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quinta-feira, 7 de abril de 2022

LABIRINTOS

 


Labirintos. Murça: Câmara Municipal, 1997


[…] Julgo que não devo errar muito se disser que um dos segredos deste livro agora premiado consiste na intuição hábil com que a autora procurou adaptar o mito cretense do Minotauro, monstro que foi encarcerado no Labirinto e mais tarde morto por Teseu com a ajuda do novelo de fio fornecido pela sua amada Ariadne, a alguns aspectos existenciais e sociais da vida moderna. Graça Pires chega a um paralelismo estreito entre esse monstro insaciado que foi o Minotauro e a avidez sem escrúpulos do consumismo actual, como poeticamente se exprime, por exemplo na p. 14. Às vezes os seus versos têm o sabor de uma máxima:

 

A sociedade de consumo manipula-nos.

Tornámo-nos culpados dos equívocos

da ruína, do nosso próprio envelhecer…

 

É por isso que na mesma página apela a que “excomunguemos os deuses infalíveis” que podem bem ser os novos teólogos do neoliberalismo do mercado. O modo que a nossa poeta nos sugere para que nos libertemos das labirínticas presas modernas é precisamente o esforço que cada um de nós deve fazer para encontrar, dentro ou fora de si, aqueles fios (diríamos aquelas atitudes ou condições…) que nos conduzirão à saída do labirinto da vida actual; este livro é bem o resultado desse esforço. No caso da autora, os fios são estes versos, como diz na página 36:

 

Nos meus dedos cintilam longuíssimos fios

de um novelo de versos e de sonhos

com que me quero salvar.

  

Lembremos, principalmente àqueles que estão alheados do contexto epocal donde se originou o mito do Minotauro, que este pertence a um reinado (o de Minos) que em muitos aspectos favoreceu um modelo de sociedade perfeita ou quase… Quem me está a ouvir concordará que estamos a uma enorme distância dessa (ou doutra) perfeição social e humana… E uma das maneiras de nos salvarmos será resistir “ao frio programado a rodear-nos o pescoço” conforme nos desabafa a poeta na p. 15.

A poesia foi sempre, por uma via ou por outra, formas singulares de balões de oxigénio, de alerta, de resistência. Mesmo sem aquela típica carga ideológica de décadas atrás.

“Não existimos para consentir/ frases inúteis em torno dos dias” 

escreve Graça Pires na p. 14. Espero, esperamos que não seja inútil a leitura deste livro premiado, como o modo como cada leitor irá pô-lo em prática no quotidiano que lhe cabe viver. […]

 

Francisco Martins

Na entrega do Concurso Nacional de Poesia Fernão de Magalhães Gonçalves, 1997







A PALAVRA POÉTICA:  RITUAL, CRIAÇÃO E EXORCISMO

O presente volume de poesia de Graça Pires toma como primeiro ponto de referência o Labirinto de Creta, sobre o qual decalca os múltiplos labirintos interiores que atravessam os textos e que os textos atravessam. Construído no diálogo com o mito e os seus protagonistas, o livro joga com duas formas distintas de os convocar, o que faz, nuns casos, pela referência directa, noutros pela activação de mecanismos de natureza analógica, desencadeadores de processos de identificação. A relação do sujeito poético com o mito antigo matiza-se, portanto, e obedece, umas vezes, à simples evocação, outras, à assunção de um inesperado protagonismo, noutras ainda, ao puro exercício da metáfora, levando a que o jogo da enunciação envolva a voz de alguém que ora surge implicado no que regista (“eu”, “nós”), ora ausente, tornado mero espectador de uma acção que lhe é estranha ou de que se alheia (“ele”, “eles).

Nos trinta e quatro poemas que o constituem, o livro aparece como percurso através do imenso labirinto desenhado pelo cepticismo em relação ao mundo – um mundo de “falsos profetas” e “interditos anjos” (p. 28), limitado pelas “convenções quotidianas” (p. 25), manipulador, “computorizado” (p. 15) -, pela decepção em relação ao amor – “já não és senão o falso alarme do meu corpo”, “penso no amor / como se de uma fraude se tratasse” (p. 23) -, pela nostalgia em relação à perdida harmonia original, estivesse ela ligada à vivência feliz da infância – “A mãe: o colo côncavo de afectos. / Labirinto alagado de ternura / no alvoroço da memória” (p. 6) – ou à capacidade individual de conhecer e designar - “Hoje sei que nunca se repetirá a intacta perfeição / da primeira palavra com que nomeei a vida” (p. 10). Desse dédalo complexo e plural como que o sujeito intimamente se defronta apenas a palavra pode ser chave, veículo de libertação: dizer é, aqui, tomar consciência e a consciência é condição sine qua non da ultrapassagem das barreiras erguidas no caminho. Ler o livro, tal como escrevê-lo, é encontrar a saída do labirinto, depois de descobrir a ambivalência que o caracteriza enquanto lugar de prova e, simultaneamente, de revelação de uma personalidade. Redentora, a palavra permite a transmutação do medo em sonho e por isso exercitá-la é esconjurar fantasmas e adquirir a confiança indispensável à auto-afirmação.

O volume começa com um poema ordenado em torno de um rito de morte abrindo para a vida: da contradição entre o “fogo funerário” e a possibilidade de “tornar vivo “o gesto criador dos deuses” (p. 2) emerge a aproximação da palavra poética ao sagrado, graças ao ritual e à magia que se volvem criação. Logo em seguida (p. 3), a evocação de um percurso afectivo individual é metaforizada pelo texto, ele próprio labirinto que atemoriza, mas onde é possível encontrar pontos de referência: as letras, os vocábulos. Com base neles se processa todo o investimento subjectivo posterior, materializado nos versos dos poemas que se vão sucedendo e deixando entrever, por entre hesitações e ocasionais recuos, o avanço em direcção à luz, à liberdade, à redenção. O exercício da escrita identifica-se com a íntima viagem do sujeito em construção: para cumprir a “interior travessia do sentimento”, há que “sulcar a página” e descobrir que o “labirinto dos versos” é feito das “sílabas de um sonho” (p. 12).Esta descoberta é tanto mais significativa quanto é certo que constitui o suporte sobre o qual se edifica a superação das contradições que habitam esse ser que sempre tende a oscilar entre os polos negativo e positivo da própria existência a coberto da máscara “com que [se] desfigur[a] e transfigur[a]” (p. 11) -, que quase sucumbe ao desespero, à indiferença, à violência muda, mas nem por isso deixa de secretamente acreditar  no poder regenerador do amor e da sensualidade, na fraternidade, na capacidade de revolta contra a anulação e a rotina. E assim, no termo da viagem, esse “eu” que a si mesmo se busca, que uma vez mais ritualiza a poesia, ao percorrer “os fonemas como se dançasse”, e em cujos dedos “cintilam longuíssimos fios / de um novelo de versos e sonhos” (p. 36), descobre-se enfim Ariadne, dividida entre o espanto e a confiança, no limiar de uma harmonia reencontrada.

 

Professora Doutora Cristina Almeida Ribeiro

(escrito para ser o prefácio do livro, que não foi possível incluir).








A voz plural como o silêncio 

Quem quiser contactar com o que melhor se vai fazendo na novíssima poesia valerá a pena ir prestando atenção aos volumes que resultam de concursos promovidos por algumas autarquias. Um bom exemplo é o Concurso Nacional de Poesia Fernão Magalhães Gonçalves, da Câmara Municipal de Murça, em homenagem a um poeta mais do que prezável, desaparecido em 1988. A vencedora da segunda edição daquele galardão foi Graça Pires com o livro “Labirintos”, o quarto título desta autora, natural da Figueira da Foz. O eixo do livro é o mito de Ariadne e Teseu – o herói grego que matou o Minotauro, senhor do labirinto de Creta -, que a autora transporta para o universo da própria linguagem (o fio de Ariadne é «uma cadeia de vocábulos no labirinto do texto») e da criação poética. Aliás, o poema de abertura é programático na medida em que se pretende «tornar vivo dentro das palavras / o gesto criador dos deuses». Graça Pires remete o leitor para um espaço em que dizer é agir, a palavra reinstaura-se como performativa, mágica, um acto de religação - «dir-se-ia ser a palavra o cordão umbilical / que põe em uníssono as mãos e os gestos /, rumo à urgência de um tempo de absolvição». Graça Pires explora ainda de outra forma as potencialidades simbólicas das personagens gregas. «Parecia imortal o Minotauro. / Um homem e uma mulher o debelaram»: talvez não seja demasiado forçado entreler aqui uma referência, não tanto a Teseu e Ariadne, mas a Adão e Eva capazes de triunfar sobre o mal, num regresso ao paraíso numa conquista do «tempo de absolvição», atrás referido. Aliás os versos seguintes definem um cenário genesíaco e eufórico - «um fio de fogo a iluminar-lhes / os corpos: terra virgem irrigada de volúpia / ou bando de pássaros no topo da língua / reacendendo a noite na alquimia das sombras». Um outro labirinto em que o texto se embrenha é o da memória - «As paredes repletas de lembranças. / A mãe: o colo côncavo de afectos. / Labirinto alagado de ternura / no alvoroço da memória» e também o dédalo da vida urbana, das tecnologias e rotinas desumanizantes - «Multidão anónima, individual, insondável. / Geografia de uma orfandade interior. / Paradoxal destino de aves migratórias». A viagem pelos labirintos prossegue até coincidir com o próprio sujeito e as suas emoções - «Mudo as regras do jogo sem avisar ninguém»; «E a minha voz tornou-se tão plural como o silêncio». Depois de «Poemas» (1990), «Outono: lugar frágil» (1994), «Ortografia do olhar» (1996) Graça Pires continua o seu percurso na linha de Sophia de Mello Breyner (aliás presente no livro através de uma epígrafe de «O Nome das Coisas», talvez de uma forma menos solar. […]

 

Nuno Morais








Entre labirintos 

“As conchas. / Saberemos um dia como são frágeis. / Sabem de cor os cascos dos navios. / Confundem-se com as mãos, na maré-baixa. / Pressentem o fim do verão / pelo morrer dos peixes no labirinto dos corais. / Entre âncoras e algas navegam. / Tão leves, que o vento se perturba”, da poesia de Graça Pires. “As conchas”.

E foi com poemas como este que Graça pires se sagrou vencedora absoluta do II Concurso Nacional de Poesia Fernão Magalhães Gonçalves que a Câmara Municipal de Murça patrocina, editando a obra vencedora.

De seu nome “Labirintos”, sob este título se reúnem poemas que nos falam de saberes terrenos a pretexto de deuses que pretendemos no Olimpo… “Contemporâneo dos deuses é o poeta” ou “Há falsos profetas a levante do destino” são apenas dois títulos felizes de uma série de poemas inspirados.

 

“Correio da Manhã”, 8 janeiro de 1998