o Amor pode responder à Morte: «Vem, meu amor. / Não tarda aí o fim do dia / e ainda não plantámos as avencas / junto do ribeiro para que o rosto / da terra resplandeça nos prados. / Repara: já há amoras no muro de pedra / onde prendemos as raízes da sede.»

 

José do Carmo Francisco, poeta

Blogue “Aspirina B”, 15 abril 2012






A magia poética do livro “Uma vara de medir o sol” é produzida com a matéria-prima do silenciar e das lembranças. Em sua décima terceira obra a poetisa portuguesa compõe seus versos entre as fronteiras da vida natural e da elaboração cultural. Nela o espaço da saída é também o da volta, que por sua vez é a instância da infância; em seus ritos é impossível perder o fio das memórias.

“Envelhecemos com uma vara / de medir o sol na linha do olhar. / Não entendemos os sinais inscritos / nas margens do abismo”.

Pois esse era o momento de concórdia, o éden longínquo, a era mítica que não mais retorna, já que destruída pela ação humana. Daí a sensação do leitor, ao se deparar com estes poemas, de estar diante do inventário de tudo que se ama e pelo que se padece. Neles também se plasma a angústia de todos que olham à sua volta com surpresa e admiração, sempre sob o ponto de vista de uma revelação mais consciente.

“Os rituais da infância não nos deixam esquecer. / Era verde a sombra das árvores no pátio da escola. / Eram verdes os trigais pejados de papoilas”.

Nos versos de Graça há a impressão de que a constante iminência do despenhadeiro pode intensificar nossos temores. Afinal, vivemos na mesma esfera onde se abrigam presságios e aflições primitivas. Em sua poética o ser se esforça para se aproximar de um mundo no qual se infiltram raios de alvoradas de outrora e de cada puro amanhecer do porvir.

Neste imaginário criado pela autora as divindades rejeitam o mundo desvirtuado pelo Homem, e cruzam este espaço sem lançar seus olhos sobre ele. Nele os pássaros buscam um espaço para morrer. Somente o Amor tem poder para argumentar com a Morte, esta esfera na qual o ser se enraizou sedento deste sentimento.

A publicação deste livro da famosa poeta portuguesa é a primeira chance do leitor brasileiro se tornar íntimo do seu processo de criação. Graça Pires teve a sua estreia literária em 1990 com o livro Poemas, que conquistou em 1988 O Prémio Revelação da Associação Portuguesa de Escritores. O leitor terá diante de si uma teia de sentimentos entretecidos por símbolos que têm o poder de nos surpreender, tal a familiaridade que a escritora preserva com estas metáforas.

Graça Pires nasceu na cidade da Figueira da Foz, distrito de Coimbra, em Portugal, no dia 22 de novembro de 1946. A poetisa obteve a licenciatura em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.


Ana Lúcia Santana

“InfoEscola”, 05 julho 2013






UMA VARA DE MEDIR O SOL: CANÇÃO DE ALERTA AO HOMEM

Despertar sentidos no leitor é uma das belas especificidades, no manejo do verso, da poeta Graça Pires. A cada novo livro, sua forma peculiar de escrita referenda temas relevantes, nos quais estão refletidos a sua visão de mundo, os conflitos, os sonhos, as apreensões dos sentimentos humanos. Uma vara de medir o sol, primeiro livro editado no Brasil (Intermeios – Coleção Margens) é uma canção de alerta ao homem do século XXI, convocando-o a reavaliar as suas ações diante de um tempo de severas transformações a nível, social, econômico, cultural e, principalmente, ambiental.

No entanto, engana-se o leitor que pensa encontrar nas páginas do livro soluções para temas tão relevantes. Encontrará, sim, inquietações, murmúrios lancinantes de um Eu que sente nas veias as mazelas a sangrar o berço, o paraíso, espaço antes sagrado e venerado pelo homem (Antes do homem havia a terra:/geografia mágica, sagrada/que, na luz e na treva, explodiu/de espanto e guardou, milenarmente, /os mistérios da vida e da morte.)

O tato sutil de Graça, ao lidar com os grandes temas que norteiam a vida e o universo, compõe uma melodia, cujos acordes vibram nossos sentidos, permitindo, assim, que o leitor absorva com requintes e minucias o lamento da terra, da água, dos pássaros, dos peixes, das flores (Depois da terra veio o homem. /E o homem tornou-se um morador incauto/e perdeu o paraíso onde agora os deuses/quando passam desviam o olhar). Permite-lhe vislumbrar o desenlace de uma batalha há muito iniciada: homem versus sobrevivência no Planeta Azul.

Numa reflexão sobre o que a poesia representa da antiguidade aos dia atuais, rememorando suas formas primitivas, verifica-se que ela manteve-se viva não apenas como escrita poética, mas desempenhando múltiplos papéis dentro de uma coletividade. Foi e ainda é usada nos rituais religiosos; serviu para manter viva a história de povos, quando não havia o registro da escrita; o drama grego se desenvolveu a partir dos ritos religiosos e só com o correr do tempo adquiriu estruturas particulares e próprias. Virgílio utilizou-se da poesia para dar informações precisas sobre a agricultura; os romanos escreveram tratados astronômicos e cosmológicos em versos.

Nessa longa trajetória, a poesia exerceu e continua desempenhando funções diversas. Ela é uma chama que aguça, que retém a imagem real, selvagem do tempo, mas, também resguarda, em sua essência, os ideais, os sentimentos, as conquistas, os desalentos do ser e do estar no aqui e agora. Em Uma vara de medir o sol, a poeta da Figueira da Foz mantém a tradição viva ao realizar o intercâmbio entre a palavra (poesia) e a sociedade, estabelecendo com o leitor uma cumplicidade.  Semelhante a sabedoria dos ancestrais sensíveis aos sinais da mãe natureza, submissos à prosperidade, respeitando a seiva viva a manter os homens e seus sonhos Graça, com vigor de consciência, conjuga sua angústia diante de um universo em decomposição.

Cleri Aparecida Biotto Bucioli, poeta

Brasil/agosto/2012





Ortografia de um olhar em plenitude, a poesia de Graça Pires

 

Os leitores brasileiros têm, desde 2012, a oportunidade de conhecer a poesia da escritora portuguesa Graça Pires. A autora de Ortografia do olhar publicou, no Brasil, onde até então era inédita, o seu mais recente livro Uma vara de medir o sol pela editora Intermeios de São Paulo.

Ao longo de vinte anos de produção poética, Graça Pires vem erigindo, com a descrição dos verdadeiros artífices, dos que sabem que o sucesso literário nem sempre é sinônimo de verdadeira literatura, uma obra coesa, contundente, na qual podemos vislumbrar poemas de perfeito acabamento formal, dignos de figurar em qualquer antologia de respeito. 

A poeta descende da linhagem dos grandes líricos, dos escritores videntes, inspirados, para os quais a palavra é sagração da existência, ato demiúrgico a fundar um mundo perenemente inaugural, pátria germinada pelos devaneios, incendiada pelos sonhos. Nessa obra de delicadezas raras, o poema torna-se matéria de encantação, espelho por onde o universo fenomênico, prosaico, ganha amplitude e êxtase. Pela palavra de Graça Pires o mundo se intensifica, abre-se em fecundidade; as coisas resgatam sua aura feérica, sacra; o homem encontra sua condição de ser transcendente, irmanado às fontes genesíacas da natureza, às pulsões cósmicas do corpo.

Como sabemos, do início do século XX aos nossos dias, pudemos observar, na literatura portuguesa, a gestação de um período prodigioso, fértil, em que se sobressaltaram nomes de grande proeza. No campo poético, a tradição do lirismo adensou suas forças. Observamos com assombro o advento de uma poesia que, quanto mais lírica, quanto mais arraigada às fontes do ser, mais se tornou lucífera, extática, legando-nos poemas de grande amplitude estética. Já afirmava Novalis: “O poético é o autêntico real absoluto e quanto mais poético tanto mais verdadeiro”. Nesse aspecto, a lírica de Graça germinou dessa tradição de grande húmus lírico: José Agostinho Baptista, Sophia de Mello BreynerAndresen, Ruy Belo, Al Berto, Nuno Júdice. Entretanto, dentre todas as suas leituras, a escritora soube captar, de fato, com maestria, com sapiência, a leveza do traçado de Eugénio de Andrade, grande poeta de nossa língua portuguesa. 

O escritor verdadeiramente criativo é aquele que sabe fecundar-se na tradição e extrair dessa a sabedoria de um lirismo inaugural, obra que se torna singular justamente por ter sido gestada pelo encontro com o outro. Essa é a situação existencial de Graça Pires. A poeta sorveu o que havia de melhor na tradição lírica de seu país e, por isso, tornou-se dona de sua própria voz, legando-nos uma obra sutilíssima, de grande comoção poética, pela qual a palavra atinge agudeza lírica, estertor de uma beleza em febre. Em verdadeiras partituras musicais, de traçados melódicos sutis, a escritura de Graça desvela o mundo como irresistível epifania, paixão pela condição humana no que ela tem de terrível e magnânimo.

Graça, assim, desde seu livro de estreia, modulou uma dicção poética ímpar, fiel à sua voz, palavra que, ao ser sempre idêntica a si mesma em cada livro, desvela, paradoxalmente, uma novidade irrepetível, como se seu primeiro texto ecoasse, eternamente, com face sempre renovada nos demais poemas de sua obra. Esse é o húmus ontológico pelo qual se move um poeta: ser em autenticidade, desvelar sua face primeva, arquetípica. 

Em consequência disso, Graça modulou um leque pequeno de temas que, para nosso assombro, são sempre retomados como se fossem tratados pela primeira vez. Desses destacam-se alguns: a busca da infância perdida, o erotismo, a solidão, a celebração do encontro, a exaltação da natureza.

A busca pelo tempo perdido é signo de uma nostalgia encantada, fascinada pelas coisas do universo. O olhar do poeta é aquele que jamais perde a amplitude da infância, a raridade do êxtase, da jubilação dos primórdios da vida. Para tanto, o poeta vive em estado de alumbramento, enraizado no devaneio lírico. Como afirma o filósofo Gaston Bachelard, em A poética do devaneio (ed. Martins Fontes), a criança sente-se “filha do cosmos”. Para o autor francês, a cosmicidade, assim, é despertada naquele que se entrega aos devaneios do poeta: “Sem infância não há verdadeira cosmicidade. Sem canto cósmico não há poesia. O poeta desperta em nós a cosmicidade da infância”. É dessa celebração do cosmos que Graça extrai seus idílios paradisíacos: 

“Encosto a cara às quimeras da infância, para exorcizar

a inocência  perdida e rodopiar, sobre os sonhos, a valsa

solitária da criança que fui, quando as minhas mãos, nativas 

do sol, eram aves de múltiplas cores.”

A memória paradisíaca transfunde o corpo no cosmos (mãos = aves), quebrando a cisão entre sujeito e objeto. O universo palpita no sangue do eu lírico e o pulsar humano torna-se o grande fluxo das galáxias, dos cometas, das enchentes e procelas. O universo revela-se com toda vastidão e encantamento para aqueles que o contemplam com olhos ingênuos, puros, libertos das amarras e limitações que a sociedade impõe entre o homem e o mundo. Essa pureza da percepção visual, por sua vez, relaciona-se com o olhar que o homem arcaico estende sobre o universo, um olhar que busca sempre o momento primevo, as fontes de tudo o que existe. De acordo com o Mírcea Eliade, em Mito e realidade (ed. Perspectiva), conhecer “os mitos é aprender o segredo da origem das coisas”. Dessa forma, o lirismo de Graça é mítico, pois coliga-se às fontes primeiras da existência.

Por outro lado, com grande sensibilidade, essa consubstanciação entre corpo e cosmos motiva poemas em que o erotismo surge como força vital capaz de ordenar o caos da dor e da morte. Eros irrompe, na lírica da poeta portuguesa, como energia telúrica, arrebatamento místico, resgate da sacralidade do amor. Poderíamos afirmar que Graça Pires é exímia poeta do corpo. Em sua obra, através de imagens de grande beleza, o corpo baila enamorado, movido pelos fascínios do outro: 

“No verão, os mastros têm o brilho

intenso do sal e da água.

E são como as tuas mãos :

levemente inquietas,

levemente acesas,

levemente inocentes.

Não sei o que procuro nos teus olhos.

Talvez uma pretérita adolescência. 

Ou um mar.

Ou um barco feito às ondas.

O que digo pode parecer paradoxal.

Encostada ao passado,

o coração tornou-se-me tão frágil

e, simultaneamente tão cruel.

Mas os teus olhos,

os teus olhos perpetuam nos meus

a claridade das manhãs,

a chegada dos pássaros

e este estranho fascínio de te amar.”

Um intenso desejo manifesta-se no mundo e pelo mundo. Trata-se de um desejo cósmico, um desejo que se reflete no universo, configurando a beleza total. O erotismo transforma-se na encarnação da própria poesia, poema que se faz corpo e sangue, poema que se concretizou em carne e desejo. Octavio Paz reflete sobre a íntima relação entre o erotismo e a poesia, no seu clássico A dupla chama (ed. Siciliano): “A relação entre erotismo e poesia é tal que se pode dizer, sem afetação, que o primeiro é uma poética corporal e a segunda uma erótica verbal.”

Quando a comunhão com o outro finda-se, abre-se a ausência e, com isso, a desordem do ser e também da natureza: “Rasgo, nos pulsos, a veia onde guardei/ o primeiro sinal da tua ausência./ Esvaio-me em sangue, ou em raiva,/ como se a morte fosse o único modo/ de resgatar os sentimentos/ pelo percurso do coração” . Desse caos irão nascer as imagens de automutilação, pelas quais a poeta comunga o caráter dionisíaco da paixão. Entretanto, ao nos revelar a dor, o sofrimento, a poeta, com sua palavra de sopros e levezas, mostra-nos também o sortilégio da poesia: a palavra lírica leva-nos à dor, mas a uma dor em estado de encantamento, de gratidão pelo dom da vida. A poesia intensifica todas as nossas sensações, a nossa sensibilidade ante o mundo, a tal ponto, que o real nos arde, nos dardeja, nos fere. Todavia, tal sofrimento vem sempre embalado pelo bálsamo da palavra poética, cântico a transmutar a cicatriz em bailado, em voo.

Em momentos de plenitude, porém, a exaltação de Eros e do amor desvela momentos de carpe diem, em que o tema do locusamoenus é retomado, em sensíveis imagens do amor e da natura:

“O alecrim incendiou-se de aromas

nas vertentes da serra

e contagiou a giesta, o mirto, o rosmaninho.

Aderiu à pele dos que traziam no corpo

a violência do fogo.

Se mais desordem houvera,

mais desenfreado se tornaria

o cavalo alado galopando prazeres.

Como dizer o rio que não coube 

no êxtase de ser apenas água,

mas uma torrente imensa

a rebentar nos poros dos amantes?”

A poeta faz da palavra, para lembrar Rimbaud, uma alquimia, uma tessitura repleta de imagens de grande inventividade e beleza.

Portanto, para Graça Pires, a poesia é uma verdadeira entrega, irrestrita, à vida, no que ela tem de magnífica e terrível, de sublime e sofrida. A poesia é feita das veias da existência, dessa condição humana misteriosa, limitada, mas ao mesmo tempo pródiga, pois é o verdadeiro terreno da paixão. Aliás, se há uma palavra que poderia designar, com precisão, a sua escrita, essa palavra é justamente paixão. Paixão pelo amado, pela contemplação do pequeno e infinito cotidiano, com seus pássaros, barcos, estevas e árvores; paixão pelo mistério da noite, pelo silêncio vivo do que é sagrado e pleno; paixão pela memória, pela infância sempre a latejar e a pulsar o fio de suas palavras.

Pela ortografia desse olhar apaixonado, encontramos, enfim, nosso rosto, o verdadeiro rosto da poesia.

(Alexandre Bonafim, professor de literaturas de língua portuguesa da UEG de Morrinhos; e-mail: alexandrebonafim@hotmail.com)

“Diário da Manhã” (Brasil) agosto 2012