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segunda-feira, 7 de abril de 2025

TALVEZ HAJA AMORAS MADURAS À ENTRADA DA NOITE

 



Talvez haja amoras maduras à entrada da noite. Lisboa: Poética, 2025

SILÊNCIOS QUE GUARDAM GRITOS,

RIOS QUE MUTUAMENTE SE BEBEM

 

Ler palavras novas de Graça Pires é "entrar no labirinto das palavras", pé ante pé, decifrar os sinais e pistas - praia, fogo, água, luz,…- e avançar sem saber se estamos a seguir os passos da Autora ou outros passos que nos levam ao mesmo destino por outro caminho. Quem leu a poesia anterior de Graça Pires, decerto conhece a sensação. Não vale a pena tentar descobrir esse caminho íntimo escondido - o mais provável é nunca descobrir nos versos de Graça Pires, a "dor que deveras sente".

"A noite recupera na sombra olhares crentes / no regozijo quase absurdo / das manhãs luminosas" - lemos no poema inaugural deste livro. A noite pertence aos Poetas, é nela que antecipam a luz. A noite, com a sua escuridão, destaca as luzes quase sempre ofuscadas e indistintas na claridade do dia. A quietude da noite é um disfarce, um "celeiro dos silêncios". Os silêncios são guardas, vigilantes, das colheitas de vozes e gritos. É por isso que Graça Pires fala da "espiritual osmose / entre a poesia e o silêncio". É também na noite que se esbatem as divisões do tempo, transformando o passado, o instante e o futuro em contemporâneos. O "fascínio da inocência / desoladamente perdida" não é só recordação, saudade ou nostalgia - é desejo e horizonte de chegada. E se a noite consegue esbater as divisões do tempo, o amor consegue superar o próprio tempo. O "barco de papel" que circum-navegou os corpos dos amantes (que bela imagem!) pode ter sido cerceado pela "última maré-viva", mas os amantes ainda se amam "obsessivamente". É por isso que a noite pertence a criaturas luminosas: os amantes e os poetas.

A noite que Graça Pires nos abre neste livro não é um mundo de fantasia. É um labirinto com  avisos, janelas sobre a realidade. Por exemplo, quando compara a delicadeza dos crisântemos à "cambraia bordada / por mulheres caladas / que carregam no sangue / misturas insubmissas / de vida e de morte". Noutras janelas, são as mães com " vozes de deméter clamando sem consolo", capazes de movimentar a natureza para resgatar os filhos, como na mitologia. Ou ainda a mãe de "mãos inteiras" que "sempre soube receber / através do tanto que deu". A condição da mulher - feita de amor, delicadeza, sofrimento e coragem - é a lente que permite ver a realidade do mundo. A mulher mãe, amante, pensamento, natureza, está omnipresente e vigilante no caminho por onde a poesia de Graça Pires nos leva. Tal como a noite, a mulher é um celeiro de vozes, sejam elas a da mãe que "de fome / já tinha morrido duas vezes / com os filhos" e que "gritava sem cessar o nome de cada um", ou a mulher "naufragada no centro de mim / grito silenciosamente". Silenciosos ou não, são os clamores da mulher que revelam a fealdade do mundo. Em livros anteriores, já os leitores tinham encontrado a forma - suave, mas explícita e firme - como a poesia de Graça Pires assume crítica social. A fealdade do mundo não é só uma apreciação estética. A "chave" pode estar nestes versos: "Observo no pranto / a origem das águas / e por elas regresso ao rio que penetra em delírio / no mar da infância infinita". É de facto nesta "infância infinita" que a fealdade e a injustiça são sinónimas. Só uma criança é capaz de tanta lucidez.

Existe, por conseguinte, um sentido para a caminhada no labirinto da noite, para além da quietude dos celeiros e longe do conformismo. O labirinto não é mero entretenimento. O caminho tem um destino: "Sou marinheiro. / Tenho remos nos pés / um soluço a navegar no peito / e um barco atracado na lembrança. / De muito longe me convocam".

 Graça Pires procura - e encontra! - na infância a lucidez de que o mundo e o futuro necessitam. É por isso que o poema "Meninos com gula" se presta a ser um dos poemas preferidos do leitor. O entusiasmo dos jovens com o amor é comparado com a gula dos meninos à procura de amoras. Anos passados, depois de toda uma vida, é ainda o entusiasmo que persiste, sem cair na condescendência do olhar crítico sobre o passado: "Vamos de novo amor / antes que sequem no coração / as amoras da juventude". O amor é simples, basta amar. Não fazemos ideia do caminho que a poetisa percorreu, e ela alerta que não vale a pena seguir as suas pegadas, porque também ela chegou a andar perdida: "Perdi-me na geografia / dos lugares onde era meu / o barro dos sonhos". Ela não quer que a sigam e pouco ou nada aponta para si própria, preferindo apontar para o que está à volta.  O regresso às "amoras da juventude" soa como um destino apontado ao leitor. As amoras estavam lá, maduras, à entrada do labirinto noturno. Bastava vê-las, e não as deixar secar. Às vezes, só se consegue avançar se houver coragem de regressar ao ponto de partida. É lá que estão as amoras.

Neste seu livro-labirinto, Graça Pires mostra, uma vez mais, como são ténues as fronteiras entre o assuntos do coração, do mundo e da poesia. É suposto deixar aqui a informação, ou pelo menos um vislumbre, do que se nele pode encontrar. A resposta mais honesta que me ocorre depois de o ler é: depende do que nele se quer procurar. A lucidez da infância infinita. As amoras da juventude. Os "rios que mutuamente se bebem", na poderosa imagem do poema magnífico que exprime o amor intemporal no expoente máximo da entrega:

"Nas margens do teu corpo

envolvo as margens do meu corpo.

É puro o rio

em que ousamos navegar.

Se disseres o meu nome

hei-de encostar o ombro

ao som da tua voz

para ludibriar a sede.

Seremos como rios

que mutuamente se bebem."

 

A mesma imagem, páginas adiante, no poema "É sempre a sede":

 

"É sempre esta sede sem fim

a demandar a nascente perfeita

onde as águas se bebem

demoradamente".

 

Sim, "talvez haja amoras maduras à entrada da noite". À espera de serem colhidas. A tempo. À entrada da noite.

 

Carlos Campos, advogado e escritor

Na apresentação do livro, 6 de abril de 2025


                     

Após "duas" leituras apaixonadas do novo Livro de Poesia de Graça Pires - «TALVEZ HAJA AMORAS MADURAS À ENTRADA DA NOITE»
retrato por aqui, um pouco dos momentos vividos na sua apresentação.

Os crisântemos

Em voz baixa
digo que os crisântemos
crescem no batimento
inquieto do coração
E são delicados
como a cambraia bordada
por mulheres caladas
que carregam no sangue
misturas insubmissas de vida e de morte

(pág. 10)

Com a apresentação de Carlos Campos , um poeta que também muito estimo, o presente Livro da editora POÉTICA GRUPO EDITORIAL, toca-nos fundo pelo seu estilo bem apelativo de leitura, num traço ímpar como o poema presente.
Da minha parte, permitam-me via gentileza fotográfica da amiga que também muito estimo, pela excelente obra já editada, Lília Tavares foi uma honra imensa "dizer" um poema da presente "obra poética"!
Amiga Graça Pires ... não pares, por favor!!!!!!!!!!!!



José Luís Outono, escritor
E-mail 15 abril 2025



                              

Minha querida, recebi anteontem seu último  e maravilhoso livro. Não é novidade encontrar a beleza na suas obras, e isso se sucede indefinidamente, pois, a cada obra sua publicada, reafirmo o seu lugar no degrau mais alto do pódio da poesia.
Ao iniciar a leitura, pensei em anotar alguns títulos dos poemas que inicialmente mais me despertaram a atenção numa primeira leitura, e comecei: "Os crisântemos", "Em cada despedida", "De muito longe me convocam", "A seiva original"... Vi que a lista estava se estendendo, e também aumentando após uma segunda e uma terceira leituras, e percebi que copiar o índice do livro seria mais cômodo, tal a riqueza do que fui encontrando.
Os poemas são um pouco mais breves do que outros seus de outras épocas, e plenos de significados e emoções.
Questões existenciais, como em “Chronos”, o passar do tempo, em ‘A sedução do tempo” e ‘A adolescência”, o fazer poético, tal como em “A revelação do poema”, e reminiscências compõem esse universo, e quando o olhar se desvia para fora, surgem obras primas como "Abraçados", "O Poeta Chorou" e "Ameaça".
Versos como “Cobre-me de linho antigo/ se o ímpeto do sol incide sobre o mar.”, "...delicados/ como a cambraia bordada...”, “Denúncia rigorosa do tempo/ nos seixos polidos”, “Farto será o celeiro dos silêncios” “...antes que sequem no coração/ as amoras da juventude.”, “...a curva do tempo/ em sua cruel celeridade./ ... um barco atracado na lembrança.”, “Há no meu regaço/ aves enlouquecidas”, “...a marca de meus pés/ na velhice dos caminhos”, "Deixo que a dureza das pedras/ me pise os pés...”, “A luz de outubro inteira no olhar”, “E o coração já tão náufrago na memória”, “Há silêncios abandonados/ na memória do esquecimento.” e “...o vazio é o único trilho/ que liga o céu e a terra.” testemunham a riqueza do seu olhar para a vida e para o mundo.
Não há como agradecer você pelo envio do livro, e, mais do que isso, por fazer parte da minha vida, e trazer-me tanto alento pela beleza do que escreve. A literatura, na minha vida às vezes tão à deriva, é um alento para a alma, e você, dentro disso, tem o lugar mais especial.

José d'Ângelo, escritor
E-mail 10 Maio 2025




“Talvez haja amoras maduras à entrada da noite”

O novo livro de Graça Pires: entre o feminino, a natureza e a disciplina poética


Aprende-se a gostar da poesia de Graça Pires. Pelo menos, foi assim comigo. Tem um sabor clássico, mas permanece fresco, incorporando a claridade de Sophia, o rigor de Luíza Neto Jorge e um travo do estilo trágico-romântico que recorda a intensidade melancólica de Sylvia Plath. Ao longo da sua longa trajetória literária, Graça Pires explorou várias formas de expressão — como se nota ao folhear a sua coletânea “Poemas escolhidos 1990-2011” (2012) —, mas manteve sempre uma coerência imagética: o eterno feminino e a natureza servindo de mote ou destino.  Ambas as inspirações reconhecem-se nestes dois excertos:

“E são delicados / como cambraia bordada / por mulheres caladas / que carregam no sangue / misturas insubmissas / de vida e de morte.”

“Diz-me a brevidade / das fogueiras acesas / sobre a areia húmida / na hora em que a febre e o sal / alucinam o vento.”


Nos primeiros poemas deste novo livro sente-se um arrumar da casa, a preparação para um novo ciclo. A sua poesia não vive num aquário fechado, mas num mar aberto, sensível às marés e às tempestades — sejam sociais ou íntimas — que todo barco enfrenta. É visível, a partir destas páginas, uma disciplina implacável, quase pedagógica, nesta comunidade de poetas — às vezes belicosa, como todas as irmandades desde Abel e Caim — que se reconhece no ofício da palavra.

“De mãos dadas/ como se fôssemos/ meninos com gula/ íamos pelos taludes/ à procura de amoras//(...) Vamos de novo amor/ antes que sequem no coração/ as amoras da juventude.” 

Nos versos de Graça Pires, a paixão amadureceu e transformou-se em amor, e o que antes era contingente tende agora para o absoluto:

“A noite recupera na sombra olhares crentes no regozijo quase absurdo das manhãs luminosas. // Encontro absoluto com a luz em delírio no horizonte.”

Como lembra Adriano Moreira, “as coisas acabam antes de acabarem”, e Oscar Wilde acrescenta: “Se a moda não fosse horrível, não mudava de seis em seis meses”. Assim, Graça Pires afirmou-se num estilo próprio, conquistando leitores sem truques modistas ou happenings efémeros. Resistiu aos solavancos dos estilos e manteve uma voz fiel a si mesma, que continua a amadurecer.

Por isso, longa vida à sua poesia — porque, como ela escreve:

“Antes das grandes sedes/ já um deserto ameaçava/ nossas bocas/ ávidas do frescor dos frutos.// Meu amor/ talvez haja amoras maduras à entrada da noite”.


 "Talvez haja amoras maduras à entrada da noite" (65 páginas, ano 2025)
Graça Pires  
Poética Edições


Beijos,
Luís Palma Gomes, professor e poeta
E-mail 19 Maio, 2025


                                        

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