Conjugar afectos. Lisboa: Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas, 1997
Graça,
Gostei muito do seu modo de
“Conjugar afectos”.
Mais de uns poemas do que
doutros, o que é natural. Quanto mais espontâneos e simples mais me agradaram.
Algumas vezes senti que você procurou fórmulas (ou palavras) um pouco
rebuscadas, que retiraram fluidez e até sentido poético a alguns textos.
Julgo ter descoberto a
procura inquieta (e indomável?) da plenitude, que poderá eventualmente só
através de um grande amor ser atingida.
“Porém
um dia, avistaremos ilhas de búzios coloridos
que
os mapas não referem”. (p. 33)
É gratificante encontrar uma
presença tão forte de erotismo, não exibido, mas revelado com sensibilidade.
“Diz-me
palavras insensatas, para que eu percorra os segredos escondidos no silêncio da
tua voz.
O
teu corpo húmido aviso dos meus sentidos
os
teus olhos atónitos com o júbilo dos meus” (p. 7)
“Amo-te
como no tempo em que o meu corpo era uma ilha
e
nenhuma palavra me parecia intrusa dentro da tua boca “(p. 16)
“Pergunto
por ti com raízes de ervas doces presas nos dentes” …
“Que
tumulto estilhaçou a minha vontade, quando o teu braço contornou a sombra do
meu corpo” (p. 11).
Gostei
igualmente do poema da p. 4.
O poema da p. 22 “Um homem
desertou da hipótese de amar" parece-me dos mais conseguidos. Você
consegue aqui evitar o recurso a tudo o que esteja a mais. É uma pequena
maravilha.
[…] Não sendo poeta, aí
vai um pouco de René Char, um dos meus autores favoritos:
“Un poète doit laisser des traces de son passage,
non des preuves. Seules
les traces font rêver”.
Manuel Fazenda Lourenço
Carta manuscrita, 28 de fevereiro
de 1993
O livro vencedor deste
prémio [Grande Prémio Literário do 1º Ciclo Cultural Bancário], intitulado
“Conjugar Afectos”, é o resultado de uma já apurada experiência poética por
parte da autora.
O presente livro revela, para além da capacidade poética, a capacidade de conjugar o afecto com a palavra. É a palavra do afecto, é uma constante questionação do mundo e da vida entre os homens, é uma grande paixão de viver, elementos constantes ao longo das cem páginas deste livro, onde não há uma quebra de unidade, onde o leitor encontra o ritmo exigido a toda a grande poesia.
Em suma, é um livro que, pela sua qualidade interior, só poderia ganhar um prémio literário. Estamos certos de que a autora ainda tem muito para nos dar, bem como à poesia portuguesa.
Palavras do júri do prémio, 2 de novembro de 1996
Conheci Graça Pires, há uns
anos atrás, quando ambos nos encontrámos no Barreiro para receber um pequeno
prémio literário que nos coubera. Voltei a encontrá-la tempos depois, em Torres
Novas, desta vez como espectador numa cerimónia que lhe granjeara novo
“pequeno” prémio. E, mais tarde, em Vila Nogueira de Azeitão quando a poetisa
foi distinguida com o Prémio Nacional Sebastião da Gama. Foi sobretudo aí que
me dei conta da belíssima poesia de Graça Pires.
Quando se levantou a
hipótese (que muito me honra) de ser eu a prefaciar esta sua nova obra,
lembro-me de, telefonicamente, a esclarecer ser minha pretensão falar mais das
emoções da (sua) poesia do que embrenhar-me pelos escarpados da teoria e da técnica,
da escola, do grupo os das “matemáticas” que
também concernem a qualquer obra poética.
Portugal é um país de
poetas, proclama-se. Será. De bons e de maus poetas, naturalmente. Graça Pires,
sem dúvida, faz parte do grupo dos primeiros. Mas quem os escuta, aos poetas?
Quem os lê? Quem sabe que existem? Quem os dá a conhecer?
Escrever poesia em Portugal
é uma aventura arriscada e traiçoeira. Publicar poesia em Portugal é empresa
duplamente ousada, traiçoeira e atraiçoada. Se houvesse possibilidades de
inquirir, um a um, os dez milhões de habitantes deste país sobre o nome dum
poeta contemporâneo que alguma vez houvessem lido creio bem que noventa por
cento não teria qualquer resposta para dar. O círculo é vicioso e a excepção
não faz a regra. Em que escolas do Ensino Básico se esclarecemos alunos de que
há poetas e poesia? Quantos professores do Preparatório ou do Secundário
(deixemos de lado, as tais, tão pequenas e honrosas excepções) alguma vez
mencionaram o nome de obra ou de autor de poesia? É uma verdade cruel? É, sim
senhor. E tanto mais quanto se diz que as pátrias e os povos se fazem da
memória e da poesia dos seus filhos.
As raras editoras que ainda
hoje se aventuram à publicação de
qualquer livro de poesia pressentem de antemão o risco que correm. Afora alguns
casos isolados (de autores ou editores) o fracasso mora a um passo das boas
intenções. Onde e como encontrar quem leia, quem leia poesia? Como achar agulha
num palheiro de “ignorância”,
despudoradamente cultivada, de “indiferentismo”
publicamente assumido, de “vazio” (às
vezes forçadamente, às vezes ingenuamente) premeditado? Como assumirmos, todos,
as culpas de, num país de poetas, nem mesmo os poetas se conhecerem uns aos
outros?
Os raros jornais ou revistas
que ainda vão teimando numa página literária fazem as recensões, que não
agradecem e silenciam. (Repetimos: há excepções, mas tão passadas à peneira!).
Silenciam e agridem pela usurpação da voz. O terrorismo da omissão é, porventura, o mais cruel e sofisticado
inimigo da poesia e do poeta. Os sórdidos esquecimentos perpetrados por quem
devia dar a conhecer e cala (consciente ou inconscientemente, não é isso que
importa) talvez acabe por dar lugar a reparações que o tempo, mais tarde ou
mais cedo, acabe por impor a si mesmo. Mas teremos, nós e os poetas, de estar condenados a um lendário paraíso
(palavras da autora) onde hoje quase só habitam os deuses do efémero?
Mas pronto, falemos de coisas belas. Falemos agora da poesia de Graça Pires.
A propósito do último livro de Graça Pires “Ortografia do olhar”, escreveu Urbano Tavares Rodrigues: «Graça Pires tem a sensibilidade fina e original, por vezes a amargura, de uma Sylvia-Plath, aliada a um rigor e contensão que dão à sua poesia o necessário equilíbrio. Pela beleza depurada da sua imagética, pela tonalidade melancólica, pelo tratamento profundo de “grandes temas”, como o tempo e o amor, este livro vai decerto contribuir para a plena afirmação do seu talento».
Creio que o mesmo diria o reputado escritor desta magnífica obra, “CONJUGAR AFECTOS”. A poesia depura-se com as emoções e o invés. “O nervo afectuoso das palavras” está presente quando “um pássaro verde nos nasce no peito / para antecipar a esperança”. É desse afecto recíproco entre as palavras e quem as dita (entre o sentir e o fazer delas a sua anunciação e a sua proclamação) que a poesia de Graça Pires surge, melancólica umas vezes, nostálgica outras, “excessiva como as paixões” as demais. Há uma ponte levadiça na escrita da autora, entre o passado e o presente-futuro que lhe (nos) coube. Intemporal talvez, cerrada na névoa do que é apenas adivinhável, pressentida tão-só pelo halo misterioso que ordena e comanda as comoções, mas ela (a ponte, a montanha mágica) está ali. “Se quiserem saber de mim podem procurar-me no deserto”, diz a certo passo a autora. Poderia tê-lo dito doutra forma: «Se quiserem saber da minha poesia, procurem-na no afecto com que me (a) conjugo». “Levemente inquietas, levemente acesas, levemente inocentes” as palavras indiciam, catalogam, absorvem-se, assumem o que há de intemporal no duplo acto da criação-recriação de que é feita a obra poética. Tal como em “ORTOGRAFIA DO OLHAR” este livro é também uma peregrinação da memória, do captar da luz e do esfiar das comoções. Não sei se anterior ou posterior, porque “mais perto da infância, anda no ar / uma nova relação com a felicidade”. É nesse instante preciso que, no fundo conta. Esse “sempre mais perto “(da infância, da memória e das nostalgias dela) que Graça Pires capta na máquina fotográfica dos seus sentimentos. Esse, afinal, momento único, de afectos e pronunciamento deles que se estabelece entre a mão (o sentir) e a escrita, entre o acolhedor dela (o leitor) e a emoção que lhe sobrevém.
A ligação entre os poemas de “CONJUGAR AFECTOS” não se faz creio-o, pelo tempo que transcorreu entre uns e outros, mas pela ordem mágica que as lembranças (melhor: as nostalgias que povoam as lembranças) lhe requerem. É por isso que, ainda que sem título individualizado, estes poemas se acertam, se ajustam e são parte integrante do corpo total da própria poesia. “De rosto em rosto a caligrafia do amor / implorou a memória das palavras encantadas”; ou “Habito a deriva dos labirintos / com vontade de ser cativa de uma presença / de um nome, de um aceno”; ou ainda “Ninguém me diga o caminho onde se equivalem/ os dias e as noites de um roteiro de verão”, e são versos escolhidos ao acaso para proclamar que é preciso “deixar passar o poema, ansioso da rua larga” da cidade onde as palavras são o testemunho-primeiro duma poesia (dum poeta) cuja “boca se legenda de contos de fadas”.
“CONJUGAR AFECTOS” é, já se disse atrás, um belíssimo livro da melhor poesia. É, aqui, que nos reportaríamos à primeira parte desta análise: para ficar como lembrança ou como esquecimento? Para ser fruído por quem tiver a possibilidade de o ler ou omitido por quem devia mostrá-lo à luz? Para deixar que seja “afecto” ou exclusão dele? Oxalá que pelo menos quede “no lugar em que os rios se cruzam/ com os olhos dos poetas”.
Hugo Santos, poeta
Na apresentação do livro, 28 de novembro de 1997