Graça, pediste-me para dar uma opinião sobre o teu livro, embora sabendo ambos que essa minha opinião vale o que vale, isto é, nada, em termos de eco na praça pública. A tua voz é como bem sabes, uma voz consolidada, que fala ao invés do hábito, creio mesmo que se lhe pode aplicar o que o Henrique uma vez escreveu acerca da minha: “uma poesia completamente indiferente a supostos cânones, indefinidas modas, ou, se quisermos, tendências estáticas de circunstância”. É evidente que sou suspeito: gosto das vozes que não cantam em coro! As onze cartas, para além de mensagens de Marta a Maria, li-as sobretudo como emanações de uma profunda cisão de um eu existencial: uma mulher mergulhada no mundo de acção que cai na “súbita armadilha” de um olhar. A partir daí a sua sede mistura-se com “uma melancolia que lhe enche o silêncio dos dias”. Marta não sabia “distinguir o lado prático da vida do lado das emoções”, soube depois quando O viu e ouviu e a partir desse momento “não pode mais recuperar a inocência”; a partir desse momento envolveu-se ainda mais nos seus afazeres para fugir à dor. Ela é, para Marta, como em todo o lirismo antigo e contemporâneo, sinal do inatingível. As cartas dela, as palavras, são para ela o resultado de vários processos: escreve “confusamente” para tentar dizer e para que a memória se reforce com o qual não consegue expressar plenamente; escreve para se salvar, já que são palavras leves e redentoras onde se adivinha a presença do Amado; escreve para cimentar um processo de auto-conhecimento. “Mais tarde folhearei estas cartas e lembrar-me-ei que sou” (ver carta 9 e carta 5); escreve para fugir à idade” enquanto escrevo esta carta reparo que esqueci a minha idade” (carta 10), para fugir à dor e à loucura “hoje tenho um campo de papoilas a tingir-me o corpo, talvez tenha endoidecido ou, talvez, tenha começado a morrer.” (carta 5), “a solidão é traiçoeira como o mar quando vem numa hora atormentada.” (carta 9). Para além desta multiplicidade de funções das Palavras elas também curam, trazem-nos a ressurreição. Embora Lázaro nunca seja referido na carta 11, penso que propositadamente, pois visa-se uma generalização onde o Tu se transmuta num nós. Tudo isto, depreende-se, já Maria havia vislumbrado, Marta só tardiamente o apreendeu, por isso pagou o preço extremo de “se vestir de luto para sempre”, de nunca mais arrancar a sombra da sua pele…
A segunda parte do livro. “Sombras” entronca de forma subtil e irrepreensível na primeira – os temas ressurgem (a memória, as palavras, a “espera de um momento de luz”, o silêncio…) embora com um outro tratamento imagético, mas o essencial mantém-se numa linha de coerência que, sobrepondo-se à diversidade e autonomia de cada texto, dota de unidade uma obra cuja poeticidade insiste na sua tarefa de rasgar véus… e sombras.
Graça, foi assim que li o teu livro! Escrevi o teu e-mail “ao correr da pena”, por isso perdoa alguma falha que, aqui ou acolá, possa surgir na sua estruturação. O que eventualmente lhe pode faltar em rigor terá em autenticidade: não sei fazer crítica literária, sei apenas ficar feliz com os êxitos daqueles de quem gosto… Parabéns!
Um beijo
Victor [Oliveira Mateus], poeta
E-mail 19 março 1997
Graça Pires (n. 1946)
estreou-se em 1990 com um livro simplesmente intitulado de Poemas, ao qual tinha sido atribuído, dois anos antes, o Prémio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores. Ainda na década de
noventa publicou quatro obras, todas elas premiadas. Poeta dos famigerados anos
noventa, pelo menos tanto quanto podemos afirmar que Manuel Gusmão (n. 1945) o
seja, Graça Pires é um caso paradigmático de como ao reconhecimento, por vezes,
não se alia a exposição pública. Tratando-se de uma obra que prima pela
sinceridade, quando não por uma singeleza delicada e sóbria, não é de estranhar
que tão poucas vezes a tenhamos visto recebida pela crítica especializada. É
que dessa crítica especializada pouco mais podemos esperar do que uma
especialização repetidamente atenta aos núcleos especiais, todos eles, como
sabeis, muito complexos nas suas propostas e graves na análise. Livros como
Ortografia do olhar (1996) e Reino da lua (2002) mereciam outra atenção, uma
atenção que, a não existir, pode induzir a mais recente leitura do livro da
autora em interpretações talvez menos acertadas. Não sendo dos livros de Graça Pires o que
mais me agradou, desde logo por centrar-se numa temática existencial que escapa
à minha sensibilidade, é um livro bem construído, poeticamente ousado – tendo
em conta, sobretudo, o carácter secular do tempo que vivemos – e contrastante,
como se querem todos os livros de poesia dignos desse nome. Abre com onze
poemas em prosa, poemas que são cartas, onde a autora, respigando duas
personagens bíblicas – Marta e Maria, - nos introduz no conflito impulsor da
actividade poética. Esse conflito é o da transposição das barreiras que separam
a luz da sombra, os olhos (órgão físico) da visão (acto mental), a terra do céu
ou, como sucede no episódio das duas irmãs evocadas, o material do espiritual.
Nas onze cartas de Marta a Maria aqui recriadas vislumbramos essa transposição
das razões que procuram justificar os gestos, a recusa de uma distinção que
impeça a entrega do olhar àquilo que o próprio olhar invoca no corpo íntimo da
visão, porque aqui a “razão” surge da entrega à contemplação, uma contemplação
que é o encontro com a «nitidez do
silêncio» (p.13). É curioso que seja a atarefada Marta, figura feminina
talvez mais presente e actual, quiçá interposição histórica do sujeito poético,
quem escreva a Maria. Mais do que escrever para
Maria, Marta escreve para si própria.
Estamos no campo de uma poesia que se assume tanto enquanto de autoconhecimento
como «um ritual de memórias» (p.
12), um autoconhecimento ao contrário da generalidade das práticas poéticas
actuais, que procura «não esquecer»
(p. 14). Porquê onze cartas? Fruto do acaso? Talvez não. Se sim é saborosa a
coincidência com o facto do «número onze, que parece mesmo uma chave da Divina
Comédia, [extrair] também o seu simbolismo da conjugação dos números 5 e 6, que
são o microcosmos e o macrocosmos, ou o Céu e a Terra» (Cf. Chevalier, J. e
Gheebrant, A.). Seja como for não é esse simbolismo a chave deste pequeno
livro. A segunda parte, intitulada Sombras,
desvela o que possa existir de simbólico nesta composição de Graça Pires. São
22 poemas (11+11) – ou 22 fragmentos de um longo poema, tanto faz, - onde o
«labirinto da luz» das onze cartas
precedentes encontra, já na actualidade o seu cais. A sombra surge como o lugar
do não-lugar, ou seja, como a imagem de uma inquietude que tenta resolver-se, a
inquietude de quem se encontra defronte à «inevitabilidade
da morte» (p. 27), a inquietude de quem busca a luz primaveril da
adolescência ou de quem procura a simplicidade de uma infância onde o conflito
não tinha lugar: «Agora que uma luz
difusa me fascina / retenho a idade em que não ousava / fazer do coração um
lugar de conflito» (p 27). Palavra com forte tradição poética, a sombra não
é, nestes poemas, o lugar do sonho, do pecado e do crime. É antes o lugar da
dúvida, da inquietação, de uma sede ainda por saciar que, só por milagre, não
resultou numa «solidão definitiva»
(p. 31). Cuidado, então, na leitura destes poemas. Na sua aparente fragilidade
residem tumultuosos sentimentos, dúvidas, perturbações, uma boca agrafada de gritos, uma lírica onde a feminilidade não é
de todo sinónimo de passiva contemplação:
Em noites de verão,
povoadas de sombras,
não ouso confessar a solidão.
O tempo altera na voz o destino da luz.
Os sons familiares tornam-se sombrios.
O luar, humidamente cheio,
encobre a raiva,
na boca agitada do poema.
A Imagem invertida da lua,
a ferir as mãos
e a desmesurar as palavras
arrasta-me o pensamento
até à perturbação.
Blogue “Antologia do Esquecimento”, 19 julho 2007
A poeta portuguesa Graça
Pires, em seu último livro, Não sabia
que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, brindou-nos com uma obra de
alta tensão poética. Raríssimas vezes pudemos observar uma poesia em que o
apuro formal e a emoção estivessem tão afinados e sintonizados. Arrebatador,
pungente, intenso e, sobretudo, lírico em uma época em que a ausência de
lirismo é tida como poesia de inovação, o último livro de Graça Pires nos faz
mergulhar em um fluxo vertiginoso, em que cada palavra parece sorver a
seguinte, com volúpia e ardor, formando uma urdidura coesa, um vitral de cores
sublimes e encantantes.
O livro de Graça divide-se
em duas partes. Na primeira encontramos onze poemas em prosa, no formato de
cartas, pelas quais a personagem bíblica Marta se dirige à sua irmã Maria. Na
segunda, intitulada simplesmente Sombras, podemos ler poemas versificados, em
que um eu lírico (continuação do mesmo do primeiro?) enreda-se nas sombras da
infância e da noite, em indagações sobre o sentido de existir. O livro, todo
simétrico e dicotómico, funciona como verdadeira arquitetura pacientemente
engendrada. À dilatação da primeira parte segue a concisão da segunda; por
outro lado tal cisão, mimeticamente, desvela o “ser ontológico” dessa poesia,
ou seja, a presença, na obra, de duas personagens a simbolizar sentidos
diversos. Enquanto Marta está fadada a viver no campo da ação, a irmã, Maria,
vive no reino da contemplação. Portanto estamos nos limites entre o fazer e o
ser. Ao empreender um mergulho nessa maneira de lidar com o mundo, Graça
elabora uma reflexão sobre o próprio ato poético. Dessa forma, para a autora,
poesia é a conjugação de uma prática (exaustiva elaboração, artesania) com uma
forma de contemplar, de sentir o mundo (raiz da sabedoria). O sentimento
poético (força telúrica da alma) coliga-se à ação de criar, de inventar.
Nesse aspecto, a autora
consegue um grande feito. Em uma época em que o lirismo tornou-se frio e, em
muitos casos, cirúrgico, Graça nos revela que a poesia é, antes de tudo,
sentimento, emoção, vida, transmutados em palavra. Desde Baudelaire, muitos
poetas apreenderam com pouca sabedoria a lição do escritor de Les fleurs du mal, que consistia em
esfriar as emoções, a fim de se alcançar uma perícia no labor, na feitura do
poema. Muitos acreditaram, com isso, que a poesia devia não mais traduzir o
sentimento trágico da vida ou as emoções fortes, de grande impacto. Essa lição
mal assimilada gerou a proliferação de textos insossos, inodoros, sem vigor ou
força lírica. Todavia os grandes poetas souberam se resguardar dessa cilada:
César Vallejo, Drummond, Pessoa, Kaváfis, Lorca foram grandes porque
mergulharam pela e com a palavra, naquele “coração selvagem da vida” delineado
por James Joyce. Pois bem, para Graça poesia é uma verdadeira entrega,
irrestrita, à vida no que ela tem de magnífica e terrível, de sublime e
sofrida. A poesia é feita das veias da existência, dessa condição humana e
misteriosa, limitada, mas ao mesmo tempo pródiga, pois é o verdadeiro terreno
da paixão. Aliás se há uma palavra que poderia designar, com precisão, a sua
escrita, essa palavra é justamente paixão. Paixão pelo amado, pela contemplação
do pequeno e infinito cotidiano, com seus pássaros, barcos, estevas e árvores,
Paixão pelo mistério da noite, pelo silêncio vivo do que é sagrado e pleno;
paixão pela memória, pela infância sempre a latejar e a pulsar o fio de suas
palavras. É justamente essa mesma paixão que podemos vislumbrar nesse fragmento
dessa belíssima carta de número 6:
[…]
Escrevo para não esquecer. As palavras náufragas de sombras. As
palavras sem amparo, desabrigadas, impacientes. A boca calada. A respiração
cavando silêncios. As mãos a pesarem tanto que exilei os gestos rente ao
coração. Poiso a cabeça sobre a mão direita e penso: para o encontrar de novo
recomeçaria tudo outra vez, andaria todos os caminhos, arriscaria a minha vida.
Hora após hora, ele regressa ao meu pensamento, e vem do lugar de todas as
ausências e tem nos braços a mesma curva onde os pássaros iniciam o primeiro
voo. Pedir-lhe-ia, agora, que só uma vez me dissesse: bebe a minha sede.
(p. 14).
Nesse fragmento, a autora
define, com precisão, o impacto poético dessas cartas. Elas são feitas, antes
de tudo, de impaciência. Impaciência no sentido de que essa poesia é marcada
por um frêmito elétrico, tenso, em que as palavras, num verdadeiro fluxo,
sorvem o leitor, enredam-no, levando-o ao centro do próprio existir, ao cerne
dos acontecimentos entrevistos pelo fio narrativo do livro, pelo sorvedouro das
imagens verbais sempre rutilantes e de grande beleza. Novamente, a essa tensão
no nível formal segue outra no plano ontológico: a persona poética, no caso
Marta, arrasta-se em indagações, em desassossegos, em perplexidades, que tornam
a vida sempre inédita, estranha, ternamente fantástica e encantadora. Marta
carrega aquela aura de devaneios tão bem postulada pelo filósofo francês Gaston
Bachelard: “o sonhador faz correrem ondas de irrealidade sobre o que era o
mundo real” (p. 165). Nesse aspeto, a autora soube captar, com mestria, o
sentido bíblico do milagre: a poesia é o milagre que faz a vida irromper com
todo o esplendor, com toda a sua totalidade intacta e intraduzível. Para Graça,
o mundo está sempre em nascimento, assim como o eu também.
Uma marca que muito nos
chama a atenção na poesia de Graça é a sua capacidade de dizer sempre de forma
inaugural. Graça faz da palavra, para lembrar Rimbaud, uma alquimia, uma
tessitura repleta de imagens de grande inventividade e beleza. Aliás o que caracteriza
a poesia da modernidade é precisamente essa busca incessante de uma linguagem
em estado de nascimento, de novidade plena. Nesse sentido para se afirmar tal
expressão nascente é preciso, por outro lado, renovar o ser e os sentidos. Só
se alcança uma escritura de plenitude, quando o ser do poeta germina
constantemente. Daí a busca, na obra da Graça, de uma infância viva, uma
infância a renovar sempre o existir e as percepções corpóreas. Dessa forma para
a poeta de Reino da lua, dizer algo pela primeira vez é ser pela primeira vez.
Tal característica marca toda a escrita da autora e podemos encontrá-la,
novamente com o mesmo fascínio, nesse seu último livro, como aqui observamos:
Sem pressa, formulo a urgência
de sombras inquietas
na neblina do olhar,
como se recuperasse um tempo
tão decisivo como a infância.
Circunscrevo recordações sem voz
e perdem-se-me, nas mãos,
os gestos de menina.
Persigo-lhe a imagem,
ou a sombra dessa imagem.
Os meus olhos doendo nos dela.
O meu rosto, medindo no seu rosto,
toda a intensidade da inocência. (p. 25)
Uma outra categoria da
poesia de Graça e que, de forma sublime podemos perceber neste seu derradeiro
livro, é a presença sagrada do amor. O amado abre uma fenda no universo e
permite a chegada plena do instante epifânico. Nesses momentos raríssimos, toda
a fragilidade da mulher esboroa-se, apaga-se. A vida toma-se de tal júbilo, de
tal intensidade, que a morte perde sua força, sua voracidade. As cores do mundo
intensificam-se, o que existe torna-se exaltado, grandioso. A força desses
momentos, por outro lado, escurece os demais, em que o homem querido se
distancia. Eis que a solidão surge e a noite ganha o peso das incertezas, bem
expressas pelo título do livro (Não sabia…). Na obra em questão, o amado é o
próprio Cristo, cuja singeleza e terno encanto são os símbolos vivos do amor
encarnado. Marta experimenta a solidão quando Cristo a repreende ou quando ela
percebe a sua perdileção por Maria. Eis, talvez, a nossa grande sorte, pois é
justamente essa “falta que ama” que motiva a escrita das cartas e nos propicia
essa série de poemas em prosa dos mais belos. A poesia nasce da falta, da
ausência, para restaurar a presença epifânica da própria palavra.
Para encerrar essa breve exposição, cito na íntegra, a carta número 8. Calamo-nos para que a poesia da Graça nos batize e, uma vez nos nomeando, nos integre na plenitude da própria vida
Não vou falar-te das vezes que morri, sufocada de sombras, tão capaz me sinto de morder as lembranças que intimidam minhas mãos. Ele entrou, subitamente, no meu sorriso esquivo e eu retornei, mansamente, à raiz da ternura, em multiplicado espanto. Por isso quero escrever, sem confidências, os vestígios da maresia nos meus olhos submersos nos dele e deixar que a fogueira que me arde no olhar ateie um lume mais nocturno. Perdi a inocência mal o avistei. Reconhecer-lhe-ia os passos à máxima distância, tão nítida se tornou para mim a sua sombra. Às vezes, de madrugada, a minha pele tinha o cheiro dele, como se me tivesse abraçado a noite inteira. Apetecia-me, então, roçar-lhe os dedos no peito, ou tomá-lo nos braços, como quem embala um filho. Diz-me tu: como evitar esta emboscada de me deixar dominar pela excessiva claridade do seu rosto? Dizem que aqueles que o seguiam traziam sobre os olhos um novo sistema solar, onde era possível ver no escuro todas as margens dos rios e ouvir no firmamento todo o silêncio do mundo. Mas eu não sabia que, em suas mãos, se abrigavam os barcos regressados da faina e que os pescadores recolhiam as redes nos seus dedos. Eu não sabia que o bando de pássaros que o seguia amainava os ventos e as águas nocturnas, para que o luar nos embalasse. Eu não sabia que lhe bastava olhar as conchas para salvar os náufragos, ou fitar os meus olhos para que eu me perdesse. (p. 16).
Alexandre Bonafim, poeta e Professor de literatura portuguesa
Blogue “Arquipélago do Silêncio”, 9 agosto, 2007
Vila Nova de Gaia, 19
novembro, 2007
Cara Amiga:
Nada, na sua poesia é
dissonante. O ritmo, quase isócrono, dos poemas da 2ª parte de “Não sabia que a
noite…” (mas também de “Quando as estevas entraram no poema”) expande-se em
andamento lento, em movimento ondulante, pausado, sem sobressaltos. O discurso
flui como quem deixa escapar a água da bica para o fundo do copo, que é o corpo
do poema.
Gostei sinceramente das
“Cartas de Marta”. Dir-se-ia que elas constituem um livro à parte – pela forma
utilizada, pelo ritmo, pela feição levemente narrativa, pela temática bíblica.
Eu diria que se trata de poemas em prosa, forma de que às vezes também me
sirvo, como verá quando ler “O mesmo nome” e, sobretudo, “Rodomel Rododendro”
(sobre este meu livro que acaba de ser publicado, pela Editora Campo das
Letras, um longo ensaio, “A quintessência musical da poesia: Rodomel Rododendro,
um poema sinfónico de Albano Martins” que é parte integrante da tese de
doutoramento do Professor brasileiro Jorge Valentim, defendida em 2004 na
Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Diz-me que espera aprender
comigo. Não se iluda. Comigo não aprenderá talvez grande coisa. Eu não saberei
dar-lhe lições. A minha poesia marginal em relação ao que por aí se faz (e fez,
na 2ª metade do séc. XX) não lhe servirá de modelo, certamente. Apercebo-me das
suas preferências pelas epígrafes dos livros que me envia. Nuno Júdice e Al
Berto são poetas interessantes, mas há outros…
Resumindo o que aqui fica
dito: foi uma agradável surpresa a descoberta da sua poesia. Mas por onde tem
andado o seu nome, que o não vejo nos lugares onde habitualmente os poetas se
mostram?
Um beijo do,
Albano
Martins, escritor
Carta manuscrita.
I
Avessa aos ditames da moda –
embora eu tenha certas dúvidas que em poesia os modelos de uma época se possam
estabelecer a partir do seu tempo presente -, ao invés dos cânones poéticos,
cuja função única parece ser a de não perturbar os propósitos ideológicos deste
contexto que é o nosso, desmesuradamente inumano, Graça Pires tem vindo, ao
longo do tempo, a consolidar uma obra, não só de rara beleza formal, mas também
inquietante relativamente aos grandes temas que aborda. E isto considerando
que, em poesia, o hiato entre forma e conteúdo apenas se justifica para fins
críticos e/ou didácticos. Gostaria, contudo, de ressalvar aqui que este assunto
dos “grandes temas” e da “beleza imagética” da poesia de Graça Pires, bebi-a eu
em dois autores que admiro, e destas coisas percebem mais do que eu. A
afirmação desta poesia tem sido feita, paulatinamente, sem a presunção oracular
dos que tudo julgam saber e com aquela forte fragilidade (ou frágil força se
preferirem) de que nos fala a poeta brasileira Maria Carpi em obras como “A
força de não ter força” e “O herói desvalido”. Por conseguinte este é, para
mim, um dos primeiros tópicos da poesia de Graça Pires e que nos surge mesmo
num dos seus títulos: Outono: lugar frágil”
“É sempre arriscado passar fronteiras” (Op. cit. P. 14)
“cada vez mais frágil. Cada vez mais íntima” idem, p. 42
Convém, no entanto, esclarecer que esta fragilidade não é o cadenciado esboroar dos desistentes. Nesta poesia não! Aqui há antes um sentir que não transige nos seus intentos, na sua exposição (e nunca imposição!) de um certo olhar, paradoxalmente sereno e ávido (aliás, a imagem da sede é recorrente na poesia de Graça Pires) sobre si, sobre o Outro, a natureza, a sociedade e até sobre a transcendência tenha ela nesta poesia a forma mais heterodoxa que tiver. Neste desvelamento de um dado percurso poético chegamos ao segundo tópico desta escrita: a recuperação do mundo interior. Mas esta não se apresenta aqui como um ensimesmamento à margem de toda a exterioridade; consciência e sentir, que, num maravilhador jogo de espelhos, apenas na oblíqua olhassem o real objectivo. Não, não é este o “mundo interior” que transparece nesta poesia, antes um outro porejando as mais íntimas conexões com a vida real dos homens. É Urbano Tavares Rodrigues que, na contracapa de “Ortografia do olhar” nos chama a atenção para o facto de em Graça Pires se assistir a um “tratamento profundo de grandes temas como o tempo e o amor” e, que me seja perdoada a soberba, a morte e a solidão, acrescento eu agora. Mas, e como já defendemos, se estes grandes temas estão sempre ligados ao real objectivo, é verdade que eles também se nos apresentam, e de modo iniludível, com um carácter abrangente – exemplo: o amor.
contra a vertigem de querer encontrar,
na tua mão, a linha da minha vida. É estranho.
Há agora um lugar onde é perigoso o amor”
In Conjugar afectos, p. 85
importantes do que este, enforma o solo matricial desta poesia.:
a) A nostalgia, frequentemente ligada a uma infância (ou inocência perdida):
Posso improvisar cantigas de embalar os medos
ou fabricar um idioma ilícito,
para denunciar a violenta cor da solidão.”
In Reino da Lua, p. 33
b) A solidariedade com o Outro
e o repúdio por toda a forma de injustiça:
dos abismos para gritar com Ulisses,
o desejo de ser livre e mortal
In Uma certa forma de errância, p. 67
“No fim
da primavera, há homens que enchem
as mão de terra para dizer trigo.
Lendas em desuso esquivam-se-lhes da voz.
No interior da fome, reconstroem a boca,
recuperando todas as expressões de indignação
e raiva. Nas suas queixas, hibernam os deuses
que lhes teceram a intriga do destino: tão efémeros
que resvalam nas palavras que omitem.”
In Quando as estevas entraram no poema, p. 33
para testar a perícia dos beligerantes.
Morre-se à queima-roupa, como se a vida
estivesse entrincheirada num contra-senso
onde a noção de dignidade se perde”
In Ortografia do olhar, p. 47
Constatamos que a visão do quotidiano dada pela poesia de Graça Pires, apresenta-se-nos com uma, por vezes, explícita normatividade em torno de valores fundamentais e fundantes de uma cultura, que, como a nossa, de base humanista, corre o risco de se afundar numa subtil forma de barbárie, dando lugar àquilo a que Peter Singer chama as sociedade baseadas no interesse próprio e na apropriação de bens materiais, o mais das vezes supérfluos. O quotidiano de Graça Pires almeja, essa Coisa que toda a poesia lírica vislumbra e da qual constantemente fala, é esse mundo alicerçado na reciprocidade dos amantes, na sede de Absoluto, na solidariedade com o Próximo, sobre com os que menos têm, na doçura de uma sã relação com o mundo natural… Por essa razão poderemos dizer, algo provocatoriamente: se quereis ler uma poesia que discorra de forma anódina e emasculada sobre o quotidiano (coisa que não fizerem nem Gedeão, nem O’Neill, nem Assis Pacheco, nem José Gomes Ferreira…), ou que radiografe de forma gélida e passiva as pizzarias, os homens que fazem a barba e quejandas situações, então não deveis ler Graça Pires, mas se procurais uma poesia que, através de imagens luminosas e filigranadas, fala de um dia-a-dia na sua radical interligação com o Todo Englobante (natureza, sociedade, o ser amado, a memória da infância…) então não deveis perder esta poesia.
II
“Disfarcei como pude, todo o assombro, que a
um tempo,
me culpava e absolvia.”
In Carta
4
“O meu coração é hoje uma ilha que, todos os
dias, percorro
de lés a lés à procura de mim mesma.”
In Carta 5
E esta última passagem é paradigmática, vemos Marta, enquanto continua executando os seus rotineiros trabalhos, esquadrinhando todos os recantos do seu coração, isto é, desembocando na grande preocupação (socrática) do autoconhecimento. E é assim, de modo poético e despretensioso, que Graça Pires supera a pseudodistinção: Acção/Pensar, até porque (se retirarmos os actos reflexos e involuntários) e se a Contemplação é também uma forma de Acção, a verdade é que esta última é indissociável do Pensar.
Estas onze cartas, embora
centrando-se na distinção já referida, apresentam-nos ainda outras funções
igualmente importantes:
a) Marta escreve para não esquecer e para melhor de conhecer. “Se te enviasse as cartas verias logo que foi para mim que as escrevi como um ritual de memórias.” (Carta 4). Aliás esta passagem ilustra o que temos dito: as cartas que nunca chegaram a ser enviadas a Maria, serviram como um instrumento ao serviço do pensamento de Marta. E ainda neste item: “As perguntas que te faço, que me faço, cavam-me no coração um espaço nocturno onde guardo todo o meu cansaço. Mais tarde folhearei estas cartas e lembrar-me-ei quem sou.” (carta 9)
b) Ela escreve para fugir à idade, à loucura, à dor… “Agora, enquanto escrevo esta carta, reparo que esqueci a minha idade.” (Carta 10); “Com o corpo em chamas eu ia, por vezes, até ao mar, só para ouvir de perto o rumor das fragas. Havia nos meus olhos a suspeita de outros lugares onde seria possível dançar sobre as mágoas, para que não doessem na memória.” (Carta 9);
c) Escreve, finalmente, para procurar um sentido, uma qualquer réstia de nexo para lá do que viveu: “Às vezes é preciso ignorar as leis da escrita, falar sem nexo, disfarçar as palavras indefesas.” (Carta 3); “Eu entreabri, com cuidado, a dupla teia dos lábios, desmanchando, uma por uma, as palavras sem transparência e fiquei em silêncio, como se a própria lucidez me sufocasse.” (Carta 10)
O que salva Marta, como se percebe no último excerto, aquilo que lhe concede a consciência do seu estar-no-mundo, é também o que a perde.
E Graça Pires entra aqui no estatuto do poeta, daquele que, como Marta, salvando-se pelas palavras (ou por poéticas cartas?), tendo por elas acesso a um Discurso do Essencial, por essas palavras se acaba por perder: “Mas eu não queria ser salva. Nunca quis sair ilesa desse cerco de fascínio.” (Carta 7). O poeta, assim com Marta, pelo Verbo adquire essa estranha consciência que, se por um lado é redentora (e não é por acaso que a figura de Lázaro transborda toda a Carta 11), por outro o marca com a nostalgia e a sede de saber “que a noite se pode incendiar nos seus olhos”. Se a escrita de Graça Pires, conforme se sublinhou na primeira parte deste texto, prima pela riqueza das imagens e pela forma refinada como estas entre si dialogam, parece-nos redutor confinar toda esta poética a um mero jogo imagético. Para além dessa refinada e finíssima tecedura, com Graça Pires entramos no mais recôndito da alma humana, com os seus anseios, a sua nostalgia, o seu interminável diálogo consigo própria, com a natureza, com o social…, dito de outra forma: seguindo os trilhos desta escrita conseguimos “um luminoso olhar sobre a noite”.
Apresentação do livro, 17 de maio de 2007