Uma certa forma de errância. Vila Nova de Gaia: Ausência, 2003
Organizados entre dois tipos de discurso, os poemas deste recente livro de Graça Pires (Prémio Literário Maria Amália Vaz de Carvalho) são o duplo testemunho de uma narrativa e de uma mensagem.
O poema inicial explica não só o lugar («Na
periferia da manhã») mas também o projecto de Penélope: («E concedo-me o
direito de esperar Ulisses»). O segundo poema regista a fala de Penélope a
Ulisses: «O teu rosto longamente procurado / não tem búzios nem conchas nem
corais. / Na praia até então intacta / sinto a luz dos teus passos». Mas o
poema, qualquer poema, não existe independente da biografia do poeta: «Os meus
olhos tropeçam em raízes antigas / e movem-se-me na memória indecifráveis
sinais: / marcas de nascimento, lugares e pessoas, gestos e palavras».
Penélope dirige-se a Ulisses e explica a sua
renúncia ao esquecimento: «Podia esquecer-te para sempre, não fora a vertigem
da tua sombra a cercar os meus olhos».
O poema surge, assim como ponto de encontro,
lugar de existência de um amor capaz de resistir a todas as distâncias:
«Alheio-me da minha cronologia / porque o passado se tornou permanente. Caminho
tão perto do mar / que Ulisses avalia a direcção do vento pelos vestígios / do
meu respirar, lento ou apressado».
Na dupla inscrição de discursos surge uma dupla
inscrição de viagens. Se Penélope procura Ulisses («Não presto contas a
ninguém. E vou por aí ao sabor do vento») também Ulisses procura Penélope:
(«Uma velhice súbita lateja sobre os teus ombros / e pega-se-te ao rosto uma
angústia sem recuo: / um caminho de mágoa nos teus olhos»). O poema surge como
o lugar encruzilhado de memórias, ritmos e emoções e nem é preciso saber se
Ulisses regressou de facto: «É pela noite, quando as madressilvas / adejam
perfumadas sobre emboscados / silêncios que posso imaginar o teu regresso». O
importante é perceber a beleza às vezes magoada e triste destes poemas nos
quais a autora inscreve a sua arte poética de modo discreto, mas sempre eficaz:
«É um verso, toda a luz filtrada pelo olhar / quando me surge, das mãos, um
barco desvairado. / Vozes longínquas me interrogam sobre a tinta / azul
impressa nos meus dedos: / são os mares da Odisseia a inundar-me a garganta; /
são citações de Homero oscilando em meus lábios; / são, não sei que aves
marinhas, no estuário das mãos. / Como quem usa a luz para esconder as sombras.
José do Carmo Francisco, poeta
“Notícias da Amadora”, 15 janeiro 2004
e “Diário Insular” 1 abril 2004
A poesia de Graça Pires é
atravessada, toda ela, por uma forte componente sentimental, não na medida das
emoções veladas ou mal contidas dos românticos nossos avós, mas na dimensão
actual de um erotismo que já não se esconde atrás de metáforas para se insinuar
de uma forma subliminar, mas que, ao contrário, se manifesta através de
metáforas que mais e melhor lhe corporizam a expressão. Sem um domínio completo
da língua, o uso da metáfora para fins, digamos assim, hostis à sua tradicional
função, resultaria, com certeza, de impreciso sentido translato. E é nessa
harmonização do dizer outro da relação de semelhança, com a necessidade de
falar verdade e claro do que lhe vai na alma e no temperamento, a par de um
domínio completo da língua, que Graça Pires consegue a síntese surpreendente de
que se nutre a sua poesia: um límpido discurso amoroso que comove, fascina e
empolga. Os dois últimos livros da poeta, visitados já pela lucidez da
maturidade que lhes refina, aliás, a escrita, intitulam-se Reino da Lua (Escritor) e Uma
Certa Forma de Errância (Ausência). Deste último, que foi Prémio Maria
Amália Vaz de Carvalho, escolhemos o seguinte poema:
Sem qualquer pudor, deixei a marca
do meu andar apressado,
em todos os caminhos de esperas decisivas.
Algo envelheceu nos meus pés,
manchado pelo desacerto dos dias.
De tanto
percorrer o chão da infância,
as minhas pálpebras
encheram-se da lucidez dos velhos.
Não creio que os dias se revezem,
inevitavelmente iguais.
Sinal de sede, ou de um verão antigo
inquietando a boca?
Júlio Conrado, escritor
“Boca
do Inferno”, março 2004
Vila
Nova de Gaia, 1 de março 2008
Estimada
Amiga:
É de ausência (quero dizer,
de errância, de deriva interior) que falam, de facto, os seus poemas, estes que
agora me chegam. Três ou quatro palavras me parecem resumir o sentido geral:
paixão, angústia, solidão, infância. Expressões como “à procura de mim”, “O
remoto exercício da tristeza”, “O coração em desordem”, ou “a cor entardecida
de meus olhos, tão cheios de barcos de ausência” são reveladores de estados de
alma próximos da ansiedade, do tumulto, da expectativa, da busca, da espera.
Não por acaso, os poemas
falam com frequência de veleiros, de barcos, do mar, dos mares da Odisseia – os
mares de Ulisses, tantas vezes convocado para a semântica do poema. Falam, em
suma, de viagens, de aventura.
O tom é o dos segredos
revelados ao ouvido, na “hora em que o poente escurece (…) as pálpebras”.
Simples, limpa – límpida – a expressão.
O último poema (de que
gostei particularmente) aparece-me com o cais onde aportam os barcos do desejo,
palavra que, não nomeada, se pressente, todavia, nos interstícios da voz.
Bem-haja pela oferta. E
obrigada pelo que diz do “Escrito a vermelho”.
Um abraço afectuoso e grato.
Albano
Martins, escritor
Carta manuscrita
“UMA CERTA FORMA” DE FAZER POESIA
(…) pulsa-me no peito um coração paciente
(Homero, Odisseia)
Sem qualquer pudor, deixei a marca
do meu andar apressado em todos
os caminhos de esperas decisivas.
(Graça Pires, Uma certa forma de errância)
De todas as artes,
ensina-nos Hegel, a poesia exprime a representação espontânea do verdadeiro.
Sua principal missão consiste em evocar à consciência a potência da vida
espiritual, e tudo aquilo que, nas paixões e sentimentos humanos, nos estimula
e comove. A palavra poética é capaz de apreender os interesses e movimentos
espirituais sob seu aspeto mais vivo. Efetivamente a poesia na chama à
consciência, ou melhor, nos leva a compreender o reino ilimitado das
representações, das ações, das façanhas, dos destinos humanos, a marcha, as
peripécias do mundo e a maneira como ele é regido pelos deuses pois a poesia sempre foi, e continua a ser, a
fonte na qual o homem sacia a sua sede de conhecer, o seu desejo de instruir
(Estética, 1964: 38).
A produção poética da
escritora Graça Pires reforça a ideia de que a poesia continua a exprimir o
espontâneo e o verdadeiro; ela reúne uma riqueza de conteúdo, multiplicada por
imagens e sentimentos.
Rara descoberta de leitura, dá-nos a certeza de que a poesia, mais do que cumprir a sua função primordial – a de revelar a inocência e o sublime existentes no ser -, ela recorta as inquietudes do tempo e resiste enquanto arte. Nossas épocas, catastróficas ou revolucionárias; as ações humanas, imprevisíveis e egoístas, não sufocam a poesia, ao contrário, faz com que ela continue fiel aos seus princípios de criação inovadora e, ao persistir, mantém a chama que aguça, que guarda a imagem real do homem e o seu tempo.
Uma certa forma de errância (2003), sétimo livro de poemas publicado pela poeta de Figueira da Foz, revela uma poesia que reúne sabedoria e prudência no diálogo com a tradição: (…) são os mares / da Odisseia a inundar-me a garganta / são citações de Homero oscilando em meus lábios; desprendimento diante do branco da página, pois sobre a folha intacta, as palavras sempre impõem um ritmo, uma textura e, sobretudo, uma imagem: Na periferia da manhã, levemente adiada, / improviso uma ilha. Tão nua como páginas em branco; ingenuidade e emoção, artimanhas necessárias para enfrentar a universalidade dos sentimentos – razão e sensibilidade: Habito uma ilha suspeita / de servir de abrigo a veleiros perdidos; de coragem e habilidade para aventurar-se ao desconhecido: À porta fechada, preparo um roteiro de viagens e, finalmente, malícia para tocar a lira e maturar o canto: utilizo um roteiro de artifícios para simular, / em cada madrugada, a cumplicidade dos deuses.
Constata-se o valor poético da escrita de Graça Pires pela facilidade com que a poeta manuseia as palavras. No diálogo com a tradição revela exímia desenvoltura. Existe sensibilidade ao apreender, sem copiar, a palavra dos Mestres, do mesmo modo como há ousadia ao impor-se como uma voz de timbre próprio. Ao convocar Homero, pai da Ilíada e da Odisseia, as malícias e habilidades do herói de Ítaca, se reinventam no presente, e o presente, como ensina Octávio Paz, é o instantâneo, a forma mais pura, intensa e imediata to tempo (Os filhos do barro, 1984).
O tempo é a essência das inquietações do ser. É um fluxo contínuo, composto de tudo: separações, inquietudes, aprendizados, esperas, certezas e incertezas. Como diz Raduan Nassar, autor de Lavoura Arcaica, O tempo, o tempo e suas águas infláveis, esse rio largo que não cansa de correr, lento e sinuoso, ele próprio conhecendo seus caminhos, recolhendo e filtrando de vária direção o caldo turvo dos afluentes e o sangue ruivo de outros canais para com eles construir a razão mística da história (1988: 184).
A poeta de Uma certa forma de errância faz do tempo um ardil para burlar o cansaço da espera: E concedo-me o direito de esperar Ulisses. Enquanto ele urge a solidão do ser, o Eu defende-se por meio do tecido de suas artimanhas: Mas como silenciar as mãos que dobam / a brisa da manhã, no vórtice do tempo. A confiança no poder da palavra, confere a certeza de que o tempo, esta fração instantânea, quanto mais foge das mãos, com maior intensidade é vivida, idealizada: Conto pelos dedos, / o tempo de entardecer cansaços. A grande aspiração do poeta é fazer com que a poesia cumpra, nas palavras, a sua função original, a de ser linguagem verdadeira de todas as revelações e revoluções (PAZ, 1984:57). Graça, no exercício da lírica, ordena a linguagem de maneira harmoniosa sem, no entanto, deixar de incutir mistério, de tal modo que cada imagem passa a encerrar a solução de um enigma. Nesta forma pessoal de a poeta trabalhar a linguagem, como resultado de um esforço individual, concentra-se a força desta poesia. Ação de escrita que revela e/ou mostra a saga de um aprendizado: De tanto percorrer o chão da infância, / as minhas pálpebras encheram-se da lucidez dos velhos.
Na poeta de Conjugar afectos (1997), inspiração e construção se entrelaçam. Percebe-se que o aspecto da escrita poética de Graça vai além da inspiração, o Eu tange a lira como arco tenso, buscando, assim, uma originalidade que a ajude a construir uma palavra poética com a astúcia e a habilidade de uma excepcional artesã.
A leitura deste livro dá-nos a certeza de que, nos dias atuais, a poesia reafirma o status de uma linguagem refinada. Na oficina da poeta, o Eu continua a traduzir, pela palavra, mitos, sonhos, paixões, angústias. É uma linguagem viva a equacionar o sentido profundo da existência humana.
Cleri Aparecida Biotto Bucioli, poeta
agosto 2007