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segunda-feira, 7 de abril de 2025

TALVEZ HAJA AMORAS MADURAS À ENTRADA DA NOITE

 



Talvez haja amoras maduras à entrada da noite. Lisboa: Poética, 2025

SILÊNCIOS QUE GUARDAM GRITOS,

RIOS QUE MUTUAMENTE SE BEBEM

 

Ler palavras novas de Graça Pires é "entrar no labirinto das palavras", pé ante pé, decifrar os sinais e pistas - praia, fogo, água, luz,…- e avançar sem saber se estamos a seguir os passos da Autora ou outros passos que nos levam ao mesmo destino por outro caminho. Quem leu a poesia anterior de Graça Pires, decerto conhece a sensação. Não vale a pena tentar descobrir esse caminho íntimo escondido - o mais provável é nunca descobrir nos versos de Graça Pires, a "dor que deveras sente".

"A noite recupera na sombra olhares crentes / no regozijo quase absurdo / das manhãs luminosas" - lemos no poema inaugural deste livro. A noite pertence aos Poetas, é nela que antecipam a luz. A noite, com a sua escuridão, destaca as luzes quase sempre ofuscadas e indistintas na claridade do dia. A quietude da noite é um disfarce, um "celeiro dos silêncios". Os silêncios são guardas, vigilantes, das colheitas de vozes e gritos. É por isso que Graça Pires fala da "espiritual osmose / entre a poesia e o silêncio". É também na noite que se esbatem as divisões do tempo, transformando o passado, o instante e o futuro em contemporâneos. O "fascínio da inocência / desoladamente perdida" não é só recordação, saudade ou nostalgia - é desejo e horizonte de chegada. E se a noite consegue esbater as divisões do tempo, o amor consegue superar o próprio tempo. O "barco de papel" que circum-navegou os corpos dos amantes (que bela imagem!) pode ter sido cerceado pela "última maré-viva", mas os amantes ainda se amam "obsessivamente". É por isso que a noite pertence a criaturas luminosas: os amantes e os poetas.

A noite que Graça Pires nos abre neste livro não é um mundo de fantasia. É um labirinto com  avisos, janelas sobre a realidade. Por exemplo, quando compara a delicadeza dos crisântemos à "cambraia bordada / por mulheres caladas / que carregam no sangue / misturas insubmissas / de vida e de morte". Noutras janelas, são as mães com " vozes de deméter clamando sem consolo", capazes de movimentar a natureza para resgatar os filhos, como na mitologia. Ou ainda a mãe de "mãos inteiras" que "sempre soube receber / através do tanto que deu". A condição da mulher - feita de amor, delicadeza, sofrimento e coragem - é a lente que permite ver a realidade do mundo. A mulher mãe, amante, pensamento, natureza, está omnipresente e vigilante no caminho por onde a poesia de Graça Pires nos leva. Tal como a noite, a mulher é um celeiro de vozes, sejam elas a da mãe que "de fome / já tinha morrido duas vezes / com os filhos" e que "gritava sem cessar o nome de cada um", ou a mulher "naufragada no centro de mim / grito silenciosamente". Silenciosos ou não, são os clamores da mulher que revelam a fealdade do mundo. Em livros anteriores, já os leitores tinham encontrado a forma - suave, mas explícita e firme - como a poesia de Graça Pires assume crítica social. A fealdade do mundo não é só uma apreciação estética. A "chave" pode estar nestes versos: "Observo no pranto / a origem das águas / e por elas regresso ao rio que penetra em delírio / no mar da infância infinita". É de facto nesta "infância infinita" que a fealdade e a injustiça são sinónimas. Só uma criança é capaz de tanta lucidez.

Existe, por conseguinte, um sentido para a caminhada no labirinto da noite, para além da quietude dos celeiros e longe do conformismo. O labirinto não é mero entretenimento. O caminho tem um destino: "Sou marinheiro. / Tenho remos nos pés / um soluço a navegar no peito / e um barco atracado na lembrança. / De muito longe me convocam".

 Graça Pires procura - e encontra! - na infância a lucidez de que o mundo e o futuro necessitam. É por isso que o poema "Meninos com gula" se presta a ser um dos poemas preferidos do leitor. O entusiasmo dos jovens com o amor é comparado com a gula dos meninos à procura de amoras. Anos passados, depois de toda uma vida, é ainda o entusiasmo que persiste, sem cair na condescendência do olhar crítico sobre o passado: "Vamos de novo amor / antes que sequem no coração / as amoras da juventude". O amor é simples, basta amar. Não fazemos ideia do caminho que a poetisa percorreu, e ela alerta que não vale a pena seguir as suas pegadas, porque também ela chegou a andar perdida: "Perdi-me na geografia / dos lugares onde era meu / o barro dos sonhos". Ela não quer que a sigam e pouco ou nada aponta para si própria, preferindo apontar para o que está à volta.  O regresso às "amoras da juventude" soa como um destino apontado ao leitor. As amoras estavam lá, maduras, à entrada do labirinto noturno. Bastava vê-las, e não as deixar secar. Às vezes, só se consegue avançar se houver coragem de regressar ao ponto de partida. É lá que estão as amoras.

Neste seu livro-labirinto, Graça Pires mostra, uma vez mais, como são ténues as fronteiras entre o assuntos do coração, do mundo e da poesia. É suposto deixar aqui a informação, ou pelo menos um vislumbre, do que se nele pode encontrar. A resposta mais honesta que me ocorre depois de o ler é: depende do que nele se quer procurar. A lucidez da infância infinita. As amoras da juventude. Os "rios que mutuamente se bebem", na poderosa imagem do poema magnífico que exprime o amor intemporal no expoente máximo da entrega:

"Nas margens do teu corpo

envolvo as margens do meu corpo.

É puro o rio

em que ousamos navegar.

Se disseres o meu nome

hei-de encostar o ombro

ao som da tua voz

para ludibriar a sede.

Seremos como rios

que mutuamente se bebem."

 

A mesma imagem, páginas adiante, no poema "É sempre a sede":

 

"É sempre esta sede sem fim

a demandar a nascente perfeita

onde as águas se bebem

demoradamente".

 

Sim, "talvez haja amoras maduras à entrada da noite". À espera de serem colhidas. A tempo. À entrada da noite.

 

Carlos Campos, advogado e escritor

Na apresentação do livro, 6 de abril de 2025


                     

Após "duas" leituras apaixonadas do novo Livro de Poesia de Graça Pires - «TALVEZ HAJA AMORAS MADURAS À ENTRADA DA NOITE»
retrato por aqui, um pouco dos momentos vividos na sua apresentação.

Os crisântemos

Em voz baixa
digo que os crisântemos
crescem no batimento
inquieto do coração
E são delicados
como a cambraia bordada
por mulheres caladas
que carregam no sangue
misturas insubmissas de vida e de morte

(pág. 10)

Com a apresentação de Carlos Campos , um poeta que também muito estimo, o presente Livro da editora POÉTICA GRUPO EDITORIAL, toca-nos fundo pelo seu estilo bem apelativo de leitura, num traço ímpar como o poema presente.
Da minha parte, permitam-me via gentileza fotográfica da amiga que também muito estimo, pela excelente obra já editada, Lília Tavares foi uma honra imensa "dizer" um poema da presente "obra poética"!
Amiga Graça Pires ... não pares, por favor!!!!!!!!!!!!



José Luís Outono, escritor
E-mail 15 abril 2025



                              

Minha querida, recebi anteontem seu último  e maravilhoso livro. Não é novidade encontrar a beleza na suas obras, e isso se sucede indefinidamente, pois, a cada obra sua publicada, reafirmo o seu lugar no degrau mais alto do pódio da poesia.
Ao iniciar a leitura, pensei em anotar alguns títulos dos poemas que inicialmente mais me despertaram a atenção numa primeira leitura, e comecei: "Os crisântemos", "Em cada despedida", "De muito longe me convocam", "A seiva original"... Vi que a lista estava se estendendo, e também aumentando após uma segunda e uma terceira leituras, e percebi que copiar o índice do livro seria mais cômodo, tal a riqueza do que fui encontrando.
Os poemas são um pouco mais breves do que outros seus de outras épocas, e plenos de significados e emoções.
Questões existenciais, como em “Chronos”, o passar do tempo, em ‘A sedução do tempo” e ‘A adolescência”, o fazer poético, tal como em “A revelação do poema”, e reminiscências compõem esse universo, e quando o olhar se desvia para fora, surgem obras primas como "Abraçados", "O Poeta Chorou" e "Ameaça".
Versos como “Cobre-me de linho antigo/ se o ímpeto do sol incide sobre o mar.”, "...delicados/ como a cambraia bordada...”, “Denúncia rigorosa do tempo/ nos seixos polidos”, “Farto será o celeiro dos silêncios” “...antes que sequem no coração/ as amoras da juventude.”, “...a curva do tempo/ em sua cruel celeridade./ ... um barco atracado na lembrança.”, “Há no meu regaço/ aves enlouquecidas”, “...a marca de meus pés/ na velhice dos caminhos”, "Deixo que a dureza das pedras/ me pise os pés...”, “A luz de outubro inteira no olhar”, “E o coração já tão náufrago na memória”, “Há silêncios abandonados/ na memória do esquecimento.” e “...o vazio é o único trilho/ que liga o céu e a terra.” testemunham a riqueza do seu olhar para a vida e para o mundo.
Não há como agradecer você pelo envio do livro, e, mais do que isso, por fazer parte da minha vida, e trazer-me tanto alento pela beleza do que escreve. A literatura, na minha vida às vezes tão à deriva, é um alento para a alma, e você, dentro disso, tem o lugar mais especial.

José d'Ângelo, escritor
E-mail 10 Maio 2025




“Talvez haja amoras maduras à entrada da noite”

O novo livro de Graça Pires: entre o feminino, a natureza e a disciplina poética


Aprende-se a gostar da poesia de Graça Pires. Pelo menos, foi assim comigo. Tem um sabor clássico, mas permanece fresco, incorporando a claridade de Sophia, o rigor de Luíza Neto Jorge e um travo do estilo trágico-romântico que recorda a intensidade melancólica de Sylvia Plath. Ao longo da sua longa trajetória literária, Graça Pires explorou várias formas de expressão — como se nota ao folhear a sua coletânea “Poemas escolhidos 1990-2011” (2012) —, mas manteve sempre uma coerência imagética: o eterno feminino e a natureza servindo de mote ou destino.  Ambas as inspirações reconhecem-se nestes dois excertos:

“E são delicados / como cambraia bordada / por mulheres caladas / que carregam no sangue / misturas insubmissas / de vida e de morte.”

“Diz-me a brevidade / das fogueiras acesas / sobre a areia húmida / na hora em que a febre e o sal / alucinam o vento.”


Nos primeiros poemas deste novo livro sente-se um arrumar da casa, a preparação para um novo ciclo. A sua poesia não vive num aquário fechado, mas num mar aberto, sensível às marés e às tempestades — sejam sociais ou íntimas — que todo barco enfrenta. É visível, a partir destas páginas, uma disciplina implacável, quase pedagógica, nesta comunidade de poetas — às vezes belicosa, como todas as irmandades desde Abel e Caim — que se reconhece no ofício da palavra.

“De mãos dadas/ como se fôssemos/ meninos com gula/ íamos pelos taludes/ à procura de amoras//(...) Vamos de novo amor/ antes que sequem no coração/ as amoras da juventude.” 

Nos versos de Graça Pires, a paixão amadureceu e transformou-se em amor, e o que antes era contingente tende agora para o absoluto:

“A noite recupera na sombra olhares crentes no regozijo quase absurdo das manhãs luminosas. // Encontro absoluto com a luz em delírio no horizonte.”

Como lembra Adriano Moreira, “as coisas acabam antes de acabarem”, e Oscar Wilde acrescenta: “Se a moda não fosse horrível, não mudava de seis em seis meses”. Assim, Graça Pires afirmou-se num estilo próprio, conquistando leitores sem truques modistas ou happenings efémeros. Resistiu aos solavancos dos estilos e manteve uma voz fiel a si mesma, que continua a amadurecer.

Por isso, longa vida à sua poesia — porque, como ela escreve:

“Antes das grandes sedes/ já um deserto ameaçava/ nossas bocas/ ávidas do frescor dos frutos.// Meu amor/ talvez haja amoras maduras à entrada da noite”.


 "Talvez haja amoras maduras à entrada da noite" (65 páginas, ano 2025)
Graça Pires  
Poética Edições


Beijos,
Luís Palma Gomes, professor e poeta
E-mail 19 Maio, 2025


                                        

segunda-feira, 8 de abril de 2024

ERA MADRUGADA EM LISBOA: LOUVOR A UM DIA COM TANTOS DIAS DENTRO

 


Era madrugada em Lisboa: louvor a um dia com tantos dias dentro. Lisboa: Poética, 2024


Era madrugada em Lisboa:

Louvor a um dia com tantos dias dentro

Graça Pires

 

Debati-me comigo e com a minha claridade, com as minhas sombras, tentei resgatar o animal emocional que já fui e tentar começar a apresentação do livro” Era madrugada em Lisboa, como convém, temperadamente, da forma mais serena e circunstancial que um acontecimento destes exige.

Disse para mim mesma- vá lá, faz um esforçozinho e concentra-te no essencial que é a poética do livro e rescinde contrato com o demais- Mas eu, sou a Luísa, apenas a Luísa, sem as competências académicas que uma critica literária teria para balizar esta obra sob a perspetiva ajustada, e fazê-lo, - como a enorme autora – a minha querida Graça- merece. Sei, no entanto, que ao lado das minhas dúvidas crescem árvores com as suas raízes antiquíssimas e que se estendem sobre a minha identidade, me atiçam a memória, o que não me deixa alterar a voz do sangue. A minha voz.  E esse é o meu argumento. Ter, também eu, vivido este dia!

Mas, se me permitem, vamos recuar um pouco, não tão pouco assim, para lhes contar o episódio que me deu a conhecer a poesia da Graça Pires.

Foi no ano de 2007, e aconteceu acidentalmente, - aliás como acontecem muitas coisas boas na minha vida- numa biblioteca pública em Alenquer. Levou-me lá a circunstância de estar a acompanhar uma pessoa que lia, como eu, poesia, mas nesse dia, estava à procura de uma obra de filosofia. Enquanto esperava decidi folhear um ou outro livro na secção de poesia. Puxei um, não me disse nada. Peguei outro. Li um primeiro poema, o segundo, virei a página e continuei assombrada com a beleza metafórica, com a elegância imagética na construção do poema e, sobretudo, com um eu poético que nos leva a uma viagem infinita pelas sombras e pela claridade, num diálogo permanente onde o eu existe como reflexo do mundo. Onde o silêncio é o abrigo de todas as dores, mas é também o lugar onde as memórias reconstroem o caminho do presente. E há o rio, esse rumor clandestino de vida, como movimento permanente que purifica e renasce. E há o mar… o mar como alimento, onde, quando se adoece, se descansa o olhar e se resgata da morte,

Foi breve a minha leitura e antes de me chamarem, só tive tempo de reter na memória o nome da autora: Graça Pires. Não podia requisitar o livro- estava muito longe de casa, por isso escrevi num papelinho o nome da autora- não fosse a memória trair-me- para o procurar em Estarreja, na Biblioteca Municipal. Não encontrei e, entretanto, sem acesso a tempo e aos meios de que hoje disponho, acabei por deixar a procura de lado. Porém, sempre que lia poesia, não conseguia deixar de lembrar aqueles poucos poemas lidos, e onde o eu se decifra em demanda permanente. Uma poesia que nos arranha e interroga, que nos descompõe, uma poesia com tal força que me havia atravessado a alma.

Entretanto, talvez um ou dois anos depois, criei uma página onde publicava alguns textos e um dia reencontrei a Graça Pires. Aquela autora…era ela e tinha deixado um comentário no meu texto!

Já passaram muitos anos, a minha admiração pela autora aumentou exponencialmente à medida que conhecia a sua vasta obra poética e uma amizade profundamente afetiva, é hoje a razão de eu estar aqui. Porque só um carinho gigante me faria vir aqui, eu que sou tímida e, em verdade, um desastre a falar em público.

Ah, já existem livros da Graça Pires na Biblioteca de Estarreja.
Eu própria os entreguei, oferecidos gentilmente pela Graça.

Mas vamos então falar sobre o livro que nos trouxe aqui?

E convido todos os presentes à reflexão e à possível explicação do que entendo ser, “Era madrugada em Lisboa”

louvor a um dia com tantos dias dentro.

O subtítulo é, por si só, um hino. Um hino ao tempo, à transgressão do lógico e uma metáfora à medida como se vive a existência. Onde cabem todos os homens, todas as emoções, todas as possibilidades.

 Dizem os entendidos, que as emoções profundas, geram torrentes de palavras e se é verdade que cada imagem vale mil palavras, não menos verdadeiro é que, cada palavra se multiplica em imagens, quando nos ancoramos nas memórias que cada uma delas nos sugere E, quando são genuinamente emocionais, as palavras não têm prazo de validade, as imagens não têm prazo de validade. Neste livro de 25 poemas que a autora dedica aos capitães de abril e a todas as pessoas que amam a liberdade, cabem milhões e milhões de imagens.

Vamos chamar-lhe relâmpago?

A autora abre a sua narrativa poética aludindo ao poema de Sophia de Mello Breyner, que todos conhecemos.

Esta é a madrugada que eu esperava

O dia inicial inteiro e limpo

Onde emergimos da noite e do silêncio

E livres habitamos a substância do tempo

E é desta matéria substantiva, que perdurará no tempo da história e no tempo dos homens, o que as palavras da autora sugerem logo no poema primeiro deste livro.

Quando li os primeiros versos do poema sequente ao maravilhoso poema de Sophia, fui remetida, logo de imediato, para Manuel Alegre e o seu poema “Trova do vento que passa” onde se constata o longo inverno (que inevitavelmente conduz à morte) em que Portugal agonizava, sem encruzilhadas de esperança, - embora pairasse um rumor, de quando em quando, de uma clandestina e almejada primavera- mas que depressa se transformava em queixume aflito de quem vê um país a definhar, e suplica por um milagre.

Apropriei-me de 2 das 16 quadras estrondosamente interpretadas por Adriano Correia de Oliveira, para estabelecer a analogia poética.

 

E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.

E diz ainda o poeta Manuel Alegre

 

Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Peco-lhes a atenção para o poema que a Margarida vai ler.


Sem prazo, sem aviso, sem detença,

aconteceu em abril

o mais esperado tempo

e, com ele, o cheiro

da terra que nos pertence.

No contorno deste chão

um grito abraçou o povo comovido

com o assombro e com os cravos.

Reinventaram-se os sonhos

e as palavras fraternas.

Era madrugada em Lisboa.

E o dia captou a dádiva da luz matinal

para que cintilasse no olhar de toda a gente.

No clamor de cada rua,

a palavra liberdade

passou de boca em boca,

até ao enrouquecimento da alegria.

 

A primeira estrofe do poema de Era madrugada em Lisboa “envia-nos” de imediato, literalmente” numa máquina do tempo, para esse tempo de espera por alguma coisa que venha quebrar o ciclo desse inverno sem fim à vista. O poema termina em festa, com a alusão à dádiva de uma luz matinal que cintila de uma forma absoluta, inequívoca, que toma de assalto o olhar, o corpo, a voz, /até ao enrouquecimento da alegria!

Mais à frente, a poeta diz: Um punhal de transgressão/ derrubou muros antigos/ e o impossível alento foi possível.  Numa referência clara aos capitães de abril, a poeta confirma o que já se intuía nas forças armadas, descontentes com a situação política no país e com a longevidade da guerra do Ultramar, que deixava filhos órfãos, mães permanentes de luto. Estavam distraídos os deuses, / ou encontraram os homens, / a justa medida / da sorte que escolheram? /   Aberta a porta a esta interrogação, a voz poética é convicta, quando afirma que esta ousadia, foi o degelo de uma estação que tolhia a vida.  E que esta ousadia foi absolutamente redentora e os seus protagonistas jamais podem ser esquecidos.

Leitura do 2º poema


Eram militares.

Eram jovens.

Carregavam no peito

o peso da arma e do receio.

Quantos rezaram?

Quantos choraram?

Quantos vacilaram?

O retrato dos filhos perto do coração.

A imagem da mulher a cercar-lhes o corpo.

As mãos das mães cheias de bênçãos.

E todos tão cheios de coragem!

 

Mas até a claridade tem os seus esboços de sombra e eles também estão na voz poética, traduzindo a tensão que, por instantes, digo instantes, porque na dimensão desmesurada deste dia de deslumbre, não há objetividade na contagem do tempo. O tempo é a alegria delirante do povo, é a certeza que o homem faz o tempo dos seus sonhos. É quando, frente a frente, os camaradas se confrontam, uns a abrir-se à definitiva claridade, outros ainda sob o jugo da servidão. Num poema repleto de metáforas, haverá nos céus comuns, possibilidade de harmonia?! Ouvimos a voz da poeta dizer este receio. Duas notas discordantes que acordam o poema e lhe sobem a vitalidade na progressão dos versos. De repente os pombos negros / volteiam em círculos / junto à ribeira das naus /   Num círculo maior / os pombos brancos / sobrevoam o terreiro do paço/ A linha curva traçada em lento rodopio / como se fosse misterioso, / cabalístico, enigmático / o volteio circular dos pombos/.

Insinua-se aqui, o ranger das dobradiças enquanto a janela não se escancara para deixar entrar a luz definitiva. Podemos dar-lhe um nome, podemos dar-lhe um rosto. A autora dá-lhe a essência e o momento decisório, nas palavras que a seguir se vão ouvir

 

Leitura do poema 3

  

Suava-lhe na mão a granada

que apertava com destemor.

Sentia colado na farda

o peso de um país

em esperança, em deriva.

No seu olhar era tão nítida a coragem,

que as armas de fogo

prontas a disparar se renderam.

Houve quem abraçasse o capitão.

E todos o respeitaram.

E muitos lhe chamaram companheiro.

 

E ainda assim o Tejo corria mansamente, alheio ao dilema dos homens, como a corrente inexorável da vida,

 E quem chegava e empoderava os momentos, carregadas de simbolismo e de futuro?! As mulheres! As mulheres com a sua força e o seu equilíbrio. Elas que carregavam braçadas de cravos rubros, vitais e sólidas naquela paisagem humana que se queria inteira. As mulheres fecundas, preponderantes em toda a obra poética da autora, chegam e multiplicam-se em generosidade e paixão oferecendo a flor da alegria que contagiou as multidões.  Os cravos fecundaram os sorrisos de esperança e até os meninos sabiam que era através dele que o futuro se pressentia. Um menino silenciava a morte da metralhadora com uma flor de liberdade. E se já referi que este livro tem milhões e milhões de imagens, esta, de Sérgio Guimarães ficou como símbolo inequívoco de vida e liberdade. Mas foram tantos e tantos os registos que ficaram a solidificar o olhar da memória…Eduardo Gageiro, Alfredo cunha, etc, etc, deixaram-nos testemunhos físicos de beleza arrepiante.

  No olhar da multidão, florescia um verão de contentamento. Nos soldados, nos passantes, nas raparigas, nas ruas, um aroma a puxar a liberdade.

Leitura do poema 4

 

Não havia na cidade sítio algum

onde não cheirasse a cravos.

Na praia, na relva, no campo,

na prumada das casas cheirava a cravos.

Cada mulher, cada homem, cada criança

tinha no hálito e no suor o mesmo aroma.

Os cravos cresciam nas calçadas mais íngremes,

nos becos mais escuros, no asfalto,

nas mãos dos soldados e dos meninos,

nas janelas, nos alpendres, nas portas.

E irrompiam em todos os sorrisos,

como se fossem um clarão de esperança.

Tanto tempo à espera deste dia!

 

  “Unia-se o povo para não mais ser vencido”, relata a autora. E essa promessa, é mais que uma promessa, - porque de tão evidente no rosto de todos, não deixava margem para recuos, - cantou-se em uníssono, espelhou-se nas águas do Tejo e propagou-se nas “trovas do vento que passa “estendendo ao mundo notícias de um país em Liberdade.! E as mulheres fecundas e prenhes de esperança falavam…

Leitura do poema 5

Um brilho inigualável roçava

os olhos das mulheres grávidas.

De respiração descompassada,

a insurgir o brado libertado dos seios,

passavam umas às outras a palavra:

“vamos parir em liberdade”.

Dava-lhes tanta calma essa certeza,

que a certeza ganhou voz

e, a um tempo chorando,

a um tempo rindo, repetiam:

“vamos parir em liberdade”.

 

Estes 25 poemas de “Era madrugada em Lisboa- Louvor a um dia com tantos dias dentro” é uma arqueologia das emoções de quem teve a felicidade e o privilégio de o vivenciar. E honra o passado, porque só o honrando e explicando se consegue construir o futuro.

            

Estes podem ser, - para alguns- os poemas simples, na obra a que a poeta nos habituou, mas, para mim, são a poesia do instante ou, em melhor definição, e penitenciando-me por ir roubar à nossa também poeta e editora presente, Virgínia do Carmo, o título de um livro seu, Poemas simples para corações inteiros!

Para mim, falar deste livro é falar de um alfabeto luminoso!

É falar, como disse, de uma arqueologia de emoções.

É falar de pele e suor. De lágrimas e riso, de fígado, de pulmão, de coração!

É falar da sagração de uma primavera sonhada. De todas as estações de que se alimenta a memória e a emoção.

É falar de rios e caminhos, que transbordam, que levam mágoas e desgraças, mas que acertam finalmente um céu para as aves.

É falar de Salgueiro Maia, é falar dos cravos nas metralhadoras, é falar de um futuro que vai ser medida na esperança das mães.

É o pulsar dos cravos que acende a redenção, como o sangue ou a vital respiração.

É chorar quando se abraça e gritar, gritar uma alegria desmedida que figura como espelho da cidade, da aldeia, do país inteiro...

É acertar o tempo, desacertando o relógio. É fulgor, pulsar e amar, incondicionalmente, a liberdade que chegou e tem de ficar...

É, sobretudo, uma voz plural! De muitos, de tantos, que por mais que passem anos e anos, na voz coletiva do povo e na voz afirmativa da autora se pode cantar, “Foi bonita a festa, pá!”

 

Luísa Henriques

Lisboa, 07 de abril de 2024

 

No lançamento de “Era madrugada em Lisboa: louvor a um dia com tantos dias dentro

                                                        


Há momentos ímpares!
Estar presente na apresentação de mais um livro da estimada amiga e poeta Graça Pires, foi uma honra imensa, e um canto à comemoração dos 50 anos de um Abril marcante.
Edição de POÉTICA GRUPO EDITORIAL, um livro apelativo e dimensionado ao traço de Graça Pires.
Lido numa noite, momentos houve ... bem tocantes, ao lembrar-me do meu "poiso" como militar nas terras da Guiné Bissau, aquando do despertar livre!
Não resisto.

O amanhecer foi tão inesperado
que lisboa vibrou em todos os lugares
antecipando o regozijo.
Nunca se tinha visto uma festa assim,
com carros de combate, chaimites,
com os militares e o povo em euforia
a encher cada rua, cada jardim, cada árvore.
E a cidade era de toda a gente.
Havia palmas, vivas à liberdade a tatuar as bocas,
lágrimas a ancorar o olhar em voos infinitos.
"Foi bonita a festa , pá."

GRAÇA PIRES
"Era Madrugada em Lisboa"
Louvor a um dia com tantos dias dentro
Poesia
2024 - Poética Grupo Editorial

José Luís Outono, poeta
E-mail, 09 04 2024


                        

Graça Pires em novo livro
ERA MADRUGADA EM LISBOA

Com o subtítulo de «louvor a um dia com tantos dias dentro» este recente livro de Graça Pires (n.1946) tem 35 páginas, um desenho de Rosário Alves e é editado pela Poética Edições. Abre com uma citação de Sophia de Mello Breyner Andresen («Esta é  a madrugada que eu esperava») e é dedicado aos capitães de Abril e envolve todas as pessoas que amam a liberdade.
Pode ler-se na p. 11: «Sem prazo, sem aviso sem detença/ aconteceu em Abril/ o mais esperado tempo/ e com ele o cheiro/ da terra que nos pertence». Conclui na página 35: «Agora pertencem ao silêncio/ mais nítido as canções, os gritos/ as lágrimas, os detalhes de uma festa/ acontecida num dia com tantos dias dentro/ numa cidade habitada pelo país inteiro».
Depois de «Espaço livre com barcos», «Uma claridade que cega», «Fui quase todas as mulheres de Modigliani», «A solidão é como o vento», «Antígona passou por aqui» e «O improviso de viver», um novo livro de Graça Pires a celebrar o tempo de Abril.

José do Carmo Francisco, escritor
Correio do Ribatejo, 21 de junho de 2024