SILÊNCIOS QUE GUARDAM GRITOS,
RIOS QUE MUTUAMENTE SE BEBEM
Ler palavras novas de Graça Pires é "entrar no
labirinto das palavras", pé ante pé, decifrar os sinais e pistas -
praia, fogo, água, luz,…- e avançar sem saber se estamos a seguir os passos da
Autora ou outros passos que nos levam ao mesmo destino por outro caminho. Quem
leu a poesia anterior de Graça Pires, decerto conhece a sensação. Não vale a
pena tentar descobrir esse caminho íntimo escondido - o mais provável é nunca
descobrir nos versos de Graça Pires, a "dor que deveras sente".
"A noite recupera na sombra olhares crentes / no
regozijo quase absurdo / das manhãs luminosas" - lemos no poema
inaugural deste livro. A noite pertence aos Poetas, é nela que antecipam a luz.
A noite, com a sua escuridão, destaca as luzes quase sempre ofuscadas e
indistintas na claridade do dia. A quietude da noite é um disfarce, um "celeiro
dos silêncios". Os silêncios são guardas, vigilantes, das colheitas de
vozes e gritos. É por isso que Graça Pires fala da "espiritual osmose /
entre a poesia e o silêncio". É também na noite que se esbatem as
divisões do tempo, transformando o passado, o instante e o futuro em
contemporâneos. O "fascínio da inocência / desoladamente perdida"
não é só recordação, saudade ou nostalgia - é desejo e horizonte de chegada. E
se a noite consegue esbater as divisões do tempo, o amor consegue superar o
próprio tempo. O "barco de papel" que circum-navegou os corpos
dos amantes (que bela imagem!) pode ter sido cerceado pela "última
maré-viva", mas os amantes ainda se amam "obsessivamente".
É por isso que a noite pertence a criaturas luminosas: os amantes e os poetas.
A noite que Graça Pires nos abre neste livro não é um mundo
de fantasia. É um labirinto com avisos,
janelas sobre a realidade. Por exemplo, quando compara a delicadeza dos
crisântemos à "cambraia bordada / por mulheres caladas / que carregam
no sangue / misturas insubmissas / de vida e de morte". Noutras
janelas, são as mães com " vozes de deméter clamando sem consolo",
capazes de movimentar a natureza para resgatar os filhos, como na mitologia. Ou
ainda a mãe de "mãos inteiras" que "sempre soube
receber / através do tanto que deu". A condição da mulher - feita de
amor, delicadeza, sofrimento e coragem - é a lente que permite ver a realidade
do mundo. A mulher mãe, amante, pensamento, natureza, está omnipresente e
vigilante no caminho por onde a poesia de Graça Pires nos leva. Tal como a
noite, a mulher é um celeiro de vozes, sejam elas a da mãe que "de fome
/ já tinha morrido duas vezes / com os filhos" e que "gritava
sem cessar o nome de cada um", ou a mulher "naufragada no
centro de mim / grito silenciosamente". Silenciosos ou não, são os
clamores da mulher que revelam a fealdade do mundo. Em livros anteriores, já os
leitores tinham encontrado a forma - suave, mas explícita e firme - como a
poesia de Graça Pires assume crítica social. A fealdade do mundo não é só uma
apreciação estética. A "chave" pode estar nestes versos: "Observo
no pranto / a origem das águas / e por elas regresso ao rio que penetra em
delírio / no mar da infância infinita". É de facto nesta "infância
infinita" que a fealdade e a injustiça são sinónimas. Só uma criança é
capaz de tanta lucidez.
Existe, por conseguinte, um sentido para a caminhada no
labirinto da noite, para além da quietude dos celeiros e longe do conformismo.
O labirinto não é mero entretenimento. O caminho tem um destino: "Sou
marinheiro. / Tenho remos nos pés / um soluço a navegar no peito / e um barco
atracado na lembrança. / De muito longe me convocam".
Neste seu livro-labirinto, Graça Pires mostra, uma vez mais,
como são ténues as fronteiras entre o assuntos do coração, do mundo e da
poesia. É suposto deixar aqui a informação, ou pelo menos um vislumbre,
do que se nele pode encontrar. A resposta mais honesta que me ocorre depois de
o ler é: depende do que nele se quer procurar. A lucidez da infância
infinita. As amoras da juventude. Os "rios que mutuamente se
bebem", na poderosa imagem do poema magnífico que exprime o amor
intemporal no expoente máximo da entrega:
"Nas margens do teu corpo
envolvo as margens do meu corpo.
É puro o rio
em que ousamos navegar.
Se disseres o meu nome
hei-de encostar o ombro
ao som da tua voz
para ludibriar a sede.
Seremos como rios
que mutuamente se bebem."
A mesma imagem, páginas adiante, no poema "É sempre
a sede":
"É sempre esta sede sem
fim
a demandar a nascente perfeita
onde as águas se bebem
demoradamente".
Sim, "talvez haja amoras maduras à entrada da noite".
À espera de serem colhidas. A tempo. À entrada da noite.
Carlos Campos, advogado e escritor
Na apresentação do livro, 6 de abril de 2025
retrato por aqui, um pouco dos momentos vividos na sua apresentação.
Os crisântemos
Em voz baixa
digo que os crisântemos
crescem no batimento
inquieto do coração
E são delicados
como a cambraia bordada
por mulheres caladas
que carregam no sangue
misturas insubmissas de vida e de morte
(pág. 10)
Com a apresentação de Carlos Campos , um poeta que também muito estimo, o presente Livro da editora POÉTICA GRUPO EDITORIAL, toca-nos fundo pelo seu estilo bem apelativo de leitura, num traço ímpar como o poema presente.
Da minha parte, permitam-me via gentileza fotográfica da amiga que também muito estimo, pela excelente obra já editada, Lília Tavares foi uma honra imensa "dizer" um poema da presente "obra poética"!
Amiga Graça Pires ... não pares, por favor!!!!!!!!!!!!
“Talvez haja amoras maduras à entrada da noite”
O novo livro de Graça Pires: entre o feminino, a natureza e a disciplina poética
Aprende-se a gostar da poesia de Graça Pires. Pelo menos, foi assim comigo. Tem um sabor clássico, mas permanece fresco, incorporando a claridade de Sophia, o rigor de Luíza Neto Jorge e um travo do estilo trágico-romântico que recorda a intensidade melancólica de Sylvia Plath. Ao longo da sua longa trajetória literária, Graça Pires explorou várias formas de expressão — como se nota ao folhear a sua coletânea “Poemas escolhidos 1990-2011” (2012) —, mas manteve sempre uma coerência imagética: o eterno feminino e a natureza servindo de mote ou destino. Ambas as inspirações reconhecem-se nestes dois excertos:
“E são delicados / como cambraia bordada / por mulheres caladas / que carregam no sangue / misturas insubmissas / de vida e de morte.”
“Diz-me a brevidade / das fogueiras acesas / sobre a areia húmida / na hora em que a febre e o sal / alucinam o vento.”
Nos primeiros poemas deste novo livro sente-se um arrumar da casa, a preparação para um novo ciclo. A sua poesia não vive num aquário fechado, mas num mar aberto, sensível às marés e às tempestades — sejam sociais ou íntimas — que todo barco enfrenta. É visível, a partir destas páginas, uma disciplina implacável, quase pedagógica, nesta comunidade de poetas — às vezes belicosa, como todas as irmandades desde Abel e Caim — que se reconhece no ofício da palavra.
“De mãos dadas/ como se fôssemos/ meninos com gula/ íamos pelos taludes/ à procura de amoras//(...) Vamos de novo amor/ antes que sequem no coração/ as amoras da juventude.”
Nos versos de Graça Pires, a paixão amadureceu e transformou-se em amor, e o que antes era contingente tende agora para o absoluto:
“A noite recupera na sombra olhares crentes no regozijo quase absurdo das manhãs luminosas. // Encontro absoluto com a luz em delírio no horizonte.”
Como lembra Adriano Moreira, “as coisas acabam antes de acabarem”, e Oscar Wilde acrescenta: “Se a moda não fosse horrível, não mudava de seis em seis meses”. Assim, Graça Pires afirmou-se num estilo próprio, conquistando leitores sem truques modistas ou happenings efémeros. Resistiu aos solavancos dos estilos e manteve uma voz fiel a si mesma, que continua a amadurecer.
Por isso, longa vida à sua poesia — porque, como ela escreve:
"Talvez haja amoras maduras à entrada da noite" (65 páginas, ano 2025)“Antes das grandes sedes/ já um deserto ameaçava/ nossas bocas/ ávidas do frescor dos frutos.// Meu amor/ talvez haja amoras maduras à entrada da noite”.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.