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sábado, 28 de maio de 2022

UMA VARA DE MEDIR O SOL


Uma vara de medir o sol. Lisboa: Coisas de ler, 2018


 

Com a luz nas mãos, do corpo pulsante à claridade solar


Notas de leitura ao livro Uma Vara de Medir o Sol, de Graça Pires

De pé, demoradamente invocando

o grito do destino, somos a sombra

de uma vara, presa à inclinação do sol,

que define a vertigem que nos derruba

e que nos ergue.

Graça Pires, em Uma Vara de Medir o Sol

 

O Sol, estrela central do sistema solar é, também, âmago da Poesia de Graça Pires.

 

Quando a autora me convidou para escrever umas palavras sobre o seu livro Uma Vara de Medir o Sol, senti um feliz desafio, o privilégio de traçar umas linhas sobre a intensa claridade que a autora nos oferece. Por outro lado, o título liga-se de imediato ao nome da Colecção de poesia em que agora se integra — Clepsydra1 — sugerindo um encontro feliz com o projecto de poesia em que tenho vindo a colaborar com a editora Coisas de Ler.

Esta é a vigésima publicação da autora e o seu décimo nono livro, embora sendo uma reedição, trata-se da primeira vez que é editado em Portugal (a primeira edição brasileira de 2012, teve a chancela da editora Intermeios de São Paulo). Nascida em 1946 e Licenciada em História, Graça Pires é detentora de cerca de nove prémios literários reconhecidos, convivendo com a sua já extensa publicação e o seu talento literário, sem exuberâncias. Revela-se na poesia com a obra Poemas, em 1990 (editora Vega), publicada após ter recebido o Prémio Revelação de Poesia da APE, em 1988. Em 1993, recebe o Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama, com a obra Labirintos, que virá a ser publicada em 1997, numa edição da Câmara Municipal de Murça que lhe atribuiu o prémio Fernão Magalhães Gonçalves. No mesmo ano de 1993, recebe o Prémio Nacional de Poesia da Vila de Fânzeres, para Outono: Lugar Frágil, livro publicado pela Junta de Freguesia de Fânzeres, no mesmo ano. A premiação das suas obras de poesia, repete-se com Ortografia do Olhar (1995), Conjugar Afectos (1996), Uma certa forma de errância (2003), Quando as Estevas entraram no Poema (2004), O silêncio: lugar habitado (2008). Ainda que várias vezes premiada, denotando o gosto unânime dos seus leitores, é “(…) surpreendente e contraditório o facto de ser simultaneamente uma figura discreta da poesia portuguesa e do panorama crítico literário, sempre tão “urgente” nas suas descobertas e revelações literárias.” (Maria João Cantinho, em apresentação do livro Poemas Escolhidos 1990–2011).

 

Se a medição da inclinação do Sol (2), quer pela vara (gnômon 3) ou por um relógio de água (Clepsydra) na ausência daquele, sugeria um modo de orientação cronológica daquilo que se convencionou chamar “tempo”, no presente livro a autora Graça Pires traz-nos a evocação de um instrumento antigo com recurso a fontes poéticas, à forma tão própria de abraçar as preocupações inerentes ao humano e ao seu meio com a transversal corrente da palavra poética. Natureza e humano interagindo com aspectos psicológicos, sociais e culturais marcadamente presentes nas imagens que Graça Pires nos oferece. Vejamos o poema que se segue:

Há lugares que têm a feição

das coisas instáveis e perecíveis.

Lugares sobrepovoados

onde os gatos vagueiam em silêncio

como se ouvissem os passos dos mortos.

Lugares com ruas sem saída e casas precárias.

Lugares que são faca e cinza,

lume e vento, lixo e medo.

Lugares onde empalidecem os dias

e as pessoas e os deuses, cada vez mais falíveis.

(Graça Pires, em Uma Vara de medir o sol)

Neste poema a autora mostra-nos a condição de alguns “lugares sobrepovoados”, traçando o mundo degradado e perecível, em que vivemos, com metáforas reveladoras de uma sociedade onde convivem guetos, miséria e morte. Atente-se às palavras “medos”, “lixo”, “cinza” e “silêncio” e aos dois últimos versos “Lugares onde empalidecem os dias/ e as pessoas e os deuses, cada vez mais falíveis.” (GP). Os poetas têm uma função social primordial e necessária, como já referia Georges Bataille, quando a humanidade vê negada a possibilidade de existir e transpor os limites do possível, limitada que está a sua voz perante políticas sistemáticas de silenciamento, decorrentes da agressividade dos mercados ou por questões de mentalidade economicista e desumana.

 

Este é um livro que é também lugar construído como um processo de energias conscientes e “inconscientes”, numa dinâmica criativa e reflexiva em que se foram vincando problemáticas ambientais importantes que têm origem na cisão que o “progresso” vem instalando entre a natureza e o humano. Este é um dos temas flagelo do nosso tempo, a que os poetas não se deveriam furtar, e a que Graça Pires faz jus trazendo a claridade do seu corpo poético a este livro com que nos presenteia e chama a atenção.

 

A propósito da luz dos lugares, diz-nos António Salvado num seu poema com o título lugar: “Onde a flor seja gravidez de cravos/e se descubram gritos das montanhas/ a traçar rios, mares, continentes. /Onde o sol não se esconda porque não/ e a claridade seja eternidade/ e a eternidade seja fé e pão. (…)” (A.S, em La hora sagrada, p. 68). Assim é a poesia de Graça Pires “fé” e “pão”, hino silencioso do corpo ancorado à palavra. Do corpo onde nasce a poesia de Graça Pires, um jogo de margens necessárias articula meticulosamente emoções e raízes num quotidiano que oscila entre o lírico, o social e o metafísico.

Não foi em vão que Graça Pires seleccionou os versos de Albano Martins para abrir o seu livro. A “Casa” esse lugar herdado e por nós habitado é também passado, presente e futuro, tempo-lugar vincado pela acção humana e por todos os condicionalismos envolventes.

Conta-nos a autora:

Antes do homem havia a terra

Geografia mágica, sagrada

Que, na luz e na treva, explodiu

De espanto e guardou, milenarmente,

Os mistérios da vida e da morte.

Depois da terra veio o homem.

E o homem tornou-se um morador incauto

E perdeu o paraíso onde agora os deuses,

Quando passam, desviam o olhar.

(GP, em Uma Vara de Medir o Sol)

 

Aqui Graça Pires mostra a ruptura entre a natureza e o humano e o consequente desequilíbrio, “E o homem tornou-se um morador incauto//E perdeu o paraíso onde agora os deuses, / Quando passam, desviam o olhar.”

Se o corpo é um campo de memórias vive-se com ele a percepção do desamparo e do abismo, dos medos com que somos confrontados no planeta azul. E se a criação mostra aos poetas um lugar liminar, entre o ser e o não-ser, dando-lhe recursos de permanente mutação, face ao mundo exterior, os receios persistem em angústias sem horizonte onde se estreitam as janelas de interacção reparadora.

Este livro de uma imensa claridade com que a poeta já nos habituou em todas as suas obras, ressurge entre metáforas metalinguísticas imprevistas e uma linguagem simples, sinal de depurada maturação, de um exercício de escrita em busca do “Absoluto” que a poesia sugere representar na “máxima condensação da linguagem humana” (Eduardo Lourenço, em Tempo e Poesia).

Corpo-espaço, desassossego e espanto, testemunho paradoxal de um mundo moribundo que se faz voz precisa na poeta. Nos poemas de Graça Pires, as palavras são já acção transformadora, lente lúcida e transparente da poeta descobrindo as manhãs, o futuro.

 

A palavra mede aqui a inclinação do sol na terra e no humano revelando a extensão da sombra, mas essencialmente, o seu contraste. Reflexo de si e dos outros a autora cria a partir de uma geografia de sentidos de um quotidiano assimilado e vertido na água do poema.

 

Conheço a obra da poeta e a autora e posso referir que nela a ambivalência onírica e melancólica é seciada por uma semente “amarga” que velozmente se ilumina com a palavra que incide na página, com o sol que faz eclodir a sua poeticidade. “Só a palavra poética é libertação do mundo.” (Eduardo Lourenço, idem).

 

Apesar da solidão e do silêncio sempre presentes na escrita da autora, esta nunca está só, no sentido literal da palavra. Acompanham-na todas as nuances do mundo vivido, por viver e, ainda, o dos leitores presentes neste círculo próximo da palavra poética que ao leitor é oferecido, uma espécie de “encarnação sensível do Infinito no finito” uma das descrições do acto poético como nos refere Eduardo Lourenço.

 

Graça Pires recorre a instrumentos antigos, move o seu arado lavrando a terra poética com a transparência e a intensidade de autores como Daniel Faria, Herberto Helder ou Rilke.

 

Se por um lado a riqueza metafórica da poesia da autora a aproxima de Herberto Helder naquilo que Maria Cantinho afirma ser “uma componente alucinatória fortíssima” e, ainda, se na poesia de Herberto Helder encontramos uma linha que se estende do mítico ao utópico, em Graça Pires o fluxo poético estende-se do concreto (quotidiano) ao utópico assente nas mãos do humano e por isso possível de transformar. Vejamos alguns versos dos dois autores:

 

De Herberto Helder,

“Um poema cresce inseguramente

na confusão da carne,

sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,

talvez como sangue

ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência

ou os bagos de uva de onde nascem

as raízes minúsculas do sol. (…)

(Herberto Helder, Sobre um poema).

 

Da leitura da obra de Graça Pires reconheço na dinâmica pulsante da sua poesia, um fluxo veloz, “um grito do destino” “que define a vertigem que nos derruba/ e que nos ergue” e esse movimento ou força em que progride o poema aproxima-a mais de Daniel Faria com os seus instrumentos de lavoura e a sua arte metafórica tão próxima do sol, como um “candeeiro branco” “que se ergue entre as mãos” (Daniel Faria, em Poesia), onde julgo encontrar algumas afinidades entre escritas e vocações. Se não consegues mudar o teu mundo, imagina essa possibilidade com a tua solidão:

 

De Daniel Faria,

Escrevo do lado mais invisível das imagens

Na parede de dentro da escrita e penso

Erguer à altura da visão o candeeiro

Branco da palavra com as mãos

Como paveia atrás do segador

Vejo os pés descalços dos que morrem sem nunca terem provado o pão

Grito-lhes: imaginai o que nunca tivestes nas mãos

Correi. Como o segador seguindo o segador

Numa ceifa terrestre, tombando. Digo:

Imaginai

(DF, Poesia)

Para Graça Pires a poesia é branca e move-se a uma velocidade infinita que encontro na poesia de Daniel Faria: “Correi. Como o segador seguindo o segador” (DF), “nessa vertigem e nessa claridade repousa a nossa existência sem repouso” refere Eduardo Lourenço (ibidem). No entanto, a escrita de Graça Pires é peculiar no que se liga à tentativa de modelação do quotidiano através da poesia que nela se faz voz terceira, “Aguardamos uma luz de seiva/ que reacenda a treva que nos cega” (GP, em Uma Vara de medir o sol)

 

Diz a autora no poema com que iniciei este texto,

De pé, demoradamente invocando/o grito do destino, somos a sombra /de uma vara, presa à inclinação do sol,/ que define a vertigem que nos derruba/ e que nos ergue.

(GP, em Uma Vara de medir o sol)

 

Diria Rilke sobre o tema de Uma Vara de Medir o Sol:

(…) Mal notam

Como arde tudo o que as suas mãos tocam,

De modo que quando se à sua última orla chegar

Não a podem segurar sem se queimar. (…)

(em O Livro de Horas, p. 273)

 

Em Uma Vara de Medir o Sol, a poesia é material suspenso do desejo de uma nova transformação perante a destruição do mundo. Assistimos neste livro a uma chamada de atenção ao leitor para as grandes ameaças do planeta e à aspiração de perpetuar o devir, a luz do sol em manhãs vindouras, pois somos responsáveis quando “O chão arde em nossos passos, vítimas/e culpados do desvario dos caminhos.” (Graça Pires, em Uma Vara de Medir o Sol).

E refere, ainda, a autora,

“Por quem tocam os sinos a rebate

quando estremecemos voltados para a terra?”

(GP)

 

Graça Pires inscreve a sua voz e o seu silêncio numa escrita-apelo transversal à Terra, à Humanidade, a todos os tempos, à Vida.

 

Gisela M. Gracias Ramos Rosa, Poeta

Prefácio do livro, novembro, 2018

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Autores visitados: António Salvado, Daniel Faria, Eduardo Lourenço, Georges Bataille, Graça Pires, Herberto Helder, Maria João Cantinho, Rainer Maria Rilke, Ronaldo Cagiano, Victor Oliveira Mateus.

*

clepsydra ou relógio de água foi um dos primeiros sistemas criados pelo homem para medir o tempo. Trata-se de um dispositivo movido a água, que funciona por gravidade, no mesmo princípio da ampulheta (de areia).

O relógio de sol é o mais antigo instrumento de medição do tempo, foi inventado há pelo menos 3.500 anos. Nele, as horas são indicadas pela sombra que o gnômon (objeto que, pela direção ou comprimento de sua sombra, indica a hora do dia numa superfície horizontal.) faz na superfície do relógio.

O Gnômon é a parte do relógio solar que possibilita a projeção da sombra.







Um conjunto de poemas curtos oscilando entre a sextilha e a décima. Embora hoje exceção da regra, num poema irregular de 12 versos. Os poemas são formados por uma única estrofe com versos livres. (Estou a reler Whitman que é o chamado pai do verso livre!)

Estamos perante uma portentosa leitura metafórica, onde o leitor, colhido por um irrefreável jogo de imagens e refrações, pode correr o risco de se deixar envolver por um certo maravilhamento especular do sensível, livrando-se assim de outro níveis de leitura, como, por exemplo, o que nos poderá ser dado mais pelo intelecto do que pela sensibilidade, ou seja, a procura do sentido para lá da harmonia e dos jogos formais. Superada “esta armadilha” (?) (lembra-me Agustina!) imposta pelo corpo textual, apercebemo-nos que estamos perante uma obra:


a) Cujos referentes são a marca de água da poeta: os rios, as árvores, os pássaros, a chuva, etc.: uma predominância habilmente conciliada com o mundo humano e social;


b) Obra esta que, apesar de derivações e entremeios estilísticos, apesar desses jogos de velamentos múltiplos, apesar ou sobretudo devido a eles, desvela a inquietação fundamental deste livro, a questão ecológica e ambiental.

No entanto, nessa espinha dorsal do livro, não estamos perante uma enumeração simples que vai sendo desfiada ao longo da obra. Não a estrutura é bem mais complexa:

1) Um dos elementos fundamentais aqui é a “sede”

De seda. Da sede: gota a gota” (. 11)

uma promessa na secreta aventura das sementes / e o cheiro dos pomares alastra sobre a sede” (p. 23)

O pão ázimo lhe sufocou a fome. / A chuva lhe esquecia a sede” (p. 40)

“(…) e é lodoso o fio de água / vertido pela fonte de outras sedes” (p. 55)

Repara: já há amoras no muro de pedra / onde prendemos as raízes da sede” (p. 63)

Por toda a parte as fendas da sede sulcavam o chão” (p. 67)

Mas… sede de quê? E a resposta é-nos dada no antepenúltimo poema:

            “Aguardamos uma luz de seiva

que reacenda a treva que nos cega.

Uma luz que devolva à terra

a farta lembrança das nascentes.

Uma luz para ficar como herança

quando as aves da morte se afastarem

para sempre deste caos

que, assustadoramente, nos acusa”. (p. 81)

 

Ora, é entre esta sede e o vislumbrar do possível que a hecatombe do presente vai sendo desfiada e a poeta reforça esta ideia no penúltimo poema:

                                   

Antes de anteciparmos o futuro

  acrescentemos à voz da terra

  o sobressalto das fontes

  refugiando a sede.

  Nenhuma nascente escapa à exigência,

  tão vulnerável, da secura do barro

  que nos separa das nuvens.” (p. 83)

 

E é entre este trilho simultaneamente ecológico e existencial que vai sendo radiografado o hoje com seus desastres e suas turbulências

                                    

Na estiagem há-de ouvir-se o murmúrio
agonizante dos rios já perdidos do mar.
E quando o inverno chegar, os caudais 
galgarão as margens se o excesso de cimento
consentir às águas que firam as casas
e a estreiteza dos caminhos.” (p. 39)



o clamor dos glaciares desmoronados” (p. 41)

 

                                    “

Lugares sobrepovoados onde os gatos
vagueiam em silêncio como se ouvissem
os passos dos mortos.
Lugares com ruas sem saída e casas precárias”

(p. 43)



“Na pressa das cidades onde o voo se faz fuga”
(p. 45)


E o homem tornou-se um morador incauto
e perdeu o paraíso onde agora os deuses,
quando passam desviam o olhar
” (p. 53)

Etc. etc., os exemplos percorrem todo o livro.


Preso ao olhar e à constatação do eu-poético poder-se-á encontrar a invocação, “a invocação” como estância mediadora entre o marasmo do presente e esse talvez futuro vislumbrado.


“Os rituais da infância não nos deixam esquecer”

                                    (p. 15)

 

O viajante ajoelhou-se sobre a terra

e cantou e cantando rezou” (p. 41)

 

Um dia nos pátios das casas

hão-se acender-se fogueiras

para atrair a chuva (cá está a sede escondida)

como uma crendice de tempos remotos” (p. 47).

 

E é entre esse tempos remotos e os horrendos tempos de hoje onde o homem invoca um futuro diferente que o eu-poético espera, qual vara presa à inclinação sol.

 

          “De pé, demoradamente invocando

o grito do destino, somos a sombra

de uma vara, presa à inclinação do sol

que define a vertigem que nos derruba

e que nos ergue” (p. 35)

 

Victor Oliveira Mateus, poeta

             Apresentação do livro, novembro 2018 (Texto manuscrito)







UMA VARA DE MEDIR O SOL»
- GRAÇA PIRES-

Acabada mais uma excelente leitura, não resisto a reflectir um pouco sobre o último livro da autora e amiga Graça Pires, que estimo e admiro.

"De pé, demoradamente invocando
o grito do destino, somos a sombra
de uma vara, presa à inclinação do sol,
que define a vertigem que nos derruba
e que nos ergue."

Desde o seu primeiro livro editado em 1990, após ter recebido o Prémio Revelação de poesia da APE em 1988, um mar criativo de outros livros, surgiu, bem como alguns prémios literários, de que destaco " O silêncio: lugar habitado" - Prémio Nacional Poeta Ruy Belo em 2008.
Graça Pires navega num mundo extraordinário de descoberta constante, onde respira e dá a conhecer sensações apelativas de quadros metafóricos ímpares. É esta identidade, que numa linguagem simples agarra o leitor, e seduz muitas vezes, a uma releitura esclarecedora dos movimentos envolventes da sua criatividade.

José Luís Outono, poeta

 

E-mail

 







Querida Graça,

 

Acabei de ler o livro hoje. É curioso perceber como a sua poesia dialoga comigo, com as fases da minha vida e, especialmente, com o que também escrevo. No livro são visitados temas que também tenho em mãos neste momento. E isso enche-me de alegria, porque a reconheço como uma irmã. E como é bom ter irmãos! Tenho a sorte de os meus pais me terem dado um. Mas a vida tem-me trazido muitos mais. Muitas, aliás. Irmãs, acima de tudo.

 

Para mim, o livro é um testemunho - e uma profecia - de quem vê o mundo natural e antigo perecer, de quem vê a ruralidade profanada, de quem vê as feridas da Terra. Não consigo partilhar consigo todas as emoções que senti, há poemas belíssimos que explodem dentro de nós quando os lemos. As referências às fontes são-me muito íntimas, pois cresci numa terra (Alcanhões) que fez das fontes símbolo mítico. E como sou do elemento água (sou Peixes), mais ainda, como deve imaginar. Mas há mais referências. O poema em que referencia as mós emocionou-me muito, pois vejo ali a minha ancestralidade beirã, o avô da minha mãe era moleiro, nas proximidades do Dão. E há a sede, o abandono da água, a fome. O abandono dos deuses. O último poema, Graça, é terrível. Ainda vibra dentro de mim. As andorinhas buscando um último lugar para morrer. Quanta dor, quanta solidão, quanto abandono. E quanta beleza! E tudo cantado e contado sob o olhar da sua voz, distante, mas atenta, sem interferir, mas testemunhando. É um livro muito duro!

 

Sabe, Graça, acredito na nobreza. Não na nobreza classista, que demarca a sociedade, pois a minha natureza é libertária. Reconheço que existem almas nobres, almas que andam pelo mundo e são elevadas, puras, limpas, claras. Conhece os elfos que povoam os livros do Tolkien? Almas assim. A poesia é um caminho de nobreza e os poetas são aristocracia. Neste livro vejo a sua nobreza, Graça. Como nunca! Obrigado, muito obrigado!

 

Samuel Pimenta, poeta

e-mail, 21 de dezembro de 2018









O livro começa com um “Regressei”, com um movimento de viagem e uma cartografia em que existem os longes inacabados como desenhados com um fino lápis. A linha do regresso e o alento afetivo e narrativo que abre é cortada bruscamente com o movimento assimétrico da foice a ceifar o trigo e o tempo em ciclos e círculos que deu metáfora ao pensamento para inventar a agricultura. E ainda se abre no poema uma outra possibilidade temporal e narrativa, a do mar e a potência do humano a metaforizar o movimento primordial e constante das marés. Todos os fios narrativos são atravessados por imagens que são metonímia da presença humana, evocando dum lado o agudo, o cortante, nas unhas e nos dentes e a degradação na palidez, e doutro esse alarme para qualquer cousa como a possibilidade dum desenlace catastrófico, dum futuro de terra devastada, que já vai como carga nessa “dupla sombra dos barcos”, imagem do humano e as suas dualidades, sejam elas a marca de como apreendemos o mundo ou a representação das escolhas e as bifurcações dos sentidos.

Todo o livro está atravessado por estas linhas de fuga inacabadas e dinâmicas, portadoras de energias e sentidos: o paraíso que se lembra ou se profetiza, descrito como frágil ou dificilmente percetível, a força do ritual que por vezes consegue impregnar a palavra e dar-lhe o seu fim transformador, o testemunho da destruição e a precariedade, dos estilhaços do mundo, a esperança no caminho da salvação aberto pelo afeto e a capacidade de ver longe, de manter rotas certas ou de portar luz dos personagens femininos, dos viajantes, dos rios e das aves. Narra a história da civilização como um relato das relações entre o humano e o material com a mediação do logos, palavra e pensamento, com estilo fundamentado nas elipses e na captação do essencial por metonímias que nos dão acesso ao todo: a presença primigénia, soberana e mágica da terra, a irrupção do humano, a invenção da agricultura na repetida metonímia do cereal, a perda da transparência dos signos e do sentido do destino, a continuidade da enunciação do natural e a esperança na reconstrução da harmonia entre o humano e o cósmico. Episódios todos relatados sem sequência, mas numa linha de constante presença do todo e a tensão à volta das suas relações, como se tudo convergisse para o momento do corte da harmonia ou a esperança no seu retorno, não se sabe nunca se previsto ou não, que vertebra sem organizar, sem sentidos únicos, a presença humana no seu habitat.

Antes do homem havia a terra:
geografia mágica, sagrada…
Depois da terra veio o homem.
E o homem tornou-se um morador incauto
e perdeu o paraíso onde agora os
deuses,
quando passam, desviam o olhar” (página 46).

Habitat, porque este é um livro sobre o habitar, sobre a casa. Alguns poemas põem o foco sobre o habitar fazendo, plantando e cultivando. O poema titulado “Desconhecemos as cicatrizes das mãos” toma as mãos como metonímia do humano, mãos que se transformam e que ficam marcadas com cicatrizes e gretas pelos instrumentos de lavoura, mós, enxadas ou arados, com os que o humano transforma a natureza para o seu sustento. Mãos, que como os olhos, entram na matéria e a transformam e que, por sua vez, são veículo da transformação do humano no próprio ato de fazer, diluindo relações hierárquicas entre sujeitos e objetos numa realidade de influência, dissolução de margens e interpenetração constante.

Noutros poemas se representa o humano como uma certa tensão na postura que lhe vem da sua verticalidade e uma existência paradoxal que se sente por um destino que se deseja, “invocando”, mas do que não se tem a certeza, pois parece que o centro, a emanação da energia, o sol que traça a linha e projeta o humano em sombras, sempre está fora, como no poema que contem o verso que dá título ao livro:

De pé, demoradamente invocando
o grito do destino, somos a sombra
de uma vara, presa à inclinação do sol,
que define a vertigem que nos derruba
e que nos ergue
” (página 37).

Percorre os poemas uma esperança de que o humano exceda o textual, que tenha a natureza do orgânico e o cósmico. Assim a palavra por momentos consegue representar a fluidez do mundo material em imagens de continuidade e liquidez, num quadro em que começa com um gesto de vontade de fazer e prender, de ter raiz, no poema “Plantei na janela uma hera inclinada para dentro”, poema sem medo ao corte da mutilação que noutros poemas é ameaça constante. Ou no poema “Escavo no peito um declive de seara”, em que a continuidade material entre o terreal e o corpo humano é tal que permite em ambos o labor agrícola.

Os verbos de enunciação, lembrar, esquecer, contar…, são ditos com a esperança de estabelecer uma aliança entre a presença humana e o habitat natural que se situa num momento que por vezes é remoto e por vezes é profetizado. Em vários poemas recolhe-se a ideia de linguagem ritual, sagrada ou mágica que vai atravessando esse relato da humanidade a habitar a terra, como no poema “Temos um quebranto no friso do olhar”. A aprendizagem do ritual na infância permite ter esperança no poema “Os rituais da infância não nos deixam esquecer”, significado reforçado pela repetição constante do adjetivo “verde”, na possibilidade do paraíso, a harmonia, o sentido no passar do tempo. Em outros poemas a enunciação não atinge toda a potência da sua energia e só nos dão testemunho dum movimento de fuga neste mundo dessacralizado da ordem artificial, como no poema que começa com os versos “Nem sempre as janelas oferecem às casas/ todas as possibilidades da luz”.

Outra possibilidade de sentido para o tempo humano se abre com os poemas que variam sobre o movimento, seja o movimento das aves, dos rios ou dos humanos. As aves, os viajantes e os rios fluem para uma mesma mensagem, o de uma rota, um destino, uma memória semelhantes, signos de um alfabeto cifrado que o humano conhece na viagem, como nos poemas “Conta-se que há laranjais que rebentam”, “O viajante ajoelhou-se sobre a terra”, “Seguimos pela noite indiferentes”, em que lemos o verso “destino das aves que trazem a luz das auroras riscada em suas penas”. Ou no poema final, “Naquele mês espalhara-se a insólita notícia”, com a mínima história das mulheres que abandonam as casas e sobem às colinas por terem pressentido a vinda das andorinhas. Ou aqueles poemas que descrevem situam o humano nas margens: a “curva do tempo na concha ansiosa do olhar”, “os homens [que] caminharão na berma das estradas carregando os filhos”, os que “vivem na linha costeira dos continentes” e “enfeitam os pulsos com amuletos de búzios”.

Mas o que fica mesmo inscrito na memória são os versos que falam de um momento de corte, que trouxe o “desvario dos caminhos” e “o exílio de pássaros e aves”, momento catastrófico da cisão entre a ordem natural e a humana que se pressagia nos poemas “Vem do rio um vento interminável, como um cerco” e “Quando as espigas surgiram de repente” ou que se lembra no poema “Conhecemos a obscuridade dos quintais”, impedindo com este cruzamento de perspetivas temporais contar a história humana em linha reta ou em sequência irreversível. É um episódio que parece poder acontecer em qualquer momento, o dum antes e um depois de uma vivência primordial, paradisíaca, essencialmente frágil, que algum saber desfaz, como no poema “No verão todas as manhãs são belas” e a partir do qual o humano já não consegue decifrar o mundo, a pesar de a natureza continuar a ser tão transparente como quando a habitava como paraíso, como no poema que começa com os versos “Envelhecemos com uma vara/ de medir o sol na linha do olhar”: não entendemos os sinais inscritos, ainda que o piar dos pássaros seja tão nítido. Mas a perda do sentido pode ser reversível, como no poema de tom profético “Um dia nos pátios das casas” ou no poema “Aguardamos uma luz de seiva”, um poema de esperança na repetição dum “fiat lux”, duma luz que afaste o humano do caos, da morte e da culpa e dê um sentido único e farto ao cósmico, o orgânico e o humano.

Há o texto, há a autora e a leitora que escreve estas linhas, há a presença da palavra que venha dos longes que vier sempre se faz presente. Há o contexto do tempo com que a poeta fala em palavra transformada pela ação do dizer poético em símbolo que irradia e que é necessário à existência situada no tempo e no espaço. E há o meu olhar que recebe, que compreende desde a sua memória sensitiva, emocional e lírica. Nasci virada a norte, com um dialeto lírico levemente diverso ao da poeta Graça Pires no que ao signo do sol diz respeito. Conheço, estão gravados na minha memória espiritual galega, nos ritos com que cresci, as metáforas que se vivem nos rituais da roda anual do sol, mas também uma tradição lírica, musical e literária, mais recente, que oscila entre o discurso irónico sobre o símbolo solar e a invocação da sua vinda nas alvoradas, tradição, ou vaga contemporânea, que se sente confortável em cenários de luz noturna e diálogos com o luar. Dou como exemplo os cenários em que nos “roubaram o sol” ou em que se prepara “um naufrágio com a ausência cúmplice do sol” dos poemas de Manuel António ou o “Vem-te aurora” da “Alvorada” de Rosália de Castro.

Por outro lado, leio com a minha memória mais pessoal, a da criança que se apaixonou por um romance intitulado Os filhos do sol, que contava a história do faraó herege fundador de uma nova religião, a que fixou na sua arca imaginária pessoal o cenário do sol traçador de caminhos sobre o mar que lia à sombra da torre de Brigântia. Apaixonei-me por esta linha da tradição lírica lusitana que dá sinal da descoberta e a contínua demanda duma medida do universo. Compreendo os achados poéticos como achados sem mais e tenho este livro nas mãos com a emoção de um manuscrito encontrado que não quero datar, que me dá testemunho de quem se situa para além do tempo, na tradição, como dizia Daniel Castelão, para encontrar chaves e interpretar o tempo sequencial, essa dimensão em que o humano se desenvolve sempre em linha reta sem nunca poder voltar.

E, no entanto, este livro tem data, está enraizado neste tempo de dissolução dos territórios e as suas culturas, na duplicidade da metáfora no agrícola e no linguístico de diversas linguagens, da desfeita da mater como matéria que informa todo o pensamento. A palavra “casa” dos versos de Albano Martins que servem de abertura, uma casa que herdamos e que é a própria vida, dão a moldura para pensarmos como poetas a casa, a comunidade e o destino que se decide nesta linha do tempo que passa cortando e que não podemos deixar de transmitir. Há uma postura que se torna emocional e energética, essa vara que é o humano. Na literalidade do livro não leio outra intenção para além da enunciação das palavras, e para mim, como leitora e poeta, é suficiente, pois todo o livro é atravessado por um tom de dizer ritual, como quem quer trazer a emoção e a ação de um tempo em que dizer a palavra é fazer presente a cousa. Uma vara de medir o sol é um exercício de imaginação material, de leitura do mundo e de narração, poesia com movimento de escavação, inscrição, poesia côncava que explora o que se passa no “ângulo interior dos séculos”, da fibra mais íntima do devir humano, poesia que nos faz compreender porquê a escrita nasceu como inscrição, simbolizando os sons aéreos em signos sobre a pedra. Poesia que se sustenta na compreensão de que a natureza é literal e que os poetas leem quando escrevem e os humanos traduzem
quando falam.

Maria Dovigo, poeta

“Palavra Comum”, revista on-line, 01 outubro 2019