Ortografia do olhar. Lisboa: Éter, 1996
Diz-nos qualquer gramática que a ortografia
é a escrita correcta das palavras segundo as normas oficialmente
estabelecidas. O que põe em causa o conhecimento desse saber instituído. Em
caso de hesitação sobre a grafia de uma palavra, os filólogos aconselham uma
prática, evocar outras palavras da mesma família.
Ora, este livro abre com duas epígrafes, filiando a
escrita que se segue numa linhagem poética.
Herberto Helder de Os Passos em Volta e Nuno
Júdice de Um Canto na Espessura do Tempo são assim sugeridos como
pilares de uma matriz poética, radical que se deseja declinar, flexionar.
Referências que revelam aos leitores como o poeta se inscreve ou se quer inscrever
e ver inscrito no universo literário de contemporaneidade portuguesa.
Além disso estas duas epígrafes conjugam-se como um
dueto inicial e anunciam uma terceira voz, um longo canto sincopado: os poemas “O
rio”, “O verão”, “Um olhar”, “A casa”, “A cidade”, “Outono”, “O corpo”, “Um
abraço”, “Amanhecer”, “O mar”, “As mãos”, “Os pássaros”, etc., etc.
Entre o dueto inaugural e o solo, dois textos
sem título apropriam-se do que os outros poetas disseram, filtram esses cantos
e correspondem-lhes.
Ao mesto tempo, sendo esse o espaço da
subjectividade já mais plenamente assumida, é também aquele em que Graça Pires
esclarece o seu projecto poético e o modo como pretende concretizá-lo.
Ao afirmar:
“E no túnel dos olhos do poeta
que se transforma o negativo
de um espanto represado na voz” (p. 2)
Graça Pires elege esse “túnel” como algo
privilegiado da sua atenção e esse “túnel” consiste numa metáfora de processo
criativo, desse processo de transformação da imagem observada, evocada
ou imaginada, desde o seu enquadramento na palavra poética, ela mesma.
Antes, porém, Graça Pires diz
“Retardemos a abordagem do olhar,
para fazer lume no degrau das palavras
e arder de sílaba em sílaba
de rosto em rosto,
de cenário em cenário”. (p. 2)
Trata-se de uma exortação ao leitor, captado pelo
plural do verbo para cumplicidade da espera. Daí em diante, o discurso poético
faz o leitor deslizar “de sílaba em sílaba”, “de rosto em rosto”, de “cenário
em cenário”, ou seja: de texto em texto. Como um cosmorama. Mas esta série funciona
dilatoriamente, retarda, como se diz, “a abordagem do olhar”: o último poema,
aquele que dá o título ao volume, o lugar onde se retomam muitos elementos
disseminados pelos poemas anteriores que o preparam. A exortação inicial conquista-nos,
pois, para a cumplicidade de uma suspensão que deve ser saboreada, para uma
leitura cuja emoção a série visa simplificar: a da insustentável leveza da
poesia (que Kundera me desculpe o recuso ao seu título).
Parabéns, Graça Pires e felicidades
Professora Doutora Anabela Rita
Na entrega do prémio “Prémio Nacional de Poesia 25
de abril
21 Abril 1995
O livro “Ortografia do olhar” é, antes de tudo,
uma peregrinação da memória. Melhor: dos olhos da memória. E, consequentemente,
um livro de paixões, do catar da luz, do esfiar de emoções que, por ou à conta
da poesia, retornaram. E, por último, um livro de solidão.
Graça Pires sabe que as
nostalgias estão aí, exigentes e catalogadoras elas também. Pega na máquina
fotográfica das palavras e escreve (retrata) o que lhe vem. Fala das crianças,
dos adolescentes, dos velhos, da casa (“como se fora uma gaivota de névoa”),
das grandes e pequenas coisas que fazem passar os dias. E, sobretudo, do ser
solidário com elas.
“Viver sem rendições é o desafio
que nos cabe
por inteiro.
Sabemos isso,
solidários que somos
neste
contrabando de afectos e coragem”.
Às vezes flashes rápidos de
quem capta o instante preciso da luz prenunciadora de assombramentos. Outras
vezes um demorado olhar, como que para reacertar, na realidade do presente, as
furtivas e enevoadas imagens dum tempo que passou. “Quilha de silêncio onde ficamos exilados e cúmplices/ enconchando o
coração para nele caber/ o estremecimento intacto de um rio”. Ou ainda: “Próximo do nome das coisas/ manobremos os
sentidos/ enquadremos a imagem/ no centro da memória.
É da fonte da memória,
repete-se, que bebe a poesia de Graça Pires. Sobretudo a deste livro, cujo
título magnífico “Ortografia do olhar”,
nos obriga a comungar o nosso olhar das coisas com o olhar da autora. A
cumplicidade é mútua: Graça Pires dá-nos a escrita
do que vê pelo lado de dentro de recordá-la; resta-nos a nós ajustar a memória
que nos cabe (à ortografia do olhar que somos) as devolutas e exigentes imagens
que pela visão dela (a autora) nos vão chegando. Solidariedade, cumplicidade,
testemunho – e também um rasar da inocência (seu, nosso) como no belíssimo
poema que ora se transcreve.
Rente à inocência
As primeiras
mimosas marcaram a fronte
da menina
saída do livro de aventuras,
que foi
largado a um canto da inocência:
graciosa
personagem a crescer para a memória
como um
feitiço; íman sagrado que resgata
a fantasia e
desenha um berço nas mãos
dos que são da
mesma estirpe dos poetas.
A morada dos
gnomos situa-se na estrofe
da cantiga que
fala dos moinhos de vento,
ou ao rés da
magia do mais minucioso gesto
com que se
adornam os cabelos e as mágoas.
E sem se alhear do tempo que
corre (como contrabando de moções a guardar para posterior usufruto de que
escreve e lê), a poesia de Graça Pires é, para lá de testemunhante, acusatória.
Vejam-se os últimos dói versos do poema “Contracena”
(“Incógnitos contracenamos a esperança/
consentida no sorriso dos que sonham” e “Insólito”
(“Com quantos golpes de indiferença/ se
destrói o mundo?”) ou ainda “Ser
solidário” (Um rio a sobrar-nos nos
olhos/ quando a pátria conflui/ a sul de todo o desalento/ e nenhum silêncio é
legítimo para calar os medos”) e aperceber-nos-emos “ser esta a espera/ nas mãos entreabertas à revolta”
Livro
de nostalgias? Sim, de nostalgias e reivindicação delas, como arma de defesa e
arremesso que a memória sempre é.
Ortografia do olhar fica também perto desse
terrível e gratificante território das paixões filtradas pela luz de anteriores
crepúsculos e a recuperar a magia das albas que virão. Um livro para ser lido
pela belíssima poesia que também, e sobretudo é.
Hugo Santos, poeta
No lançamento do livro, 1996
Graça Pires tem a
sensibilidade fina e original, por vezes a amargura, de uma Sylvia-Plath,
aliada a um rigor e contensão que dão à sua poesia o necessário equilíbrio.
Pela beleza depurada da sua imagética, pela tonalidade melancólica, pelo
tratamento profundo de “grandes temas”, como o tempo e o amor, este livro vai
decerto contribuir para a plena afirmação do seu talento.
Texto manuscrito oferecido
para publicar na contracapa, 28 abril 1996