Caderno de significados. Lisboa: Lua de Marfim, 2013
Este é 15º livro da poeta Graça Pires, o 2º que apresento da autora, que
sempre me deslumbra. Nascida em 1946, na Figueira da Foz, Graça Pires
licenciou-se em História na Faculdade de Letras e estreou-se na poesia com a
obra Poemas, em 1990, pela editora Vega,
publicada após ter recebido o Prémio Revelação de Poesia da APE, em 1988.
Apesar de premiada por diversas vezes, exprimindo tal facto a
unanimidade do gosto poético de quem a leu, surpreende-me a contradição
implícita, pois permanece à margem de uma certa crítica literária. Não é que
Graça Pires precise de prémios e consagrações sociais, para ser a grande poeta
que é, mas há um silêncio muito eloquente em torno da sua obra. Apenas um
grande poeta diz um verso assim, como escrevi no meu mural: “Falta-me nas mãos a haste que enviesa a
sombra até que a treva se cumpra.” Um verso preciso, demiúrgico e que
encerra tantas interpretações e todas elas tão profundas.
Este pequeno livro que hoje aqui apresento, “Caderno de Significados” é,
no entanto, como a autora já nos habituou, um grande livro de poesia. Desta
vez, são pequenos poemas em prosa, numa forma um pouco diferente dos livros
anteriores. Mas é a mesma coerência que aqui encontramos, estruturada em torno
de um discurso poético com uma componente lírica muito intensa, sem nunca
descair no sentimentalismo, numa linguagem que, por vezes, é quase surreal e
fortemente imagética.
Logo no início da sua obra, Graça Pires cita a obra Ensaios, de Montaigne: “O que aqui vedes são as minhas ideias,
pelas quais intento dar-me a conhecer, e não as coisas: elas porventura
ser-me-ão um dia conhecidas.” Torna-se, claro, então, o objectivo desta
escrita: é das ideias e dos nomes que a sua poesia nos dá conta. Porém, as
ideias não têm uma conotação apenas filosófica, para Graça Pires, mas antes
poética e eu acrescentaria, aqui, metafísica, pois cada um desses significados
vai muito além do seu “significado” meramente linguístico, convocando uma
simbologia que lhe é própria.
Cada um dos poemas se desenvolve a partir de um determinado significado,
como uma narrativa, numa ordem alfabética. O primeiro significado/poema
intitula-se “Abandono” e o último “Zombaria”. Se o título do livro é “Caderno
de Significados”, estes mesmos significados estão investidos de uma carga
poética tão intensa que os faz implodir enquanto tal, remetendo para além
deles. Dizendo de outra forma, trata-se de uma forma poética de “reinventar” os
significados e Graça Pires não faz concessões aos leitores, desafiando-os,
transgredindo uma “suposta clareza” que caberia a cada um dos significados.
Veja-se, por exemplo, o significado de “Dança”:
Contavam-me quando era menina que, em
noites de lua cheia, havia mulheres nuas junto às fontes dançando ao ritmo da
vertigem das suas ancas, até de madrugada. Calavam-se os pássaros e o vento.
Convocavam-se lobisomens e cães negros. E dizia-se que eram bruxas. Nunca as
vi. Mas sonhei ser uma delas muitas vezes. (p. 11).
A presença de uma atmosfera onírica na sua poética é uma constante, o
que lhe confere igualmente um tom encantatório. “Calavam-se os pássaros e o
vento. Convocavam-se lobisomens e cães negros”. A irrupção de uma realidade
estranha e mágica arranca-nos ao real e reenvia-nos para uma outra dimensão do
mesmo, mais funda e que se perde na origem do tempo. Essas mulheres nuas,
dançando ao luar “até de madrugada”, enlouquecendo os homens, ao ritmo
vertiginoso do seu corpo, constituem o elemento dionisíaco e próprio à
embriaguez da loucura amorosa. A noite, sempre a noite, na poética de Graça
Pires, e não a noite da escuridão ou das trevas, a noite de lua cheia e da
magia como poderosa metáfora, convocando o poder de Hermes, chama a si o
misterioso poder da própria linguagem poética.
Este jogo entre invisibilidade/visibilidade, entre a
imanência/transcendência do mundo, entre profano/sagrado, que se encontra
constantemente na poética de Graça Pires, remete para vários níveis de
interpretação simbólica, caracterizando-se pela sua inesgotabilidade. Mas
permanece sempre o elemento natural na sua linguagem, de uma forma obsessiva: o
mar, os barcos, os ritmos da natureza, que conformam a presença de um paganismo
que lhe é transversal. E é esse o elemento sagrado por excelência, da sua
poesia. Em constante metamorfose, ligando o humano, o vegetal e o animal, de
uma forma que apenas a linguagem poética consegue levar a cabo, de forma tão
plena.
Vejamos também o significado de dádiva, como o dom poético de dizer o
sagrado dos seres e do mundo. Leia-se, em “Dádiva” (p. 11):
Diante do mar dissemos: a nossa casa será
um lugar sem desvios onde os amigos hão-de vir nos dias de sol intenso em busca
de um recanto de sombra só disponível nas fontes. Virão, quem sabe, os filhos
avistar da nossa janela o azul puríssimo das manhãs e entranhar no hálito o
cheiro dos limos e do pão. Virão, quem sabe, os filhos com os filhos que
tiveram para sabermos que não é tão breve o coração que temos.
A casa do Ser, para usarmos a expressão de Heidegger? María Zambrano, na
sua obra fabulosa Clareiras do Bosque, a
propósito da linguagem, falava desse lugar mágico onde nasce a poesia e a
leveza da linguagem, com o mesmo sentido. De que casa nos fala a poeta, esse
lugar essencial e sem desvios, onde nos é permitido o repouso e a contemplação
do azul puríssimo das manhãs? É, certamente, um lugar físico e almejado, mas é
também um topos sagrado, onde a paz
nos é permitida e aos filhos dos filhos, como se o tempo, o tempo físico, ali
arrepiasse a sua devastação. Só pela anulação dessa irreversibilidade podemos
ter acesso ao conhecimento do coração, esse lugar que é, por excelência,
condição primordial de todos os afectos. Nesta casa não há desvios, não há
limites para os que nela entram, todos são bem-vindos e esse é o segredo maior
da Poesia.
O nomadismo, a errância, a partida, temas que já havia encontrado
anteriormente na sua obra e que são caríssimos a Graça Pires, como no
poema/significado “Decisão” (p. 11): “Não traço planos. Amanhã cada minuto será
transitório. Todos os pormenores que me são próprios terão a precisão das
cordas do alaúde em dedos sensíveis. Serei nómada e levarei comigo a máscara do
veneno junto à boca.” Aquele que conhece e escuta a brevidade da vida e do seu
canto sabe que a nada se pode prender. E essa é a essência da liberdade e do
próprio amor. Do mesmo modo que impedir o voo da ave ou o curso do rio se
confirma como o mais absurdo dos gestos, o nómada é o que segue as pisadas do
seu próprio coração, trata-se de uma decisão e não de uma inevitabilidade do
destino. Traz no seu coração esse canto, o de seguir o desejo de partir,
liberta-se dos condicionalismos para dar voz ao desejo, ao chamamento do
deserto e da viagem, como que prisioneiro de um encantamento. E sabe que,
partindo, só pode contar consigo e com a sua solidão para se salvar. Por isso,
leva “a máscara do veneno junto à boca”. Este poema é, para mim, de uma beleza
avassaladora, constituindo uma afirmação de uma liberdade sem tréguas e de um
conhecimento profundo da natureza precária de todas as coisas. O caminho é
transitório, a liberdade salva-o.
Veja-se o significado de liberdade, tal como a poeta o define:
“Dir-te-ei: há cavalos verdes nas margens do vento arrostando a claridade do
dia quando a luz se inclina levemente para um sul inacessível e a palavra mais
livre se abre na voz. Haja o que houver a liberdade é aqui, onde apertamos a
esperança contra o peito.” A liberdade é aqui, diz Graça Pires, eu
acrescentaria, no instante em que a palavra devém poética, fazendo nascer um
horizonte de transcendência. A esperança de que nos fala Graça Pires não é algo
de concreto, mas faz-se ponto de abertura e de promessa na voz poética. Por
isso é que, em “Poema” (p.23), diz assim: “Não procures o poema, me disseste.
Deixa que ele venha por sinuosos trilhos, ou pelo riso das crianças, ou pelo
cantar dos pássaros, ou pelo nome rasurado dos mortos, ou pelo transparente
caminho do coração.” Lembram-me estes versos a formulação preciosa de María
Zambrano acerca da poesia: “escrever é descobrir um segredo e comunicá-lo”[1]. Mas, mais
do que descobrir o segredo, que é comunicado pelo “cantar dos pássaros”
trata-se de ser “visitado”, deixar que a voz se faça audível em nós e essa
visitação ou epifania ocorre no coração, para aquele que trilha caminhos
sinuosos (porque invisíveis e enigmáticos), como os do amor universal e
cósmico, despojando-se do egoísmo e tornando-se fiel a uma realidade mais vasta
que o próprio.
Ou seja, o poema nasce dessa esperança que se oculta no mais recôndito e
que só a leveza do olhar descobre, como uma descoberta das forças
inconscientes, libertando-se das amarras da razão. Vem, através de sinuosos
trilhos – e mesmo neste verso é interessante o modo como a autora se aproxima
de María Zambrano -, desce sobre nós como revelação ou sombra, como canto
ínfimo, secreto, que se adivinha nos seres, quando nos despojamos da tirania do
querer compreender, da procura. A verdade sucumbe à vaidade e à procura, que a
desfiguram pelo desejo da posse.
Por isso, o abandono e a deriva são os gestos possíveis, para o homem,
como o sonho, os quais nos permitem aceder à dimensão mais íntima da realidade.
Zambrano fala, ainda[2], de uma
fissura ou de um fenda, por onde entra a luz, como uma possibilidade que ele
tem de abertura à transcendência. O poeta está “ferido”, foi tocado por algo
que é maior que ele e que clama pela sua atenção, foi atingido por um relâmpago
a que ele quer dar nome, a luz da linguagem que espera o lugar de ser dita: o
poema.
Reparem no poema/significado “Nome” (p. 21), em que a autora diz assim:
“Interpelamos as palavras à procura de um nome para a casa onde moramos. Um
nome que se ajuste inteiro à memória do olhar e do silêncio. Um nome tão
secreto como as cantigas que as mães cantam baixinho enquanto embalam nos braços
os filhos e a noite para não perderem o poder de repartir a sede.” Friso dois
versos, extraordinários neste modo de fincar o pé na verdadeira dimensão da
grande poesia. Primeiro: “à procura de um nome para a casa onde moramos”. Esta
“casa onde moramos” alude a uma dimensão outra do lugar físico: é a grande casa
do Ser, do Universo, onde a totalidade se apresenta em cada coisa, em todo o
seu esplendor.
Procurar o nome é, por isso, procurar a luz para cada ser, a palavra que
lhe seja justa. E depois segue-se: “Um nome que se ajuste inteiro à memória do
olhar e do silêncio”. Eis a radical (e profundamente solitária) procura da
linguagem poética: o resgate da vida, a busca do repouso e do silêncio
originário. Este é já um mundo edénico, a que o poeta regressa sempre, como que
procurando a infância do homem e o poder da palavra, do verbo originário. E o
nome, como o diz a poeta, é secreto, que apenas se transmite pelo cantilena das
mães, que conhecem o ritmo milenar do coração da terra.
A viagem é outro dos grandes significados na poética de Graça Pires,
simbolizando um tema que lhe é tão caro: o do despojamento e o de uma
fidelidade de que já aqui falei: “Sigo os teus passos, caminheiro perdido em
cidades sombrias. Não sei manejar as estacas com que te inclinas no abrigo dos
alpendres. Mas todos os caminhos me desafiam para o desvario de um lugar, de
uma palavra, de um rosto. Como se a linha da vida me cartografasse o olhar.”
(p. 20). Esta é a expressão que melhor define a poesia da autora: uma
cartografia do olhar. Uma fidelidade absoluta aos seres e às coisas. O único
gesto, a escuta do segredo ou do rumor ínfimo, capaz de salvar o precário, o
fugaz, o que se destina inevitavelmente à morte, onde se esgotaram “as palavras
que repetiam os nomes e os rostos onde repousava a luz” (p. 20). Aquilo que se
destina à noite, como ela o diz no poema “Noite” (p. 21): “Onde os vultos
escurecem na exactidão do olhar desvanecendo a cor dos lírios começa o enigma
da noite: sombra de uma sombra, esse outro modo de luz transfigurada.” Porém,
esta cartografia do olhar é, também, uma cartografia do coração, fazendo-se
topos, lugar onde tudo se religa, entre os afectos e o espírito, como um lugar
privilegiado.
Por isso, a noite tem sempre esta tonalidade mágica, como abertura nascente,
que abre uma dimensão surreal e imagética na poesia de Graça Pires. Ela não é o
avesso do dia, a sua contraposição, mas antes a transfiguração da luz, o
anúncio de uma outra vida, enigmática e indecifrável: lugar de todo o mistério,
absoluta e cantável, como o mais belo sonho, onde dançam as mulheres nuas até à
vertigem do seu êxtase. Essa é a natureza da poesia, sedutora, dionisíaca,
enigmática, perfeita, na beleza e no esplendor da linguagem nascente. O poeta
dança com ela (a linguagem), enlouquece e sucumbe aos seus poderes mágicos e
arrebatadores, que são os da linguagem e do seu canto secreto. Tudo se cala, à
sua passagem, para que o sagrado se revele.
Maria
João Cantinho, poeta
No
lançamento do livro, a 30 março 2013
[1]
Zambrano, María, Metáfora do Coração, editora
Assírio & Alvim, Lisboa, 1994, p. 40.
[2]
Na sua obra De La Aurora, ed. Turner,
Madrid, 1986, p. 14.
Vila Nova de Gaia, 05 abril 2013
Cara Amiga Graça Pires:
Leio, na p. 20 do seu
“Caderno de Significados”, que fez o favor de me enviar: “… o enredo da vida
não se deixa em testamento”. Estes seus textos, os deste “Caderno”, valem,
entretanto, em si mesmos, como verdadeiro testamento. Das suas “emoções ou
memórias” ou do seu “modo de ver a vida e os outros”, como reza a dedicatória.
Da sua experiência de vida, enfim. E valem também os textos, como poemas,
pequenas unidades de sentido que são circulares, aos quais não é alheio o
ritmo, elemento, creio eu, essencial da poesia.
Bem-haja, e um abraço muito
amigo do
Albano Martins, escritor
Carta manuscrita
Regar
a sede, beber, a terra, colher a paisagem, mastigar o silêncio
Graça Pires (n.1946) publica poesia com regularidade desde 1990, tendo o seu primeiro título «Poemas» recebido o Prémio Revelação de Poesia da A. P.E em 1988. Este seu mais recente livro integra uma colecção na qual figuram textos de Casimiro de Brito, Amadeu Baptista, Maria Teresa Dias Furtado e Agripina Costa Marques.
O ponto de partida é o
quotidiano: «Escutar o rumor da morte na rotina dos dias, no sangue das
palavras, na dor, na perda, no tédio. E renascer a toda a hora com a inocente
respiração da vida. Serenamente.» Aqui o olhar do poeta não pode ser
indiferente: «Li no jornal que há idosos abandonados nas urgências
hospitalares. Talvez se entenda a dor agarrada ao desleixo da roupa».
Como resposta à aridez do
dia-a-dia surge a infância: «Volta de novo, idade da inocência que foi minha.
Traz-me nas tranças a cristalina alegria dos dias em que no fundo do coração
nenhum nome me doía». Infância que é também o lugar da casa: «Nós voltamos
apenas para regar a sede, beber a terra, colher a paisagem, mastigar o
silêncio, partilhar a fome e tornar depois a ir embora com o corpo a doer da própria
ausência». Infância e casa juntam-se na emoção: «Se eu pudesse recordar uma
canção de embalar na voz lentamente doce de todas as mães, escutaria, com
certeza, o cantar da minha mãe só para que, em meu sono, eu não incline a
cabeça para o lado onde ardem as lembranças.
Podem ser as lembranças da
mãe («Só na memória do teu rosto, mãe, posso encontrar agora as paredes da casa
onde nasci») ou do pai: «partiste tão cedo como se tivesses vindo do lado mais
desolado das sombras». A única resposta no poema à desolação do seu tempo é o
amor: «Tu dizes o meu nome. Eu digo o teu nome. Não há mais ninguém na terra
nesta hora urgente da paixão». Graça Pires sabe que, como Camilo Castelo
Branco, «a poesia não tem presente: ou é esperança ou saudade». Por isso o seu
grito: «Há grito rasgando o surdo rumor da chuva de novembro. Um grito a cortar
a respiração das árvores sem folhas. Um grito que estremece nas mãos das
mulheres estéreis e no silêncio das aves que não voam».
José do Carmo Francisco,
poeta
22 abri 2013
Este
é o último livro de Graça Pires, mais precisamente o décimo quinto, confirmando
uma obra poética que teve o seu início em 1990, com Poemas (Prémio Revelação de
Poesia da APE). Apesar da sua qualidade, surpreende o facto de a obra de Graça
Pires permanecer à margem da crítica literária. A estrutura desta colectânea é
diferente da das anteriores, sendo composta por pequenos poemas em prosa
dispostos por ordem alfabética de título. Mas é a mesma coerência, a mesma voz
que já lhe conhecíamos, com uma componente lírica intensa, numa linguagem
imagética não raras vezes surreal. Logo no início do livro, Graça Pires cita os
Ensaios de Montaigne: «O que aqui vedes são as minhas ideias, pelas quais intento
dar-me a conhecer, e não as coisas: elas porventura ser-me-ão um dia
conhecidas.» Torna-se claro, então, o objectivo desta escrita: é das ideias e
dos nomes que a sua poesia nos dá conta. Porém, as ideias não têm uma conotação
apenas filosófica, mas antes poética e metafísica, pois cada um desses
significados/poemas vai para além da sua interpretação meramente linguística,
convocando uma simbologia e uma aura, um peso que lhe é próprio. Cada um dos
seus poemas desenvolve-se, assim, a partir de um determinado significado,
começando em «Abandono» e terminando em «Zombaria». Se o título do livro é
«Caderno de Significados», os mesmos estão investidos de uma carga poética que
os faz implodir enquanto tal, remetendo para além deles, reinventando
liricamente os significados, transgredindo uma «suposta clareza» que caberia a
cada um desses nomes. Veja-se, por exemplo, «Dança»: «Contavam-me quando era
menina que, em noites de lua cheia, havia mulheres nuas junto às fontes
dançando ao ritmo da vertigem das suas ancas, até de madrugada. Calavam-se os
pássaros e o vento. Convocavam-se lobisomens e cães negros. E dizia-se que eram
bruxas. Nunca as vi. Mas sonhei ser uma delas muitas vezes» (p. 11). A
atmosfera onírica na poética de Graça Pires é uma constante, esse desmando de
sonho que dá à sua poesia um tom encantatório. As imagens assaltam-nos e as
palavras pesam-nos: «Calavam-se os pássaros e o vento. Convocavam-se lobisomens
e cães negros.» Há uma realidade estranha, uma intensidade poética que nos
arranca ao real, remetendo-nos para uma dimensão cósmica, de um tempo arcaico.
Essas mulheres nuas, dançando ao luar «até de madrugada», enlouquecendo os
homens, ao ritmo vertiginoso do seu corpo, constituem o júbilo e a exaltação
próprios da embriaguez e da loucura amorosa. A noite é um elemento sempre
presente nesta escrita, magma poético e grave, que impregna as imagens,
convocando a noite herbertiana e transfiguradora, aquela que chama a si o poder
de Hermes, o dom e o mistério da linguagem da poesia. Existe um jogo permanente
entre invisibilidade/visibilidade, entre a imanência/ transcendência do mundo,
entre profano/sagrado, desafiando o leitor, remetendo-o para uma complexidade
de níveis de interpretação simbólica e secreta. Mas permanece sempre o elemento
natural na linguagem, de forma obsessiva: o mar, os barcos, os ritmos da
natureza, as imagens orgânicas e minerais, que conformam a presença de um
paganismo na poesia de Graça Pires. Vejamos também o significado de «dádiva»,
como o dom poético de dizer o sagrado dos seres e do mundo: «Diante do mar
dissemos: a nossa casa será um lugar sem desvios onde os amigos hão-de vir nos
dias de sol intenso em busca de um recanto de sombra só disponível nas fontes.
Virão, quem sabe, os filhos avistar da nossa janela o azul puríssimo das manhãs
e entranhar no hálito o cheiro dos limos e do pão. Virão, quem sabe, os filhos
com os filhos que tiveram para sabermos que não é tão breve o coração que
temos» (p. 11). A casa do Ser, para usarmos a expressão de Heidegger? María
Zambrano, na sua obra magistral Clareiras do Bosque, a propósito da linguagem,
falava desse lugar onde nasce a poesia e a leveza da linguagem, com o mesmo
sentido. De que casa nos fala a poeta, esse lugar essencial e sem desvios, onde
nos é permitido o repouso e a contemplação do azul puríssimo das manhãs? É,
certamente, um lugar físico e almejado, mas é também um topos sagrado, onde a
paz nos é Também são temas privilegiados o nomadismo, a errância, a partida,
como no poema/significado «Decisão» (p. 11): «Não traço planos. Amanhã cada
minuto será transitório. Todos os pormenores que me são próprios terão a
precisão das cordas do alaúde em dedos sensíveis. Serei nómada e levarei comigo
a máscara do veneno junto à boca.» Aquele que conhece e escuta a brevidade da
vida e do seu canto sabe que a nada se pode prender. E essa é a essência da
liberdade e do próprio amor. Do mesmo modo que impedir o voo da ave ou o curso
do rio se confirma como o mais absurdo dos gestos, o nómada é o que segue as
pisadas do seu próprio coração. Trata-se, assim, de uma decisão e não de uma
inevitabilidade do destino. O nómada é o que traz no seu coração o canto, o
desejo de partir, libertando-se dos condicionalismos para dar voz ao chamamento
do deserto e da viagem, como que prisioneiro de um encantamento. E sabe que,
partindo, só pode contar consigo e com a sua solidão para se salvar. Por isso,
leva «a máscara do veneno junto à boca». Este poema é, para mim, dos mais
reveladores do livro, afirmando uma liberdade sem tréguas e o conhecimento da natureza
precária de todas as coisas. Todo o caminho é transitório, a liberdade salva-o.
Veja-se o significado de liberdade, tal como a poeta o define: «Dir-te-ei: há
cavalos verdes nas margens do vento arrostando a claridade do dia quando a luz
se inclina levemente para um sul inacessível e a palavra mais livre se abre na
voz. Haja o que houver a liberdade é aqui, onde apertamos a esperança contra o
peito.» A liberdade é aqui, diz Graça Pires, eu acrescentaria, no instante em
que a palavra devém poética, orientando-se para um horizonte de abertura. Por
isso é que em «Poema» diz assim: «Não procures o poema, me disseste. Deixa que
ele venha por sinuosos trilhos, ou pelo riso das crianças, ou pelo cantar dos
pássaros, ou pelo nome rasurado dos mortos, ou pelo transparente caminho do
coração» (p. 23). Lembram-me estes versos a preciosa formulação de María
Zambrano acerca da poesia: «escrever é descobrir um segredo e comunicá-lo»1.
Mas, mais do que descobrir o segredo, que é comunicado pelo «cantar dos pássaros»,
trata- -se de ser «visitado», deixar que a voz se faça audível em nós. E esta
visitação é uma epifania, irrecusável e que o poema descobre. No
poema/significado «Nome» escreve Graça Pires: «Interpelamos as palavras à
procura de um nome para a casa onde moramos. Um nome que se ajuste inteiro à
memória do olhar e do silêncio. Um nome tão secreto como as cantigas que as
mães cantam baixinho, enquanto embalam nos braços os filhos e a noite para não
perderem o poder de repartir a sede» (p. 21). Friso o verso: «à procura de
um nome para a casa onde moramos». Esta «casa onde moramos» alude certamente a
uma dimensão ontológica, a do Ser ou a do Universo, essa totalidade que se
apresenta em cada ser. Seguir o rasto do nome é uma exigência do poeta, a de
devolver a luz aos seres, procurando a palavra justa. E depois segue-se um
outro verso: «Um nome que se ajuste inteiro à memória do olhar e do silêncio.»
Eis a radical tarefa da linguagem poética: o resgate da vida, a busca do
repouso e do silêncio originário. Este é já um mundo edénico, a que o poeta
regressa sempre, como que procurando a infância do homem e o poder originário
da palavra. E o nome, como diz a autora, é secreto, perpassa nas cantilenas das
mães, as que conhecem o ritmo da terra e do coração dos seus filhos. A viagem é
outro dos grandes significados na escrita de Graça Pires, simbolizando um tema
que lhe é caro: o do despojamento e o de uma fidelidade de que já aqui falei:
«Sigo os teus passos, caminheiro perdido em cidades sombrias. Não sei manejar
as estacas com que te inclinas no abrigo dos alpendres. Mas todos os caminhos
me desafiam para o desvario de um lugar, de uma palavra, de um rosto. Como se a
linha da vida me cartografasse o olhar» (p. 20). Talvez esta seja a expressão
que melhor define a poesia da autora: «uma cartografia do olhar». Dito de outra
forma, trata-se de declarar uma fidelidade aos seres e às coisas. Para o poeta,
este é o único gesto que lhe cabe em sorte: a escuta do segredo ou do rumor
ínfimo, capaz de salvar o precário e o que se destina inevitavelmente à morte.
Salvar as coisas rente à noite que as submerge, esse lugar onde se esgotaram
«as palavras que repetiam os nomes e os rostos onde repousava a luz» (p. 20). O
que se destina à «Noite»: «Onde os vultos escurecem na exactidão do olhar
desvanecendo a cor dos lírios começa o enigma da noite: sombra de uma sombra,
esse outro modo de luz transfigurada» (p. 21). É exacto dizer que esta
cartografia do olhar é, igualmente, uma cartografia do coração, onde tudo se
religa, no trilho que vai dos afectos ao espírito, nesse lugar onde tudo se
demora e devém memória. Por isso, a noite tem sempre esta tonalidade, a de uma
abertura para o surreal, na poesia da autora. A noite não é o avesso do dia, a
sua contraposição, mas antes a transfiguração da luz, o anúncio de uma outra
vida, enigmática e indecifrável: é o lugar do mistério, do canto e do sonho, a
clareira onde as mulheres nuas dançam, até ao seu êxtase. Essa é também a
natureza da poesia, sedutora, dionisíaca e enigmática. O poeta dança com a
linguagem, mede-lhe os limites, procurando a justeza, mas também sucumbe aos
seus poderes arrebatadores, ao seu canto. Tudo se cala, à passagem desse animal
bravio e indomesticável que é a linguagem, para que o sagrado se revele. Maria
João Cantinho
Notas [A
Autora segue a antiga ortografia.]
1 María
Zambrano, Metáfora do Coração, Lisboa, Assírio & Alvim, 1994, p. 40.
Maria João Cantinho, poeta
“Colóquio Letras”,
setembro/outubro 2013