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quinta-feira, 14 de abril de 2022

NÃO SABIA QUE A NOITE PODIA INCENDIAR-SE NOS MEUS OLHOS

 


Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos.
Edição de autor, 2007


Graça, pediste-me para dar uma opinião sobre o teu livro, embora sabendo ambos que essa minha opinião vale o que vale, isto é, nada, em termos de eco na praça pública. A tua voz é como bem sabes, uma voz consolidada, que fala ao invés do hábito, creio mesmo que se lhe pode aplicar o que o Henrique uma vez escreveu acerca da minha: “uma poesia completamente indiferente a supostos cânones, indefinidas modas, ou, se quisermos, tendências estáticas de circunstância”. É evidente que sou suspeito: gosto das vozes que não cantam em coro! As onze cartas, para além de mensagens de Marta a Maria, li-as sobretudo como emanações de uma profunda cisão de um eu existencial: uma mulher mergulhada no mundo de acção que cai na “súbita armadilha” de um olhar. A partir daí a sua sede mistura-se com “uma melancolia que lhe enche o silêncio dos dias”. Marta não sabia “distinguir o lado prático da vida do lado das emoções”, soube depois quando O viu e ouviu e a partir desse momento “não pode mais recuperar a inocência”; a partir desse momento envolveu-se ainda mais nos seus afazeres para fugir à dor. Ela é, para Marta, como em todo o lirismo antigo e contemporâneo, sinal do inatingível. As cartas dela, as palavras, são para ela o resultado de vários processos: escreve “confusamente” para tentar dizer e para que a memória se reforce com o qual não consegue expressar plenamente; escreve para se salvar, já que são palavras leves e redentoras onde se adivinha a presença do Amado; escreve para cimentar um processo de auto-conhecimento. “Mais tarde folhearei estas cartas e lembrar-me-ei que sou” (ver carta 9 e carta 5); escreve para fugir à idade” enquanto escrevo esta carta reparo que esqueci a minha idade” (carta 10), para fugir à dor e à loucura “hoje tenho um campo de papoilas a tingir-me o corpo, talvez tenha endoidecido ou, talvez, tenha começado a morrer.” (carta 5), “a solidão é traiçoeira como o mar quando vem numa hora atormentada.” (carta 9). Para além desta multiplicidade de funções das Palavras elas também curam, trazem-nos a ressurreição. Embora Lázaro nunca seja referido na carta 11, penso que propositadamente, pois visa-se uma generalização onde o Tu se transmuta num nós. Tudo isto, depreende-se, já Maria havia vislumbrado, Marta só tardiamente o apreendeu, por isso pagou o preço extremo de “se vestir de luto para sempre”, de nunca mais arrancar a sombra da sua pele…

A segunda parte do livro. “Sombras” entronca de forma subtil e irrepreensível na primeira – os temas ressurgem (a memória, as palavras, a “espera de um momento de luz”, o silêncio…) embora com um outro tratamento imagético, mas o essencial mantém-se numa linha de coerência que, sobrepondo-se à diversidade e autonomia de cada texto, dota de unidade uma obra cuja poeticidade insiste na sua tarefa de rasgar véus… e sombras.

Graça, foi assim que li o teu livro! Escrevi o teu e-mail “ao correr da pena”, por isso perdoa alguma falha que, aqui ou acolá, possa surgir na sua estruturação. O que eventualmente lhe pode faltar em rigor terá em autenticidade: não sei fazer crítica literária, sei apenas ficar feliz com os êxitos daqueles de quem gosto… Parabéns!

Um beijo

Victor [Oliveira Mateus], poeta

E-mail 19 março 1997






Graça Pires (n. 1946) estreou-se em 1990 com um livro simplesmente intitulado de Poemas, ao qual tinha sido atribuído, dois anos antes, o Prémio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores. Ainda na década de noventa publicou quatro obras, todas elas premiadas. Poeta dos famigerados anos noventa, pelo menos tanto quanto podemos afirmar que Manuel Gusmão (n. 1945) o seja, Graça Pires é um caso paradigmático de como ao reconhecimento, por vezes, não se alia a exposição pública. Tratando-se de uma obra que prima pela sinceridade, quando não por uma singeleza delicada e sóbria, não é de estranhar que tão poucas vezes a tenhamos visto recebida pela crítica especializada. É que dessa crítica especializada pouco mais podemos esperar do que uma especialização repetidamente atenta aos núcleos especiais, todos eles, como sabeis, muito complexos nas suas propostas e graves na análise. Livros como Ortografia do olhar (1996) e Reino da lua (2002) mereciam outra atenção, uma atenção que, a não existir, pode induzir a mais recente leitura do livro da autora em interpretações talvez menos acertadas.  Não sendo dos livros de Graça Pires o que mais me agradou, desde logo por centrar-se numa temática existencial que escapa à minha sensibilidade, é um livro bem construído, poeticamente ousado – tendo em conta, sobretudo, o carácter secular do tempo que vivemos – e contrastante, como se querem todos os livros de poesia dignos desse nome. Abre com onze poemas em prosa, poemas que são cartas, onde a autora, respigando duas personagens bíblicas – Marta e Maria, - nos introduz no conflito impulsor da actividade poética. Esse conflito é o da transposição das barreiras que separam a luz da sombra, os olhos (órgão físico) da visão (acto mental), a terra do céu ou, como sucede no episódio das duas irmãs evocadas, o material do espiritual. Nas onze cartas de Marta a Maria aqui recriadas vislumbramos essa transposição das razões que procuram justificar os gestos, a recusa de uma distinção que impeça a entrega do olhar àquilo que o próprio olhar invoca no corpo íntimo da visão, porque aqui a “razão” surge da entrega à contemplação, uma contemplação que é o encontro com a «nitidez do silêncio» (p.13). É curioso que seja a atarefada Marta, figura feminina talvez mais presente e actual, quiçá interposição histórica do sujeito poético, quem escreva a Maria. Mais do que escrever para Maria, Marta escreve para si própria. Estamos no campo de uma poesia que se assume tanto enquanto de autoconhecimento como «um ritual de memórias» (p. 12), um autoconhecimento ao contrário da generalidade das práticas poéticas actuais, que procura «não esquecer» (p. 14). Porquê onze cartas? Fruto do acaso? Talvez não. Se sim é saborosa a coincidência com o facto do «número onze, que parece mesmo uma chave da Divina Comédia, [extrair] também o seu simbolismo da conjugação dos números 5 e 6, que são o microcosmos e o macrocosmos, ou o Céu e a Terra» (Cf. Chevalier, J. e Gheebrant, A.). Seja como for não é esse simbolismo a chave deste pequeno livro. A segunda parte, intitulada Sombras, desvela o que possa existir de simbólico nesta composição de Graça Pires. São 22 poemas (11­­­+11) – ou 22 fragmentos de um longo poema, tanto faz, - onde o «labirinto da luz» das onze cartas precedentes encontra, já na actualidade o seu cais. A sombra surge como o lugar do não-lugar, ou seja, como a imagem de uma inquietude que tenta resolver-se, a inquietude de quem se encontra defronte à «inevitabilidade da morte» (p. 27), a inquietude de quem busca a luz primaveril da adolescência ou de quem procura a simplicidade de uma infância onde o conflito não tinha lugar: «Agora que uma luz difusa me fascina / retenho a idade em que não ousava / fazer do coração um lugar de conflito» (p 27). Palavra com forte tradição poética, a sombra não é, nestes poemas, o lugar do sonho, do pecado e do crime. É antes o lugar da dúvida, da inquietação, de uma sede ainda por saciar que, só por milagre, não resultou numa «solidão definitiva» (p. 31). Cuidado, então, na leitura destes poemas. Na sua aparente fragilidade residem tumultuosos sentimentos, dúvidas, perturbações, uma boca agrafada de gritos, uma lírica onde a feminilidade não é de todo sinónimo de passiva contemplação:

Em noites de verão,

povoadas de sombras,

não ouso confessar a solidão.

O tempo altera na voz o destino da luz.

Os sons familiares tornam-se sombrios.

O luar, humidamente cheio,

encobre a raiva,

na boca agitada do poema.

A Imagem invertida da lua,

a ferir as mãos

e a desmesurar as palavras

arrasta-me o pensamento

até à perturbação.

Henrique Fialho, escritor
Blogue “Antologia do Esquecimento”, 19 julho 2007








A poeta portuguesa Graça Pires, em seu último livro, Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, brindou-nos com uma obra de alta tensão poética. Raríssimas vezes pudemos observar uma poesia em que o apuro formal e a emoção estivessem tão afinados e sintonizados. Arrebatador, pungente, intenso e, sobretudo, lírico em uma época em que a ausência de lirismo é tida como poesia de inovação, o último livro de Graça Pires nos faz mergulhar em um fluxo vertiginoso, em que cada palavra parece sorver a seguinte, com volúpia e ardor, formando uma urdidura coesa, um vitral de cores sublimes e encantantes.

O livro de Graça divide-se em duas partes. Na primeira encontramos onze poemas em prosa, no formato de cartas, pelas quais a personagem bíblica Marta se dirige à sua irmã Maria. Na segunda, intitulada simplesmente Sombras, podemos ler poemas versificados, em que um eu lírico (continuação do mesmo do primeiro?) enreda-se nas sombras da infância e da noite, em indagações sobre o sentido de existir. O livro, todo simétrico e dicotómico, funciona como verdadeira arquitetura pacientemente engendrada. À dilatação da primeira parte segue a concisão da segunda; por outro lado tal cisão, mimeticamente, desvela o “ser ontológico” dessa poesia, ou seja, a presença, na obra, de duas personagens a simbolizar sentidos diversos. Enquanto Marta está fadada a viver no campo da ação, a irmã, Maria, vive no reino da contemplação. Portanto estamos nos limites entre o fazer e o ser. Ao empreender um mergulho nessa maneira de lidar com o mundo, Graça elabora uma reflexão sobre o próprio ato poético. Dessa forma, para a autora, poesia é a conjugação de uma prática (exaustiva elaboração, artesania) com uma forma de contemplar, de sentir o mundo (raiz da sabedoria). O sentimento poético (força telúrica da alma) coliga-se à ação de criar, de inventar.

Nesse aspecto, a autora consegue um grande feito. Em uma época em que o lirismo tornou-se frio e, em muitos casos, cirúrgico, Graça nos revela que a poesia é, antes de tudo, sentimento, emoção, vida, transmutados em palavra. Desde Baudelaire, muitos poetas apreenderam com pouca sabedoria a lição do escritor de Les fleurs du mal, que consistia em esfriar as emoções, a fim de se alcançar uma perícia no labor, na feitura do poema. Muitos acreditaram, com isso, que a poesia devia não mais traduzir o sentimento trágico da vida ou as emoções fortes, de grande impacto. Essa lição mal assimilada gerou a proliferação de textos insossos, inodoros, sem vigor ou força lírica. Todavia os grandes poetas souberam se resguardar dessa cilada: César Vallejo, Drummond, Pessoa, Kaváfis, Lorca foram grandes porque mergulharam pela e com a palavra, naquele “coração selvagem da vida” delineado por James Joyce. Pois bem, para Graça poesia é uma verdadeira entrega, irrestrita, à vida no que ela tem de magnífica e terrível, de sublime e sofrida. A poesia é feita das veias da existência, dessa condição humana e misteriosa, limitada, mas ao mesmo tempo pródiga, pois é o verdadeiro terreno da paixão. Aliás se há uma palavra que poderia designar, com precisão, a sua escrita, essa palavra é justamente paixão. Paixão pelo amado, pela contemplação do pequeno e infinito cotidiano, com seus pássaros, barcos, estevas e árvores, Paixão pelo mistério da noite, pelo silêncio vivo do que é sagrado e pleno; paixão pela memória, pela infância sempre a latejar e a pulsar o fio de suas palavras. É justamente essa mesma paixão que podemos vislumbrar nesse fragmento dessa belíssima carta de número 6:

[…] Escrevo para não esquecer. As palavras náufragas de sombras. As palavras sem amparo, desabrigadas, impacientes. A boca calada. A respiração cavando silêncios. As mãos a pesarem tanto que exilei os gestos rente ao coração. Poiso a cabeça sobre a mão direita e penso: para o encontrar de novo recomeçaria tudo outra vez, andaria todos os caminhos, arriscaria a minha vida. Hora após hora, ele regressa ao meu pensamento, e vem do lugar de todas as ausências e tem nos braços a mesma curva onde os pássaros iniciam o primeiro voo. Pedir-lhe-ia, agora, que só uma vez me dissesse: bebe a minha sede. (p. 14).

Nesse fragmento, a autora define, com precisão, o impacto poético dessas cartas. Elas são feitas, antes de tudo, de impaciência. Impaciência no sentido de que essa poesia é marcada por um frêmito elétrico, tenso, em que as palavras, num verdadeiro fluxo, sorvem o leitor, enredam-no, levando-o ao centro do próprio existir, ao cerne dos acontecimentos entrevistos pelo fio narrativo do livro, pelo sorvedouro das imagens verbais sempre rutilantes e de grande beleza. Novamente, a essa tensão no nível formal segue outra no plano ontológico: a persona poética, no caso Marta, arrasta-se em indagações, em desassossegos, em perplexidades, que tornam a vida sempre inédita, estranha, ternamente fantástica e encantadora. Marta carrega aquela aura de devaneios tão bem postulada pelo filósofo francês Gaston Bachelard: “o sonhador faz correrem ondas de irrealidade sobre o que era o mundo real” (p. 165). Nesse aspeto, a autora soube captar, com mestria, o sentido bíblico do milagre: a poesia é o milagre que faz a vida irromper com todo o esplendor, com toda a sua totalidade intacta e intraduzível. Para Graça, o mundo está sempre em nascimento, assim como o eu também.

Uma marca que muito nos chama a atenção na poesia de Graça é a sua capacidade de dizer sempre de forma inaugural. Graça faz da palavra, para lembrar Rimbaud, uma alquimia, uma tessitura repleta de imagens de grande inventividade e beleza. Aliás o que caracteriza a poesia da modernidade é precisamente essa busca incessante de uma linguagem em estado de nascimento, de novidade plena. Nesse sentido para se afirmar tal expressão nascente é preciso, por outro lado, renovar o ser e os sentidos. Só se alcança uma escritura de plenitude, quando o ser do poeta germina constantemente. Daí a busca, na obra da Graça, de uma infância viva, uma infância a renovar sempre o existir e as percepções corpóreas. Dessa forma para a poeta de Reino da lua, dizer algo pela primeira vez é ser pela primeira vez. Tal característica marca toda a escrita da autora e podemos encontrá-la, novamente com o mesmo fascínio, nesse seu último livro, como aqui observamos:

Sem pressa, formulo a urgência

de sombras inquietas

na neblina do olhar,

como se recuperasse um tempo

tão decisivo como a infância.

Circunscrevo recordações sem voz

e perdem-se-me, nas mãos,

os gestos de menina.

Persigo-lhe a imagem,

ou a sombra dessa imagem.

Os meus olhos doendo nos dela.

O meu rosto, medindo no seu rosto,

toda a intensidade da inocência. (p. 25)

 

Uma outra categoria da poesia de Graça e que, de forma sublime podemos perceber neste seu derradeiro livro, é a presença sagrada do amor. O amado abre uma fenda no universo e permite a chegada plena do instante epifânico. Nesses momentos raríssimos, toda a fragilidade da mulher esboroa-se, apaga-se. A vida toma-se de tal júbilo, de tal intensidade, que a morte perde sua força, sua voracidade. As cores do mundo intensificam-se, o que existe torna-se exaltado, grandioso. A força desses momentos, por outro lado, escurece os demais, em que o homem querido se distancia. Eis que a solidão surge e a noite ganha o peso das incertezas, bem expressas pelo título do livro (Não sabia…). Na obra em questão, o amado é o próprio Cristo, cuja singeleza e terno encanto são os símbolos vivos do amor encarnado. Marta experimenta a solidão quando Cristo a repreende ou quando ela percebe a sua perdileção por Maria. Eis, talvez, a nossa grande sorte, pois é justamente essa “falta que ama” que motiva a escrita das cartas e nos propicia essa série de poemas em prosa dos mais belos. A poesia nasce da falta, da ausência, para restaurar a presença epifânica da própria palavra.

Para encerrar essa breve exposição, cito na íntegra, a carta número 8. Calamo-nos para que a poesia da Graça nos batize e, uma vez nos nomeando, nos integre na plenitude da própria vida

Não vou falar-te das vezes que morri, sufocada de sombras, tão capaz me sinto de morder as lembranças que intimidam minhas mãos. Ele entrou, subitamente, no meu sorriso esquivo e eu retornei, mansamente, à raiz da ternura, em multiplicado espanto. Por isso quero escrever, sem confidências, os vestígios da maresia nos meus olhos submersos nos dele e deixar que a fogueira que me arde no olhar ateie um lume mais nocturno. Perdi a inocência mal o avistei. Reconhecer-lhe-ia os passos à máxima distância, tão nítida se tornou para mim a sua sombra. Às vezes, de madrugada, a minha pele tinha o cheiro dele, como se me tivesse abraçado a noite inteira. Apetecia-me, então, roçar-lhe os dedos no peito, ou tomá-lo nos braços, como quem embala um filho. Diz-me tu: como evitar esta emboscada de me deixar dominar pela excessiva claridade do seu rosto? Dizem que aqueles que o seguiam traziam sobre os olhos um novo sistema solar, onde era possível ver no escuro todas as margens dos rios e ouvir no firmamento todo o silêncio do mundo. Mas eu não sabia que, em suas mãos, se abrigavam os barcos regressados da faina e que os pescadores recolhiam as redes nos seus dedos. Eu não sabia que o bando de pássaros que o seguia amainava os ventos e as águas nocturnas, para que o luar nos embalasse. Eu não sabia que lhe bastava olhar as conchas para salvar os náufragos, ou fitar os meus olhos para que eu me perdesse. (p. 16).

Alexandre Bonafim, poeta e Professor de literatura portuguesa

Blogue “Arquipélago do Silêncio”, 9 agosto, 2007







Vila Nova de Gaia, 19 novembro, 2007

Cara Amiga:

 

Nada, na sua poesia é dissonante. O ritmo, quase isócrono, dos poemas da 2ª parte de “Não sabia que a noite…” (mas também de “Quando as estevas entraram no poema”) expande-se em andamento lento, em movimento ondulante, pausado, sem sobressaltos. O discurso flui como quem deixa escapar a água da bica para o fundo do copo, que é o corpo do poema.

Gostei sinceramente das “Cartas de Marta”. Dir-se-ia que elas constituem um livro à parte – pela forma utilizada, pelo ritmo, pela feição levemente narrativa, pela temática bíblica. Eu diria que se trata de poemas em prosa, forma de que às vezes também me sirvo, como verá quando ler “O mesmo nome” e, sobretudo, “Rodomel Rododendro” (sobre este meu livro que acaba de ser publicado, pela Editora Campo das Letras, um longo ensaio, “A quintessência musical da poesia: Rodomel Rododendro, um poema sinfónico de Albano Martins” que é parte integrante da tese de doutoramento do Professor brasileiro Jorge Valentim, defendida em 2004 na Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Diz-me que espera aprender comigo. Não se iluda. Comigo não aprenderá talvez grande coisa. Eu não saberei dar-lhe lições. A minha poesia marginal em relação ao que por aí se faz (e fez, na 2ª metade do séc. XX) não lhe servirá de modelo, certamente. Apercebo-me das suas preferências pelas epígrafes dos livros que me envia. Nuno Júdice e Al Berto são poetas interessantes, mas há outros…

Resumindo o que aqui fica dito: foi uma agradável surpresa a descoberta da sua poesia. Mas por onde tem andado o seu nome, que o não vejo nos lugares onde habitualmente os poetas se mostram?

Um beijo do,

Albano Martins, escritor

Carta manuscrita.

 









“Um luminoso olhar sobre a noite”

 

I


Avessa aos ditames da moda – embora eu tenha certas dúvidas que em poesia os modelos de uma época se possam estabelecer a partir do seu tempo presente -, ao invés dos cânones poéticos, cuja função única parece ser a de não perturbar os propósitos ideológicos deste contexto que é o nosso, desmesuradamente inumano, Graça Pires tem vindo, ao longo do tempo, a consolidar uma obra, não só de rara beleza formal, mas também inquietante relativamente aos grandes temas que aborda. E isto considerando que, em poesia, o hiato entre forma e conteúdo apenas se justifica para fins críticos e/ou didácticos. Gostaria, contudo, de ressalvar aqui que este assunto dos “grandes temas” e da “beleza imagética” da poesia de Graça Pires, bebi-a eu em dois autores que admiro, e destas coisas percebem mais do que eu. A afirmação desta poesia tem sido feita, paulatinamente, sem a presunção oracular dos que tudo julgam saber e com aquela forte fragilidade (ou frágil força se preferirem) de que nos fala a poeta brasileira Maria Carpi em obras como “A força de não ter força” e “O herói desvalido”. Por conseguinte este é, para mim, um dos primeiros tópicos da poesia de Graça Pires e que nos surge mesmo num dos seus títulos: Outono: lugar frágil”

É sempre arriscado passar fronteiras” (Op. cit. P. 14)

“cada vez mais frágil. Cada vez mais íntima” idem, p. 42

Convém, no entanto, esclarecer que esta fragilidade não é o cadenciado esboroar dos desistentes. Nesta poesia não! Aqui há antes um sentir que não transige nos seus intentos, na sua exposição (e nunca imposição!) de um certo olhar, paradoxalmente sereno e ávido (aliás, a imagem da sede é recorrente na poesia de Graça Pires) sobre si, sobre o Outro, a natureza, a sociedade e até sobre a transcendência tenha ela nesta poesia a forma mais heterodoxa que tiver. Neste desvelamento de um dado percurso poético chegamos ao segundo tópico desta escrita: a recuperação do mundo interior. Mas esta não se apresenta aqui como um ensimesmamento à margem de toda a exterioridade; consciência e sentir, que, num maravilhador jogo de espelhos, apenas na oblíqua olhassem o real objectivo. Não, não é este o “mundo interior” que transparece nesta poesia, antes um outro porejando as mais íntimas conexões com a vida real dos homens. É Urbano Tavares Rodrigues que, na contracapa de “Ortografia do olhar” nos chama a atenção para o facto de em Graça Pires se assistir a um “tratamento profundo de grandes temas como o tempo e o amor” e, que me seja perdoada a soberba, a morte e a solidão, acrescento eu agora. Mas, e como já defendemos, se estes grandes temas estão sempre ligados ao real objectivo, é verdade que eles também se nos apresentam, e de modo iniludível, com um carácter abrangente – exemplo: o amor.

É estranho como decidi partir presa ao teu rosto,
contra a vertigem de querer encontrar,
na tua mão, a linha da minha vida. É estranho.
Há agora um lugar onde é perigoso o amor”
In Conjugar afectos, p. 85

Era cruel atravessar aquele tempo, onde faltava a tua voz.
Houve, porém, uma noite em que disseste: meu amor
e o coração alvoroçou-se-me no peito”
InReino da lua, p. 35

Nunca é de mais enfatizar que estes sentimentos aqui referidos, apesar de nestes excertos se referirem ao Amado, a verdade é que são inúmeros os versos onde se denota o amor por outros seres e coisas, como por exemplo o amor pela natureza (os pássaros, os rios, etc.) ou o delicado poema que Graça Pires dedica ao neto:

As searas, porém, convocaram a luz
da madrugada, para envolver, nos teus cabelos,
o brilho das espigas.
Agora, por onde passas, o céu é tão azul
como a cor controversa dos teus olhos.”
In Quando as estevas entraram no poema”, p. 38

Façamos, pois, uma primeira síntese do que temos vindo a dizer: estamos frente a uma poética cujas principais linhas de toque são – a fragilidade (ou força) ante o Todo; a recuperação de um mundo interior que jamais negligencia a exterioridade; a abordagem de grandes temas, e tudo isto numa luminosa urdidura de imagens, onde cada uma acaba sempre remetendo para a outra, mas sem que alguma delas prescinda da sua estrita individuação. Este é, portanto, mais um dos paradoxos da poesia de Graça Pires! Aliás, se Urbano Tavares Rodrigues nos alerta para a riqueza das imagens desta autora, o poeta e crítico Henrique Manuel Bento Fialho, no seu esboço de sistematização das múltiplas tendências da poesia portuguesa contemporânea, inclui Graça Pires, aos lado de outros poetas como Ana Luísa Amaral, na categoria daqueles que, embora nãos descurando outros aspectos, se afirmam pelo privilegiar do território das imagens e, no caso da nossa escritora concretamente, imagens eivadas de resplendor e vida.

 importantes do que este, enforma o solo matricial desta poesia.:      

a) A nostalgia, frequentemente ligada a uma infância (ou inocência perdida):

Com estigmas da infância no interior das mãos,
teço, na voz, uma fuga permanente.
Posso improvisar cantigas de embalar os medos
ou fabricar um idioma ilícito,
para denunciar a violenta cor da solidão.

In Reino da Lua, p. 33

b)    A solidariedade com o Outro e o repúdio por toda a forma de injustiça:

Rodeada de mar, convoco o límpido diálogo
dos abismos para gritar com Ulisses,
o desejo de ser livre e mortal
In Uma certa forma de errância, p. 67
 

 “No fim da primavera, há homens que enchem

as mão de terra para dizer trigo.

Lendas em desuso esquivam-se-lhes da voz.

No interior da fome, reconstroem a boca,

recuperando todas as expressões de indignação

e raiva. Nas suas queixas, hibernam os deuses

que lhes teceram a intriga do destino: tão efémeros

que resvalam nas palavras que omitem.”

              In Quando as estevas entraram no poema, p. 33

“Morre-se para baixar o stock das armas,
  para testar a perícia dos beligerantes.
  Morre-se à queima-roupa, como se a vida
  estivesse entrincheirada num contra-senso
  onde a noção de dignidade se perde
        In Ortografia do olhar, p. 47


 Constatamos que a visão do quotidiano dada pela poesia de Graça Pires, apresenta-se-nos com uma, por vezes, explícita normatividade em torno de valores fundamentais e fundantes de uma cultura, que, como a nossa, de base humanista, corre o risco de se afundar numa subtil forma de barbárie, dando lugar àquilo a que Peter Singer chama as sociedade baseadas no interesse próprio e na apropriação de bens materiais, o mais das vezes supérfluos. O quotidiano de Graça Pires almeja, essa Coisa que toda a poesia lírica vislumbra e da qual constantemente fala, é esse mundo alicerçado na reciprocidade dos amantes, na sede de Absoluto, na solidariedade com o Próximo, sobre com os que menos têm, na doçura de uma sã relação com o mundo natural… Por essa razão poderemos dizer, algo provocatoriamente: se quereis ler uma poesia que discorra de forma anódina e emasculada sobre o quotidiano (coisa que não fizerem nem Gedeão, nem O’Neill, nem Assis Pacheco, nem José Gomes Ferreira…), ou que radiografe de forma gélida e passiva as pizzarias, os homens que fazem a barba e quejandas situações, então não deveis ler Graça Pires, mas se procurais uma poesia que, através de imagens luminosas e filigranadas, fala de um dia-a-dia na sua radical interligação com o Todo Englobante (natureza, sociedade, o ser amado, a memória da infância…) então não deveis perder esta poesia.

 

II


A sequência de onze cartas de Marta a Maria contida na obra de Graça Pires Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhosintegra-se nas linhas de leitura anteriormente sugeridas. Essas cartas são, para além de um acto de comunicação, emanações
de uma profunda cisão no interior do eu-poético: por um lado o mundo da Acção (Marta); no outro o mundo da Contemplação (Maria). Esta distinção entre Razão e Acção tem, na nossa cultura, raízes na Antiguidade Clássica: Heraclito e Pitágoras são bastante claros quanto a ela. E mais tarde, Platão e Aristóteles, no século IV a.C., fixam definitivamente esta separação. Com o advento do Cristianismo, a doutrina oficial da Igreja sanciona esta cisão imprimindo-lhe o cunho do Sagrado. Assim temos num campo o mundo do trabalho (sobretudo braçal), num outro o da Reflexão, da Espiritualidade. É deste equívoco da nossa cultura que Graça Pires se lança, para a meu ver, o tentar solucionar a seu modo. Marta representa, nesta obra, o mundo da Acção, mas … eis que cai em: “A súbita armadilha que foi o seu olhar” (Carta 1). Mas não é só o olhar dele que espanta Marta, o mesmo efeito produzem as suas palavras: “Nunca ninguém falara assim de perdão, tão para cada um de nós. Nunca ninguém dissera assim e que nos amava e que devíamos amar-nos uns aos outros” (Carta 4). Ante este despertar, esta Iluminação, que, de forma súbita, lhe aparece, Martas jamais conseguirá recuperar essa espécie de pureza originária: “eu sabia que nenhuma parte de mim podia regressar à inocência” (Carta 3), e toda ela se rodeia então de penumbra (Cf. Carta 2). É com esta penumbra, e com esta segunda carta, que Graça Pires começa a estabelecer uma ponte que a levará à segunda parte deste livro: “Sombras”. Ponte essa que atingirá o seu cume na Carta 5, onde a poeta é mesmo peremptória: “só as sombras guardam a nitidez do silêncio cativo nos lábios como um pacto nocturno.” Acrescente-se que, tudo quanto anteriormente se disse relativamente ao jogo das imagens nesta poesia, se aplica agora à própria arquitectónica do livro: a sua segunda parte não foi ali justaposta por acaso, ela, apesar de manter a sua autonomia, é também, e paradoxalmente, parte integrante da obra: terreno agora laico e actual em contraste com aquele que, na primeira parte, se apresentara procedendo da esfera do religioso. Mas, e voltando a Marta: não podendo já recuperar uma inocência perdida e com o seu ser repleto de “sombras”, que lhe resta fazer? Marta mantém-se no território da Acção. Ou melhor, adensa-se nele, mas agora de uma maneira diferente: ela, a quem ninguém ensinara “a fazer a distinção entre o lado prático da vida e o lado mais íntimo das emoções” (Carta 3), continua levando a cabo o seu fazer, que é agora não só um fazer-em-si, mas ao mesmo tempo um conhecimento desse fazer. Marta continua executando as suas tarefas, mas agora reflectindo no seu sentido, assim como no de tudo que a cerca.


Disfarcei como pude, todo o assombro, que a um tempo,

me culpava e absolvia.”

In Carta 4

 

O meu coração é hoje uma ilha que, todos os dias, percorro

de lés a lés à procura de mim mesma.”

In Carta 5


E esta última passagem é paradigmática, vemos Marta, enquanto continua executando os seus rotineiros trabalhos, esquadrinhando todos os recantos do seu coração, isto é, desembocando na grande preocupação (socrática) do autoconhecimento. E é assim, de modo poético e despretensioso, que Graça Pires supera a pseudodistinção: Acção/Pensar, até porque (se retirarmos os actos reflexos e involuntários) e se a Contemplação é também uma forma de Acção, a verdade é que esta última é indissociável do Pensar.

Estas onze cartas, embora centrando-se na distinção já referida, apresentam-nos ainda outras funções igualmente importantes:

a)     Marta escreve para não esquecer e para melhor de conhecer. “Se te enviasse as cartas verias logo que foi para mim que as escrevi como um ritual de memórias.” (Carta 4). Aliás esta passagem ilustra o que temos dito: as cartas que nunca chegaram a ser enviadas a Maria, serviram como um instrumento ao serviço do pensamento de Marta. E ainda neste item: “As perguntas que te faço, que me faço, cavam-me no coração um espaço nocturno onde guardo todo o meu cansaço. Mais tarde folhearei estas cartas e lembrar-me-ei quem sou.” (carta 9)

b) Ela escreve para fugir à idade, à loucura, à dor… “Agora, enquanto escrevo esta carta, reparo que esqueci a minha idade.” (Carta 10); “Com o corpo em chamas eu ia, por vezes, até ao mar, só para ouvir de perto o rumor das fragas. Havia nos meus olhos a suspeita de outros lugares onde seria possível dançar sobre as mágoas, para que não doessem na memória.” (Carta 9);

c) Escreve, finalmente, para procurar um sentido, uma qualquer réstia de nexo para lá do que viveu: “Às vezes é preciso ignorar as leis da escrita, falar sem nexo, disfarçar as palavras indefesas.” (Carta 3); “Eu entreabri, com cuidado, a dupla teia dos lábios, desmanchando, uma por uma, as palavras sem transparência e fiquei em silêncio, como se a própria lucidez me sufocasse.” (Carta 10)

O que salva Marta, como se percebe no último excerto, aquilo que lhe concede a consciência do seu estar-no-mundo, é também o que a perde.

E Graça Pires entra aqui no estatuto do poeta, daquele que, como Marta, salvando-se pelas palavras (ou por poéticas cartas?), tendo por elas acesso a um Discurso do Essencial, por essas palavras se acaba por perder: “Mas eu não queria ser salva. Nunca quis sair ilesa desse cerco de fascínio.” (Carta 7). O poeta, assim com Marta, pelo Verbo adquire essa estranha consciência que, se por um lado é redentora (e não é por acaso que a figura de Lázaro transborda toda a Carta 11), por outro o marca com a nostalgia e a sede de saber “que a noite se pode incendiar nos seus olhos”. Se a escrita de Graça Pires, conforme se sublinhou na primeira parte deste texto, prima pela riqueza das imagens e pela forma refinada como estas entre si dialogam, parece-nos redutor confinar toda esta poética a um mero jogo imagético. Para além dessa refinada e finíssima tecedura, com Graça Pires entramos no mais recôndito da alma humana, com os seus anseios, a sua nostalgia, o seu interminável diálogo consigo própria, com a natureza, com o social…, dito de outra forma: seguindo os trilhos desta escrita conseguimos “um luminoso olhar sobre a noite”.

Victor Oliveira Mateus, escritor
Apresentação do livro, 17 de maio de 2007




sexta-feira, 8 de abril de 2022

QUANDO AS ESTEVAS ENTRARAM NO POEMA

 


Quando as estevas entraram no poema. Sintra: Câmara Municipal, 2005


As palavras em jogo

 “Quando as estevas entraram no poema”, de Graça Pires, venceu o Prémio Oliva Guerra de 2004, da Câmara Municipal de Sintra. Numa trajectória pessoal que já se afirmou no panorama da poesia portuguesa, este recente livro vem confirmar a altíssima qualidade da sua escrita.

Neste livro é a respiração do Alentejo: «Para lá do tempo, as mulheres medem, / caladas, o incessante decorrer dos dias. / Uma certa demência na ponta dos dedos / coalha o leite nas velhas panelas / onde fabricam o queijo fresco / enquanto pelos telhados perpassam / as lembranças de paixões antigas.» Ou ainda o Alentejo noutro poema: «No verão as mulheres caiam as casas e as memórias. / De branco: como as estevas e a lua cheia. / Os seus anseios se espalham, com a brisa /Na quentura das noites. / Por isso conservam no olhar uma inesperada tristeza.»

Entre a Natureza e a Cultura, Graça Pires é uma voz poética original e sensível.

 

José do Carmo Francisco, poeta

“Jornal do Sporting”, abril 2006

 







Graça Pires, minha cara

 

Tenho diante de mim Conjugar afectos, Uma certa forma de errância e Quando as estevas entraram no poema

Você sabe que todo o juízo é subjetivo e, para não fugir à regra, digo o que digo, fiado em meu coração, embora meu coração seja, às vezes, muito traiçoeiro, me pregando peças, O que quero dizer, enfim, é que fiquei muito mais impressionado com o seu último livro. O segundo também me causou muito boa impressão. Vejo dois grandes movimentos em sua poesia: num primeiro caso, em Uma certa forma de errância, como o próprio título sugere, a presença obsedante do nomadismo que leva à solidão, como nos poemas das p. 70 e 71, como o resultado de um mundo sem deuses, em que o homem vive à própria sorte perdendo sempre o pé (p. 26). Vejo também a questão comum em sua poesia, da busca da linguagem ideal para expressar a complexidade da vida, do amor, como no belo poema da p. 14. Em tudo, perpassa a expressão do amor, do erotismo, a lembrar, com as devidas dimensões, os dilaceramentos de numa Florbela Espanca. Já, em Quando a estevas entraram no poema, fiquei impressionado pela quase “objetividade” ou pelo uso daquilo que Elliot costumava batizar de “correlativo objetivo”, ou, seja, o uso de imagens da natureza para expressar estados de alma. Versos como “Neste lugar, onde as giestas / derramam o mel junto aos caminhos”, “os pássaros trancam o verão em suas asas”, “Um barco alado irrompe da noite”, “Vieram os pássaros, como um poema, / em louca cavalgada por paredes de luz”, “Um rio nasce perto dos lábios / de quem improvisa a sede” me tocaram bastante. Gostei imenso de dois poemas “Acordei assustada” e Madrugada de pássaros”, nos quais se verifica essa perfeita homologia entre a imagem solar do verão e a sensualidade. Para a minha sensibilidade, creio que, Quando as estevas entraram no poema talvez seja o seu melhor livro, sem que isso desmereça os demais…

Obrigada por me dar momentos de sensibilidade e beleza. Do seu Amigo depois do mar,

Álvaro Cardoso Gomes, poeta 

e-mail novembro 2007


UMA CERTA FORMA DE ERRÂNCIA

 

 

Uma certa forma de errância. Vila Nova de Gaia: Ausência, 2003

 

 Organizados entre dois tipos de discurso, os poemas deste recente livro de Graça Pires (Prémio Literário Maria Amália Vaz de Carvalho) são o duplo testemunho de uma narrativa e de uma mensagem.

O poema inicial explica não só o lugar («Na periferia da manhã») mas também o projecto de Penélope: («E concedo-me o direito de esperar Ulisses»). O segundo poema regista a fala de Penélope a Ulisses: «O teu rosto longamente procurado / não tem búzios nem conchas nem corais. / Na praia até então intacta / sinto a luz dos teus passos». Mas o poema, qualquer poema, não existe independente da biografia do poeta: «Os meus olhos tropeçam em raízes antigas / e movem-se-me na memória indecifráveis sinais: / marcas de nascimento, lugares e pessoas, gestos e palavras».

Penélope dirige-se a Ulisses e explica a sua renúncia ao esquecimento: «Podia esquecer-te para sempre, não fora a vertigem da tua sombra a cercar os meus olhos».

O poema surge, assim como ponto de encontro, lugar de existência de um amor capaz de resistir a todas as distâncias: «Alheio-me da minha cronologia / porque o passado se tornou permanente. Caminho tão perto do mar / que Ulisses avalia a direcção do vento pelos vestígios / do meu respirar, lento ou apressado».

 

Na dupla inscrição de discursos surge uma dupla inscrição de viagens. Se Penélope procura Ulisses («Não presto contas a ninguém. E vou por aí ao sabor do vento») também Ulisses procura Penélope: («Uma velhice súbita lateja sobre os teus ombros / e pega-se-te ao rosto uma angústia sem recuo: / um caminho de mágoa nos teus olhos»). O poema surge como o lugar encruzilhado de memórias, ritmos e emoções e nem é preciso saber se Ulisses regressou de facto: «É pela noite, quando as madressilvas / adejam perfumadas sobre emboscados / silêncios que posso imaginar o teu regresso». O importante é perceber a beleza às vezes magoada e triste destes poemas nos quais a autora inscreve a sua arte poética de modo discreto, mas sempre eficaz: «É um verso, toda a luz filtrada pelo olhar / quando me surge, das mãos, um barco desvairado. / Vozes longínquas me interrogam sobre a tinta / azul impressa nos meus dedos: / são os mares da Odisseia a inundar-me a garganta; / são citações de Homero oscilando em meus lábios; / são, não sei que aves marinhas, no estuário das mãos. / Como quem usa a luz para esconder as sombras.

 

José do Carmo Francisco, poeta

“Notícias da Amadora”, 15 janeiro 2004

e “Diário Insular” 1 abril 2004







A poesia de Graça Pires é atravessada, toda ela, por uma forte componente sentimental, não na medida das emoções veladas ou mal contidas dos românticos nossos avós, mas na dimensão actual de um erotismo que já não se esconde atrás de metáforas para se insinuar de uma forma subliminar, mas que, ao contrário, se manifesta através de metáforas que mais e melhor lhe corporizam a expressão. Sem um domínio completo da língua, o uso da metáfora para fins, digamos assim, hostis à sua tradicional função, resultaria, com certeza, de impreciso sentido translato. E é nessa harmonização do dizer outro da relação de semelhança, com a necessidade de falar verdade e claro do que lhe vai na alma e no temperamento, a par de um domínio completo da língua, que Graça Pires consegue a síntese surpreendente de que se nutre a sua poesia: um límpido discurso amoroso que comove, fascina e empolga. Os dois últimos livros da poeta, visitados já pela lucidez da maturidade que lhes refina, aliás, a escrita, intitulam-se Reino da Lua (Escritor) e Uma Certa Forma de Errância (Ausência). Deste último, que foi Prémio Maria Amália Vaz de Carvalho, escolhemos o seguinte poema:

 

Sem qualquer pudor, deixei a marca 

do meu andar apressado, 

em todos os caminhos de esperas decisivas.

Algo envelheceu nos meus pés, 

manchado pelo desacerto dos dias.

De tanto percorrer o chão da infância,

as minhas pálpebras 

encheram-se da lucidez dos velhos.

Não creio que os dias se revezem, 

inevitavelmente iguais.

Sinal de sede, ou de um verão antigo 

inquietando a boca?

 

Júlio Conrado, escritor

“Boca do Inferno”, março 2004








Vila Nova de Gaia, 1 de março 2008

 

Estimada Amiga:

 

É de ausência (quero dizer, de errância, de deriva interior) que falam, de facto, os seus poemas, estes que agora me chegam. Três ou quatro palavras me parecem resumir o sentido geral: paixão, angústia, solidão, infância. Expressões como “à procura de mim”, “O remoto exercício da tristeza”, “O coração em desordem”, ou “a cor entardecida de meus olhos, tão cheios de barcos de ausência” são reveladores de estados de alma próximos da ansiedade, do tumulto, da expectativa, da busca, da espera.

Não por acaso, os poemas falam com frequência de veleiros, de barcos, do mar, dos mares da Odisseia – os mares de Ulisses, tantas vezes convocado para a semântica do poema. Falam, em suma, de viagens, de aventura.

O tom é o dos segredos revelados ao ouvido, na “hora em que o poente escurece (…) as pálpebras”. Simples, limpa – límpida – a expressão.

O último poema (de que gostei particularmente) aparece-me com o cais onde aportam os barcos do desejo, palavra que, não nomeada, se pressente, todavia, nos interstícios da voz.

Bem-haja pela oferta. E obrigada pelo que diz do “Escrito a vermelho”.

Um abraço afectuoso e grato.

Albano Martins, escritor

Carta manuscrita






“UMA CERTA FORMA” DE FAZER POESIA

 

(…) pulsa-me no peito um coração paciente

(Homero, Odisseia)

 

Sem qualquer pudor, deixei a marca

do meu andar apressado em todos

os caminhos de esperas decisivas.

(Graça Pires, Uma certa forma de errância)

 

De todas as artes, ensina-nos Hegel, a poesia exprime a representação espontânea do verdadeiro. Sua principal missão consiste em evocar à consciência a potência da vida espiritual, e tudo aquilo que, nas paixões e sentimentos humanos, nos estimula e comove. A palavra poética é capaz de apreender os interesses e movimentos espirituais sob seu aspeto mais vivo. Efetivamente a poesia na chama à consciência, ou melhor, nos leva a compreender o reino ilimitado das representações, das ações, das façanhas, dos destinos humanos, a marcha, as peripécias do mundo e a maneira como ele é regido pelos deuses pois a poesia sempre foi, e continua a ser, a fonte na qual o homem sacia a sua sede de conhecer, o seu desejo de instruir (Estética, 1964: 38).

A produção poética da escritora Graça Pires reforça a ideia de que a poesia continua a exprimir o espontâneo e o verdadeiro; ela reúne uma riqueza de conteúdo, multiplicada por imagens e sentimentos.

Rara descoberta de leitura, dá-nos a certeza de que a poesia, mais do que cumprir a sua função primordial – a de revelar a inocência e o sublime existentes no ser -, ela recorta as inquietudes do tempo e resiste enquanto arte. Nossas épocas, catastróficas ou revolucionárias; as ações humanas, imprevisíveis e egoístas, não sufocam a poesia, ao contrário, faz com que ela continue fiel aos seus princípios de criação inovadora e, ao persistir, mantém a chama que aguça, que guarda a imagem real do homem e o seu tempo.

Uma certa forma de errância (2003), sétimo livro de poemas publicado pela poeta de Figueira da Foz, revela uma poesia que reúne sabedoria e prudência no diálogo com a tradição: (…) são os mares / da Odisseia a inundar-me a garganta / são citações de Homero oscilando em meus lábios; desprendimento diante do branco da página, pois sobre a folha intacta, as palavras sempre impõem um ritmo, uma textura e, sobretudo, uma imagem: Na periferia da manhã, levemente adiada, / improviso uma ilha. Tão nua como páginas em branco; ingenuidade e emoção, artimanhas necessárias para enfrentar a universalidade dos sentimentos – razão e sensibilidade: Habito uma ilha suspeita / de servir de abrigo a veleiros perdidos; de coragem e habilidade para aventurar-se ao desconhecido: À porta fechada, preparo um roteiro de viagens e, finalmente, malícia para tocar a lira e maturar o canto: utilizo um roteiro de artifícios para simular, / em cada madrugada, a cumplicidade dos deuses.

Constata-se o valor poético da escrita de Graça Pires pela facilidade com que a poeta manuseia as palavras. No diálogo com a tradição revela exímia desenvoltura. Existe sensibilidade ao apreender, sem copiar, a palavra dos Mestres, do mesmo modo como há ousadia ao impor-se como uma voz de timbre próprio. Ao convocar Homero, pai da Ilíada e da Odisseia, as malícias e habilidades do herói de Ítaca, se reinventam no presente, e o presente, como ensina Octávio Paz, é o instantâneo, a forma mais pura, intensa e imediata to tempo (Os filhos do barro, 1984).

O tempo é a essência das inquietações do ser. É um fluxo contínuo, composto de tudo: separações, inquietudes, aprendizados, esperas, certezas e incertezas. Como diz Raduan Nassar, autor de Lavoura Arcaica, O tempo, o tempo e suas águas infláveis, esse rio largo que não cansa de correr, lento e sinuoso, ele próprio conhecendo seus caminhos, recolhendo e filtrando de vária direção o caldo turvo dos afluentes e o sangue ruivo de outros canais para com eles construir a razão mística da história (1988: 184).

A poeta de Uma certa forma de errância faz do tempo um ardil para burlar o cansaço da espera: E concedo-me o direito de esperar Ulisses. Enquanto ele urge a solidão do ser, o Eu defende-se por meio do tecido de suas artimanhas: Mas como silenciar as mãos que dobam / a brisa da manhã, no vórtice do tempo. A confiança no poder da palavra, confere a certeza de que o tempo, esta fração instantânea, quanto mais foge das mãos, com maior intensidade é vivida, idealizada: Conto pelos dedos, / o tempo de entardecer cansaços. A grande aspiração do poeta é fazer com que a poesia cumpra, nas palavras, a sua função original, a de ser linguagem verdadeira de todas as revelações e revoluções (PAZ, 1984:57). Graça, no exercício da lírica, ordena a linguagem de maneira harmoniosa sem, no entanto, deixar de incutir mistério, de tal modo que cada imagem passa a encerrar a solução de um enigma. Nesta forma pessoal de a poeta trabalhar a linguagem, como resultado de um esforço individual, concentra-se a força desta poesia. Ação de escrita que revela e/ou mostra a saga de um aprendizado: De tanto percorrer o chão da infância, / as minhas pálpebras encheram-se da lucidez dos velhos.

Na poeta de Conjugar afectos (1997), inspiração e construção se entrelaçam. Percebe-se que o aspecto da escrita poética de Graça vai além da inspiração, o Eu tange a lira como arco tenso, buscando, assim, uma originalidade que a ajude a construir uma palavra poética com a astúcia e a habilidade de uma excepcional artesã.

A leitura deste livro dá-nos a certeza de que, nos dias atuais, a poesia reafirma o status de uma linguagem refinada. Na oficina da poeta, o Eu continua a traduzir, pela palavra, mitos, sonhos, paixões, angústias. É uma linguagem viva a equacionar o sentido profundo da existência humana.


Cleri Aparecida Biotto Bucioli, poeta

agosto 2007