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quarta-feira, 6 de abril de 2022

POEMAS

 


Poemas. Lisboa: Vega, 1990


Com os poemas agora editados, Graça Pires chega, pela primeira vez, junto do público, convidado a conhecer uma nova voz, a de alguém que procura, através da palavra poética, exprimir o seu mundo interior e que, fazendo-o, consegue acrescentar ao valor intrínseco de cada texto considerado de per si o equilíbrio e coesão que fundam a necessária homogeneidade do volume.

Neste seu primeiro livro, Graça Pires constrói um universo poético onde avulta o quase total alheamento face à realidade exterior, sentida como ameaça à vida íntima e a um espaço de interioridade que, mais que qualquer outro, se procura aqui valorizar.

                                              

A cidade é um presságio de neve

a desfigurar a intimidade do fogo.

 

Lê-se, nestes dois versos de «Dissonâncias» (p.56), o confronto, nem sempre latente, entre o social e o pessoal. Entre o indivíduo e o mundo – ou entre o par e o mundo – tende a erguer-se uma barreira: a de ausência de comunicação, da incompreensão ou da indiferença que arrastam cada ser para a marginalidade ou para a solidão, muito evidente no poema «Ninguém me viu» (p.45), onde o sujeito poético se defronta com o obstinado silêncio e a obstinada cegueira de quantos se cruzam com ele. Em geral, a impossibilidade de comunicação está associada à ideia, exemplarmente expressa em «Marginalidade» (p.11), de que

 

Sempre são excessivos

os desejos de quem sonha

a vida toda num momento.

 

Porque o mundo é incapaz de acompanhar, ou sequer entender, um tal excesso, entre ele e o sujeito poético cava-se um intransponível abismo que força este último ao isolamento e o leva à valorização de tudo o que revela da intimidade.

Assim, no universo aqui construído, há lugar para o sonho, para a memória, e, sobretudo, para a emoção, quase sempre associada à consciência do próprio corpo e à experiência amorosa. Não deixará, porém, de notar-se que esses vários elementos surgem, as mais das vezes, interligados. Para o verificar, bastará ler «Sonho exausto» (p. 14) e observar o modo como aí se processa a conjunção harmoniosa do corpo e da terra, com aquele a ser assimilado por esta e a sugerir assim a reinterpretação do homem à luz da sua dimensão cósmica; ou ler «Regresso», (p. 50) e observar a circulação entre dois tempos diferentemente caracterizados, mas igualmente significativos no enriquecimento e maturação do ser:

 

Esta noite voltei à minha infância:

menina rosada de sonhos nos bolsos, 

bailarina de corda na caixinha de som.


À infância regressa-se solitariamente, 

subindo um rio sem margens, 

até ao lugar em que a nascente 

se confunde com o tempo 

e o tempo se transforma em espanto.

 

Espanto a que não, e, por certo, alheia a mudança operada na menina, entretanto tornada mulher, cuja voz se vai fazendo ouvir e que, ao longo do livro, emerge como sujeito em função do modo como vive a sua relação com o espaço e como tempo, com o outro da relação amorosa e consigo mesma, e até com a palavra poética em cujos caminhos se embrenha.

Na maior parte dos casos, a intimidade a que antes me referi é vivida a dois e alia-se ao projecto – ou à experiência – de uma comunicação amorosa que se faz pelo gesto ou pela palavra.

Ouçamos, a título de exemplo, dois fragmentos:

 

Quando, nos lábios, começa um continente, 

suspenso no apelo líquido dos beijos,

há um barco que cresce nos meus olhos

e, entre búzios verdes, escrevo água. 

 («No meio das palavras», p. 52)


Mas vou o perfumar-me de alfazema 

e passear nua à superfície de mim, 

porque aqui é o reduto dos sonhos 

entreabertos no cerne da ternura

porque é aqui que nasce o roxo das manhãs 

e se iniciam todos os ritos do prazer,

porque aqui as mãos são apenas 

um pássaro com sede. 

 («A hora das palavras», p. 46)

 

Atravessado por temas e imagens recorrentes, o discurso organiza-se, de preferência, em torno de metáforas de base elemental – com particular relevo para a água e para a terra, mas sem omissão do fogo ou até do ar, presente no sopro da brisa ou no voo das aves – que tendem a constitui redes de sentido, não apenas no interior de cada texto, mas também no conjunto do volume, contribuindo para a sua coesão enquanto livro. Aposta-se então no poder sugestivo das imagens e apela-se, de forma discreta, ao valor simbólico que os elementos evocados transportam consigo.

Pressente-se, em Graça Pires, a par do investimento poético, sempre singular, de um conjunto de vivências próprias, o saudável convívio com poetas em cuja palavra e em cujo universo imagético ela parece, ao menos em parte, reconhecer-se.

Mas o discurso que a estes poemas dá corpo é também fortemente marcado por um outro pulsar, muito próprio, que se assinala no ritmo de uma construção onde – para sublinhar apenas alguns dos aspectos mais característicos – a variedade métrica e estrófica e o trabalho sobre a anáfora se insinuam, cada um à sua maneira, mas sempre com eficácia. Registe-se, no que à anáfora diz respeito, o modo como ela aparece a pautar a progressão do poema em casos como, por exemplo, os de «Ninguém me viu» (p. 45), «Quando anoitece», p. 58, ou «Falei poesia», p. 61, e repare-se na frequência com que a diversidade de medidas a que obedecem os versos e as estrofes de uma mesma composição contribui para que nela se inscrevam a deriva, o sonho, a emoção, de que somos convidados a participar.

O livro está aí. À espera de leitores. Oxalá estas breves palavras de apresentação possam ajudar a atrair sobre ele olhares interessados, críticos e cúmplices.

 

Professora Doutora Cristina Almeida Ribeiro

No lançamento do livro, a 29 de junho de 1990







 

  

Aos seus amores

 

Impõe-se uma chamada de atenção para o livro Poemas (Prémio Revelação da A.P.E.) de Graça Pires.

Trata-se de uma poesia intimista cuja tónica recai sobre uma sensualidade fortemente alusiva e corajosamente assumida. A solidão instalada no discurso do sujeito, longe de relevar matriz nostálgico-depressiva ou de pendor autopunitivo, recupera a experiência vivida como espaço de reflexão poética para onde confluem sentimentos, emoções, decepções – sem cinismo ou cólera. Serenamente, pois, tece Graça Pires a fala da memória. A memória dos seus amores. Entre a grafia do gesto diáfano (como as mãos no acto de dar) e a riqueza ritmo-melódica, do sopro lírico, que por ele perpassa, entre a metáfora que informa do amor e do cio – segredo que se quer escondido e revelado – e a vitória sobre a «planície agreste da solidão dos outros», na solidão própria inscrita, a voz do poeta constrói-se verso a verso, autêntica, rigorosa, como se a colisão dos tempos felizes e infelizes consubstanciasse uma cerimónia de resgate da angústia existencial pela palavra subitamente tocada de magia.

   Amendoeira ou mastro/ é o lugar de acesso/ para o itinerário total/ de uma grafia ambígua/ onde as mãos ansiosas/ percorrem os recantos do corpo/ até acharem um comovido oásis/ na masturbação volátil do olhos, / quando as sombras se incendeiam/ e a luz incide a prumo sobre a língua.

 

Júlio Conrado, escritor

“JL – Jornal de Letras Artes e Ideias”, nº 422, agosto 1990





Olá, Graça

 

Já li o primeiro capítulo "Poemas" (1990). Neste é possível imaginá-la há trinta anos. Acho que está no verão da vida. Os últimos versos deixam transparecer isso mesmo: "Estamos num lugar de Junho/ e qualquer sinal de ausência/ pode ser apenas um veleiro/ que partiu dos nossos dedos." A cor é o lilás, o corpo e os seus sentidos são o centro da poética. E há também os pássaros que já aqui começam a surgir (Serão anjos?) Eu também sou muito dado aos pássaros, sempre gostei deles desde muito jovem (Tinha a casa cheia de gaiolas. Que paciente era a minha mãe, que apenas me dizia "Porque não os soltas? Eles querem ser livres"). Tento agora nos poemas designá-los através das espécies. Temos de ter cuidado, porque sendo a poesia uma descrição muito perto do inconsciente, muitas vezes as nossas pulsões escapam-nos para o papel sem nos apercebermos. 

 

Voltando ao livro "poemas", são poemas muito marítimos: azuis, ribeirinhos, com barcos, ilhas, limos, búzios paisagens noturnas tão apetecíveis no estio. Há uma forte marca erótica, edipiana até:"E todas as mulheres/ o adoptaram como filho". 

 

Porém aqui e ali, começam a surgir os sinais de nostalgia como em "Interioridade"" e "Regresso". Talvez o desejo de regresso à sua Ìtaca (Figueira da Foz, idealizo eu, sem certezas ou evidências) junte todos estes poemas, o "Paraíso Perdido", a "Eterna saudade": "Reinicio a infância/ (...) /e circunscrevo o litoral/ fragmentado do que sou."

 

Talvez a música para este livro seja o "Verão" das "4 estações" do Vivaldi, o filme, "O conto de verão" do Rohmer e este quadro do Seurat:


Luís Palma Gomes, Professor de Arte e Poeta


Email, 16 Junho 2023