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quarta-feira, 6 de abril de 2022

ORTOGRAFIA DO OLHAR

 



Ortografia do olhar. Lisboa: Éter, 1996


Ortografia do olhar intitula a obra de Graça Pires que aqui premiamos. Título particularmente sugestivo. Vejamos como.

Diz-nos qualquer gramática que a ortografia é a escrita correcta das palavras segundo as normas oficialmente estabelecidas. O que põe em causa o conhecimento desse saber instituído. Em caso de hesitação sobre a grafia de uma palavra, os filólogos aconselham uma prática, evocar outras palavras da mesma família.

Ora, este livro abre com duas epígrafes, filiando a escrita que se segue numa linhagem poética.

Herberto Helder de Os Passos em Volta e Nuno Júdice de Um Canto na Espessura do Tempo são assim sugeridos como pilares de uma matriz poética, radical que se deseja declinar, flexionar. Referências que revelam aos leitores como o poeta se inscreve ou se quer inscrever e ver inscrito no universo literário de contemporaneidade portuguesa.

Além disso estas duas epígrafes conjugam-se como um dueto inicial e anunciam uma terceira voz, um longo canto sincopado: os poemas “O rio”, “O verão”, “Um olhar”, “A casa”, “A cidade”, “Outono”, “O corpo”, “Um abraço”, “Amanhecer”, “O mar”, “As mãos”, “Os pássaros”, etc., etc.

Entre o dueto inaugural e o solo, dois textos sem título apropriam-se do que os outros poetas disseram, filtram esses cantos e correspondem-lhes.

Ao mesto tempo, sendo esse o espaço da subjectividade já mais plenamente assumida, é também aquele em que Graça Pires esclarece o seu projecto poético e o modo como pretende concretizá-lo.

Ao afirmar:

“E no túnel dos olhos do poeta

que se transforma o negativo

de um espanto represado na voz” (p. 2)

Graça Pires elege esse “túnel” como algo privilegiado da sua atenção e esse “túnel” consiste numa metáfora de processo criativo, desse processo de transformação da imagem observada, evocada ou imaginada, desde o seu enquadramento na palavra poética, ela mesma.

Antes, porém, Graça Pires diz

“Retardemos a abordagem do olhar,

para fazer lume no degrau das palavras

e arder de sílaba em sílaba

de rosto em rosto,

de cenário em cenário”. (p. 2)


Trata-se de uma exortação ao leitor, captado pelo plural do verbo para cumplicidade da espera. Daí em diante, o discurso poético faz o leitor deslizar “de sílaba em sílaba”, “de rosto em rosto”, de “cenário em cenário”, ou seja: de texto em texto. Como um cosmorama. Mas esta série funciona dilatoriamente, retarda, como se diz, “a abordagem do olhar”: o último poema, aquele que dá o título ao volume, o lugar onde se retomam muitos elementos disseminados pelos poemas anteriores que o preparam. A exortação inicial conquista-nos, pois, para a cumplicidade de uma suspensão que deve ser saboreada, para uma leitura cuja emoção a série visa simplificar: a da insustentável leveza da poesia (que Kundera me desculpe o recuso ao seu título).

Parabéns, Graça Pires e felicidades

Professora Doutora Anabela Rita

Na entrega do prémio “Prémio Nacional de Poesia 25 de abril

21 Abril 1995








O livro “Ortografia do olhar” é, antes de tudo, uma peregrinação da memória. Melhor: dos olhos da memória. E, consequentemente, um livro de paixões, do catar da luz, do esfiar de emoções que, por ou à conta da poesia, retornaram. E, por último, um livro de solidão.

Graça Pires sabe que as nostalgias estão aí, exigentes e catalogadoras elas também. Pega na máquina fotográfica das palavras e escreve (retrata) o que lhe vem. Fala das crianças, dos adolescentes, dos velhos, da casa (“como se fora uma gaivota de névoa”), das grandes e pequenas coisas que fazem passar os dias. E, sobretudo, do ser solidário com elas.

 

Viver sem rendições é o desafio

que nos cabe por inteiro.

Sabemos isso, solidários que somos

neste contrabando de afectos e coragem”.

 

Às vezes flashes rápidos de quem capta o instante preciso da luz prenunciadora de assombramentos. Outras vezes um demorado olhar, como que para reacertar, na realidade do presente, as furtivas e enevoadas imagens dum tempo que passou. “Quilha de silêncio onde ficamos exilados e cúmplices/ enconchando o coração para nele caber/ o estremecimento intacto de um rio”. Ou ainda: “Próximo do nome das coisas/ manobremos os sentidos/ enquadremos a imagem/ no centro da memória.

É da fonte da memória, repete-se, que bebe a poesia de Graça Pires. Sobretudo a deste livro, cujo título magnífico “Ortografia do olhar”, nos obriga a comungar o nosso olhar das coisas com o olhar da autora. A cumplicidade é mútua: Graça Pires dá-nos a escrita do que vê pelo lado de dentro de recordá-la; resta-nos a nós ajustar a memória que nos cabe (à ortografia do olhar que somos) as devolutas e exigentes imagens que pela visão dela (a autora) nos vão chegando. Solidariedade, cumplicidade, testemunho – e também um rasar da inocência (seu, nosso) como no belíssimo poema que ora se transcreve.

 

Rente à inocência

As primeiras mimosas marcaram a fronte

da menina saída do livro de aventuras,

que foi largado a um canto da inocência:

graciosa personagem a crescer para a memória

como um feitiço; íman sagrado que resgata

a fantasia e desenha um berço nas mãos

dos que são da mesma estirpe dos poetas.

A morada dos gnomos situa-se na estrofe

da cantiga que fala dos moinhos de vento,

ou ao rés da magia do mais minucioso gesto 

com que se adornam os cabelos e as mágoas.

 

E sem se alhear do tempo que corre (como contrabando de moções a guardar para posterior usufruto de que escreve e lê), a poesia de Graça Pires é, para lá de testemunhante, acusatória. Vejam-se os últimos dói versos do poema “Contracena” (“Incógnitos contracenamos a esperança/ consentida no sorriso dos que sonham” e “Insólito” (“Com quantos golpes de indiferença/ se destrói o mundo?”) ou ainda “Ser solidário” (Um rio a sobrar-nos nos olhos/ quando a pátria conflui/ a sul de todo o desalento/ e nenhum silêncio é legítimo para calar os medos”) e aperceber-nos-emos “ser esta a espera/ nas mãos entreabertas à revolta

Livro de nostalgias? Sim, de nostalgias e reivindicação delas, como arma de defesa e arremesso que a memória sempre é.

Ortografia do olhar fica também perto desse terrível e gratificante território das paixões filtradas pela luz de anteriores crepúsculos e a recuperar a magia das albas que virão. Um livro para ser lido pela belíssima poesia que também, e sobretudo é.


Hugo Santos, poeta

No lançamento do livro, 1996





Graça Pires tem a sensibilidade fina e original, por vezes a amargura, de uma Sylvia-Plath, aliada a um rigor e contensão que dão à sua poesia o necessário equilíbrio. Pela beleza depurada da sua imagética, pela tonalidade melancólica, pelo tratamento profundo de “grandes temas”, como o tempo e o amor, este livro vai decerto contribuir para a plena afirmação do seu talento.

 Urbano Tavares Rodrigues, escritor

Texto manuscrito oferecido para publicar na contracapa, 28 abril 1996