Labirintos.
Murça: Câmara Municipal, 1997
[…] Julgo que não devo errar muito se disser que um dos segredos deste livro agora premiado consiste na intuição hábil com que a autora procurou adaptar o mito cretense do Minotauro, monstro que foi encarcerado no Labirinto e mais tarde morto por Teseu com a ajuda do novelo de fio fornecido pela sua amada Ariadne, a alguns aspectos existenciais e sociais da vida moderna. Graça Pires chega a um paralelismo estreito entre esse monstro insaciado que foi o Minotauro e a avidez sem escrúpulos do consumismo actual, como poeticamente se exprime, por exemplo na p. 14. Às vezes os seus versos têm o sabor de uma máxima:
A sociedade de consumo manipula-nos.
Tornámo-nos culpados dos equívocos
da ruína, do nosso próprio envelhecer…
É por isso que na mesma
página apela a que “excomunguemos os deuses infalíveis” que podem bem ser os
novos teólogos do neoliberalismo do mercado. O modo que a nossa poeta nos
sugere para que nos libertemos das labirínticas presas modernas é precisamente
o esforço que cada um de nós deve fazer para encontrar, dentro ou fora de si,
aqueles fios (diríamos aquelas atitudes ou condições…) que nos conduzirão à
saída do labirinto da vida actual; este livro é bem o resultado desse esforço.
No caso da autora, os fios são estes versos, como diz na página 36:
Nos
meus dedos cintilam longuíssimos fios
de
um novelo de versos e de sonhos
com
que me quero salvar.
Lembremos, principalmente
àqueles que estão alheados do contexto epocal donde se originou o mito do Minotauro,
que este pertence a um reinado (o de Minos) que em muitos aspectos favoreceu um
modelo de sociedade perfeita ou quase… Quem me está a ouvir concordará que
estamos a uma enorme distância dessa (ou doutra) perfeição social e humana… E
uma das maneiras de nos salvarmos será resistir “ao frio programado a
rodear-nos o pescoço” conforme nos desabafa a poeta na p. 15.
A poesia foi sempre, por uma
via ou por outra, formas singulares de balões de oxigénio, de alerta, de
resistência. Mesmo sem aquela típica carga ideológica de décadas atrás.
“Não existimos para consentir/ frases inúteis em torno dos dias”
escreve Graça Pires na p. 14. Espero, esperamos que não seja inútil a leitura deste livro premiado, como o modo como cada leitor irá pô-lo em prática no quotidiano que lhe cabe viver. […]
Francisco
Martins
Na entrega do Concurso
Nacional de Poesia Fernão de Magalhães Gonçalves, 1997
A PALAVRA POÉTICA: RITUAL, CRIAÇÃO E EXORCISMO
O presente volume de poesia de Graça Pires toma como primeiro ponto de referência o Labirinto de Creta, sobre o qual decalca os múltiplos labirintos interiores que atravessam os textos e que os textos atravessam. Construído no diálogo com o mito e os seus protagonistas, o livro joga com duas formas distintas de os convocar, o que faz, nuns casos, pela referência directa, noutros pela activação de mecanismos de natureza analógica, desencadeadores de processos de identificação. A relação do sujeito poético com o mito antigo matiza-se, portanto, e obedece, umas vezes, à simples evocação, outras, à assunção de um inesperado protagonismo, noutras ainda, ao puro exercício da metáfora, levando a que o jogo da enunciação envolva a voz de alguém que ora surge implicado no que regista (“eu”, “nós”), ora ausente, tornado mero espectador de uma acção que lhe é estranha ou de que se alheia (“ele”, “eles).
Nos trinta e quatro poemas
que o constituem, o livro aparece como percurso através do imenso labirinto
desenhado pelo cepticismo em relação ao mundo – um mundo de “falsos profetas” e
“interditos anjos” (p. 28), limitado pelas “convenções quotidianas” (p. 25),
manipulador, “computorizado” (p. 15) -, pela decepção em relação ao amor – “já
não és senão o falso alarme do meu corpo”, “penso no amor / como se de uma
fraude se tratasse” (p. 23) -, pela nostalgia em relação à perdida harmonia
original, estivesse ela ligada à vivência feliz da infância – “A mãe: o colo
côncavo de afectos. / Labirinto alagado de ternura / no alvoroço da memória”
(p. 6) – ou à capacidade individual de conhecer e designar - “Hoje sei que
nunca se repetirá a intacta perfeição / da primeira palavra com que nomeei a
vida” (p. 10). Desse dédalo complexo e plural como que o sujeito intimamente se
defronta apenas a palavra pode ser chave, veículo de libertação: dizer é, aqui,
tomar consciência e a consciência é condição sine qua non da ultrapassagem das barreiras erguidas no caminho.
Ler o livro, tal como escrevê-lo, é encontrar a saída do labirinto, depois de
descobrir a ambivalência que o caracteriza enquanto lugar de prova e,
simultaneamente, de revelação de uma personalidade. Redentora, a palavra
permite a transmutação do medo em sonho e por isso exercitá-la é esconjurar
fantasmas e adquirir a confiança indispensável à auto-afirmação.
O volume começa com um poema
ordenado em torno de um rito de morte abrindo para a vida: da contradição entre
o “fogo funerário” e a possibilidade de “tornar vivo “o gesto criador dos
deuses” (p. 2) emerge a aproximação da palavra poética ao sagrado, graças ao
ritual e à magia que se volvem criação. Logo em seguida (p. 3), a evocação de
um percurso afectivo individual é metaforizada pelo texto, ele próprio
labirinto que atemoriza, mas onde é possível encontrar pontos de referência: as
letras, os vocábulos. Com base neles se processa todo o investimento subjectivo
posterior, materializado nos versos dos poemas que se vão sucedendo e deixando
entrever, por entre hesitações e ocasionais recuos, o avanço em direcção à luz,
à liberdade, à redenção. O exercício da escrita identifica-se com a íntima viagem
do sujeito em construção: para cumprir a “interior travessia do sentimento”, há
que “sulcar a página” e descobrir que o “labirinto dos versos” é feito das “sílabas
de um sonho” (p. 12).Esta descoberta é tanto mais significativa quanto é certo
que constitui o suporte sobre o qual se edifica a superação das contradições
que habitam esse ser que sempre tende a oscilar entre os polos negativo e
positivo da própria existência a coberto da máscara “com que [se] desfigur[a] e
transfigur[a]” (p. 11) -, que quase sucumbe ao desespero, à indiferença, à
violência muda, mas nem por isso deixa de secretamente acreditar no poder regenerador do amor e da
sensualidade, na fraternidade, na capacidade de revolta contra a anulação e a
rotina. E assim, no termo da viagem, esse “eu” que a si mesmo se busca, que uma
vez mais ritualiza a poesia, ao percorrer “os fonemas como se dançasse”, e em
cujos dedos “cintilam longuíssimos fios / de um novelo de versos e sonhos” (p.
36), descobre-se enfim Ariadne, dividida entre o espanto e a confiança, no
limiar de uma harmonia reencontrada.
Professora
Doutora Cristina Almeida Ribeiro
(escrito para ser o prefácio
do livro, que não foi possível incluir).
A voz plural como o silêncio
Quem quiser contactar com o
que melhor se vai fazendo na novíssima poesia valerá a pena ir prestando
atenção aos volumes que resultam de concursos promovidos por algumas
autarquias. Um bom exemplo é o Concurso Nacional de Poesia Fernão Magalhães
Gonçalves, da Câmara Municipal de Murça, em homenagem a um poeta mais do que
prezável, desaparecido em 1988. A vencedora da segunda edição daquele galardão
foi Graça Pires com o livro “Labirintos”, o quarto título desta autora, natural
da Figueira da Foz. O eixo do livro é o mito de Ariadne e Teseu – o herói grego
que matou o Minotauro, senhor do labirinto de Creta -, que a autora transporta
para o universo da própria linguagem (o fio de Ariadne é «uma cadeia de
vocábulos no labirinto do texto») e da criação poética. Aliás, o poema de
abertura é programático na medida em que se pretende «tornar vivo dentro das
palavras / o gesto criador dos deuses». Graça Pires remete o leitor para um
espaço em que dizer é agir, a palavra reinstaura-se como performativa, mágica,
um acto de religação - «dir-se-ia ser a palavra o cordão umbilical / que põe em
uníssono as mãos e os gestos /, rumo à urgência de um tempo de absolvição». Graça
Pires explora ainda de outra forma as potencialidades simbólicas das
personagens gregas. «Parecia imortal o Minotauro. / Um homem e uma mulher o
debelaram»: talvez não seja demasiado forçado entreler aqui uma referência, não
tanto a Teseu e Ariadne, mas a Adão e Eva capazes de triunfar sobre o mal, num
regresso ao paraíso numa conquista do «tempo de absolvição», atrás referido.
Aliás os versos seguintes definem um cenário genesíaco e eufórico - «um fio de
fogo a iluminar-lhes / os corpos: terra virgem irrigada de volúpia / ou bando
de pássaros no topo da língua / reacendendo a noite na alquimia das sombras». Um
outro labirinto em que o texto se embrenha é o da memória - «As paredes
repletas de lembranças. / A mãe: o colo côncavo de afectos. / Labirinto alagado
de ternura / no alvoroço da memória» e também o dédalo da vida urbana, das
tecnologias e rotinas desumanizantes - «Multidão anónima, individual,
insondável. / Geografia de uma orfandade interior. / Paradoxal destino de aves
migratórias». A viagem pelos labirintos prossegue até coincidir com o próprio
sujeito e as suas emoções - «Mudo as regras do jogo sem avisar ninguém»; «E a
minha voz tornou-se tão plural como o silêncio». Depois de «Poemas» (1990),
«Outono: lugar frágil» (1994), «Ortografia do olhar» (1996) Graça Pires
continua o seu percurso na linha de Sophia de Mello Breyner (aliás presente no
livro através de uma epígrafe de «O Nome das Coisas», talvez de uma forma menos
solar. […]
Nuno Morais
Entre labirintos
“As conchas. / Saberemos um
dia como são frágeis. / Sabem de cor os cascos dos navios. / Confundem-se com
as mãos, na maré-baixa. / Pressentem o fim do verão / pelo morrer dos peixes no
labirinto dos corais. / Entre âncoras e algas navegam. / Tão leves, que o vento
se perturba”, da poesia de Graça Pires. “As conchas”.
E foi com poemas como este
que Graça pires se sagrou vencedora absoluta do II Concurso Nacional de Poesia
Fernão Magalhães Gonçalves que a Câmara Municipal de Murça patrocina, editando
a obra vencedora.
De seu nome “Labirintos”,
sob este título se reúnem poemas que nos falam de saberes terrenos a pretexto
de deuses que pretendemos no Olimpo… “Contemporâneo dos deuses é o poeta” ou
“Há falsos profetas a levante do destino” são apenas dois títulos felizes de
uma série de poemas inspirados.
“Correio da Manhã”, 8
janeiro de 1998