Translate

sábado, 18 de junho de 2022

ANTÍGONA PASSOU POR AQUI

 



Antígona passou por aqui. Lisboa: Poética 2021



Três sentimentos incontornáveis na leitura deste livro

                       

- Intimidade - logo no prólogo misterioso

 

            uma cadeia de vocábulos no labirinto do texto,

            onde soletro a intimidade de tudo o que amei.

 

- Ausência de indiferença

 

- Sofrimento e inconformismo - não apenas sentir e sofrer, mas gritar!

 

Como ler poesia?

Tentar descobrir o que levou a Poeta a escrever as palavras? Cuscar?

Toda a escrita é autobiográfica, mas num sentido diferente do óbvio: procurar na Poesia não o que sentiu a Poeta, mas o que as suas palavras nos fazem sentir.

A poesia de GP é tão misteriosa quanto a tragédia de Sófocles: Antígona e o seu conflito entre a lei divina e a lei humana, ou entre a ética e a lógica do poder, deram e continuam dar origem a múltiplas interpretações.

 

Por exemplo, autores mais retrógrados acharam que o empenho de Antígona em dar sepultura ao irmão faz dela uma heroína masculina. Outros acharam que esse empenho, que foi ao ponto da revolta, da desobediência e do martírio, é um sinal de feminilidade e uma homenagem à sensibilidade e força da mulher.

 

A Antígona de Sófocles é a tragédia da maldição e da ilusão do poder.

 

E a Antígona de GP?

 

Já conhecemos, de livros e poemas anteriores, que GP é tudo menos indiferente ao que a rodeia. Mas este livro não é sobre a crua realidade do mundo. É mais uma viagem intimista ao passado e ao presente.

 

Não que o mundo esteja ausente…

 

Um súbito silêncio, mais que suspeito, encobre a morte das luas no olhar daqueles que, pela noite dentro, usam a cegueira para poderem atravessar as estrelas. Existem contornos de liturgia na perturbada desordem que estilhaça a luz em sua inexplicável inclinação.

É escusado torcer as mãos junto ao caos que nos circunda quando contracenamos com o cosmos a hierofania consentida em olhos visionários. (24)

 

Sobressalto-me com a desordem do meu rosto. Talvez me seja impossível entender tudo o que é irremediável. Um desafio reencena no meu coração sem fronteiras um jogo de máscaras sombrias, descarnando até ao grito a solidão do mundo. A solidão do abandono, da fome, do medo. A solidão sem fuga, sem endereço. Com sons fúnebres. Com mãos cegamente desvairadas. Com ruas negras. Com ventos malditos. Sem sobreviventes da desolação e da intriga tecida pela crueldade. Uma vegetação de mágoas assumindo desastres e demências. Um porvir aberto à impiedade dos deuses e dos homens, num diálogo de palavras mudas. (51)

 

Perto do chão há gritos aferrados à vida e à morte. Há partos e perdas dolorosas. Há o urgente fôlego de cada nascente junto às pedras com nervuras de erosão e luz a depurar o reflexo da água. Há flores e bichos. Há raízes de árvores e de plantas e musgo e alfazema e cardos e fenos. Há campos repousando do cansaço da terra. Perto do chão onde me ajoelho, há o reino subterrâneo da noite em conflito tenso com o dia, numa dialéctica posta à prova por olhares videntes. (20)

 

Em todo o caso, a dura realidade do mundo é neste livro apenas um pano de fundo. Neste livro, o olhar que predomina é para dentro. É uma viagem introspetiva, ou, dito de outro modo, uma exteriorização do interior.

 

Inevitavelmente, o recurso às memórias, o regresso à infância:

 

Convoco-me para os lugares da infância, meu paraíso tão desmoronado, tão precocemente desaparecido. Um anjo austero apoderou-se de mim enquanto eu escondia nos bolsos os berlindes coloridos.

Quis nascer de novo. Da mesma mãe. Com o mesmo pai. Mas num tempo sem infâncias desamparadas, sem deuses distraídos na cadência das horas lentas.

Aprendi que há noites em que as canções de embalar arranham a garganta das mulheres atentas às sombras espalhadas no coração. (11)

 

Insinuada na linguagem do sangue, a casa permanece. Esta, onde entras para te reencontrares. Olhas os móveis. Fitas os olhos no chão e o soalho range com o aperto do olhar, como um eco dos teus passos. Demoras te. Entregas-te à irrealidade de pretéritos rumores, ao alarme de uma distância que não alcanças.

E recuperas o deslumbramento de seres criança e de saberes que de qualquer janela se pode ver o mar. (37).

 

No pausado enredo onde absorvo a estranheza de uma meninice reinventada, irrompem branquíssimos lírios. …

           

Hoje acordei e voltei a adormecer no teu colo, mãe.

A manhã inclinada nos teus olhos purificou-me a respiração. Tenho o meu rosto tão perto do teu que, da tua ausência, apenas sei que é uma estrela a pulsar no firmamento e um fio de luz que procuro em momentos sombrios.

Pertence-me agora esta solidão de janeiro colada ao teu silêncio. Guardo no olhar a transparência dos teus olhos, a mitigar-me a inquietude do coração. Entreteceste em mim todos os gestos do amor. Nunca indecisos. Nunca minguados. Nunca interrompidos. Sinto que são as tuas mãos que amparam as sombras que me seguem. (12)

 

A viagem intimista prossegue. Mãe e filha separam-se

 

            - Onde estás mãe?

            - Tem cuidado contigo. Filha! (14)

 

E o colo quente da mãe é substituído pelo frio da cidade:

 

Avisto-me então em cidades onde as ruas são ruidosas. Como se fossem caóticos todos os pontos de fuga. Como se aos gestos de uns se sobrepusessem os gestos dos outros. Sem diálogo. Num enredo em tempo impreciso. Onde as sombras se tornam turbulentas e precedem, e perseguem, e se apropriam de outros corpos, extenuados pela manipulação suportada em noites ameaçadas de vazio. (15)

 

E aqui, descobrimos a mulher irredutível que não cede ao conformismo.

 

Nunca aceitei os reveses. Nem é deles que falo aqui. Aqui, por onde deixo passar antígona: aquela que não aprendeu a ceder aos desastres, aquela que nasceu para o amor, não para o ódio. (16)

 

Ajoelho-me na terra, vulnerável e insubmissa. (20)

 

 

 

Mas GP não é Antígona. Apenas a deixa passar, apenas se identifica com a opção pelo amor.

Ah, sim o Amor! É o tema primordial deste livro, que nos brinda com as palavras de beleza pura da página 18:

 

 

Não esqueço as noites em que o desejo doía tanto quanto a incontida alegria de um abraço.

 

Olhar para ti e ver-te melhor dentro de mim. O teu nome tão intacto no meu nome a devolver-me o verão do teu olhar nascente, onde me reconheço, presa que fiquei das tuas mãos recolhidas nas minhas.

Falar-te de amor.

Recuar à palavra primordial. Ao gesto terrivelmente frágil da mais frágil ternura. Engolir o aguaceiro breve dos teus olhos para degustar a sede. Pronunciar o nome certo até recuperar os dias da paixão. (18)

 

Ou este verso sublime que vai ficar para as todas as antologias, da poesia, da psicologia, da cardiologia…

 

            Intermitente, o coração procura no amor o batimento certo. (27)

 

O coração é também o motor da escrita:

 

Com minhas mãos povoadas de acenos, toco a face intocável das memórias. E escrevo. Escrevo a síntese de íntimos silêncios para que não se banalize a minha voz diferida. (26)

 

Semelhante a um primitivo nómada, guardo comigo o fogo da poesia, para que nunca se extinga e me seja confissão e esconderijo. (45)

 

A viagem intimista pelas memórias da vida exprime-se com imagens náuticas. O mar está presente em várias páginas. O mar, os barcos, a costa, o naufrágio.

 

O mar ficará também como o fiel depositário das memórias de uma vida:

 

Depois de eu morrer haverá o rumor do meu olhar luzente sobre o mar mais intranquilo. (36)

 

 

Mas este olhar não é o olhar de Antígona. O propósito é deixar passar Antígona, observá-la e ir mais além.

 

Não sigo antígona. Interiorizo apenas a inquietante aflição e a desmesura de um conflito tão tremendo, tão sacrificial. (50)

 

Escrevo o meu nome sobre o martírio de antígona para não ser punida por deuses ciosos da minha consciência. (65)

 

As palavras de GP deixam claro que não quer ser Antígona.

 

Rendem homenagem à coerência e ao inconformismo, mas acrescentam-lhe a recusa do martírio e da rendição.

 

Se Antígona legou coerência, GP acrescenta-lhe a resistência.

Não escreve para registar nostalgias, tristezas ou desencantos, escreve para lhes resistir. Para dizer que a palavra primordial – o amor – prevalece, apesar de tudo.

 

xxx

 

Há uma frase que evolui ao longo deste livro:

 

            Procuro o lugar onde começa o silêncio

 

Que silêncio é este?

 

A morte? (como se diz na página 66)

 

Será apenas o fim do ruído?

 

Será, finalmente, a desejada harmonia?

 

O silêncio das sementes, da melancolia das árvores, do restolho do trigo, do afago da terra (38)

 

Será a coerência entre o passado e o futuro?

 

O alinhamento astral entre o sonho e a realidade?

 

O silêncio da evasão?

 

Como se a linguagem se evadisse na incompletude dos sonhos. (44)

 

O profundo silêncio de deus. O celestial silêncio dos anjos (59)?

 

Este silêncio é tão misterioso quanto a Antígona de Sófocles, mas GP deixou pistas suficientes para que cada um de nós procure o seu silêncio.

 

GP superou Antígona e as controvérsias sobre essa figura.

Superou a tragédia.

 

O que lemos neste livro não são palavras de mulher vítima.

São palavras de mulher vitoriosa.

 

Mesmo que nos deixe este mistério da decifração do silêncio.

 

Mas o mistério faz parte da Poesia.

 

 

Carlos Campos

Apresentação do livro, 27 novembro 2021






De Ortografias Outras

 

Hoje, tempo de trazer a este espaço, o novo livro de Graça Pires - Antígona Passou Por Aqui.

Recebi-o, da parte da editora, há dois dias, embora a apresentação da obra tenha ocorrido já no passado mês de novembro. Sabemos, aqueles que a seguem no Ortografia do Olhar, que a lemos com regularidade e atenção, que a escrita da Graça Pires não é uma escrita circunstancial, de registo de momentos, de impressões conjunturais, mas uma poética pensada, enraizada na História, na Filosofia, nas Artes. Este livro composto por textos de prosa poética reflete o olhar da autora sobre temas universais e intemporais como a Vida e a Morte, o Amor, a Solidão, o Silêncio, abordados numa perspectiva que procura ostensivamente a revelação e valorização do humano. Por vezes, terra, por vezes, água, vento ou chama, esta é uma poética que nos leva, de pedra em pedra, pelos trilhos do pensamento lúcido até às portas da transcendência, através de uma linguagem poética sensível, concisa e depurada.

Numa análise, por mais breve que seja, é difícil não esbarrar na importância dada ao Feminino que emerge a partir da figura da mitologia grega, Antígona, chamada "a passar por aqui", dando conta dos seus traços de insubmissão perante as leis terrenas sobretudo se elas interferem com o Amor, (fraterno, neste caso).

 

Deixo este excerto, escolhido ao acaso:

Só as mulheres possuem a conivência das águas. Tão atarefadas sempre, as mãos das mulheres ficam por vezes vazias de afagos, quase ausentes e indecisas no esboço de desejos sem retorno. É então que aprendem a atear o fogo com a benevolência debaixo da língua e inventam um alfabeto transparente para descreverem com detalhe as madrugadas silenciosas.

 

GRAÇA PIRES, 2021 (p.35), Antígona Passou Por Aqui, Poética Edições.

 

Lídia Borges, poeta

Blogue “Seara de versos”, 17 Dez 2021







Minha Amiga e Enorme Poeta,

Acabei de ler o seu novo Livro que me deixou enlevada pela beleza e profundidade das palavras plenas de poesia, com que vai percorrendo a sua preciosa vida, tal como um rio que desde a nascente vai serpenteando vales e montanhas para chegar ao seu destino.
Sabe que não tenho conhecimento suficiente para fazer uma análise como gostaria.
O que sei é que gostei e muito e fiquei muito impressionada com o rigor das palavras com que descreve cada situação, que me prendeu à leitura desde o início ao final do livro.
Muito obrigada, minha Amiga Poeta, por me proporcionar ler tão bela Obra.
Os meus Parabéns e votos de muito sucesso. Bem merece.
Aproveito para lhe desejar e a sua Família um bom 2022, com muita paz e saúde.


Grande beijinho.
Ailime
Emília Simões, poeta

E-mail, 30 dezembro 2021







Novo ano, novos apegos literários.

No canto das leituras, vejo-me feliz quando as páginas inspiram uma constante vontade de seguir em frente.

Lançado em novembro do ano passado, com a chancela POÉTICA GRUPO EDITORIAL, «ANTÍGONA PASSOU POR AQUI» com a assinatura da amiga que estimo e muito admiro Graça Pires, trouxe-me um reflectir da inquietude constante de quem desafia o mundo das artes, e assina com orgulho os projectos nascentes.

Graça Pires um autora já com alguns prémios literários, escreve num abrir desafiador - "Procuro o lugar onde começa o silêncio".

O código convite leva-nos a traços culturais com uma dimensão apelativa e multiplicadora de reflexões atraentes.

- "No lado mais vulnerável da noite, onde me perco, sei que perto de um abismo se pode enlouquecer."

Continuando este mar de surpresas, " Só as mulheres possuem a conivência das águas", traduz junto dos leitores uma interrogação constante de momentos de poesia lançada em parágrafos de prosa, e esculpida com perfeição definidora.

- "Continuarei a definir o exíguo espaço de uma errância no culto da palavra."

Graça Pires escreve em olhares surpresa, monólogos sensíveis ou diálogos de odores pessoais e intemporais, mas sempre realistas na identificação do "eu" desejo, quero e posso definir o acto de cumprir elos personificados, e cumpridores do acto de escrever.

- "Divago na conflitualidade dos conceitos para ficar homónima dos versos, para me legitimar no poema."

Fica o convite de uma leitura do novo projecto literário de Graça Pires - «ANTÍGONA PASSOU POR AQUI».

 José Luís Outono, poeta

E-mail, 2 janeiro 2022





  

Cara Graça, escrevo-lhe para lhe agradecer a sua escrita no seu último livro,

a sua poesia há muito tempo que me parece muito depurada. Alguma vez falei com o Victor que seria justo que tivesse mais reconhecimento, mas o importante é esse amor que dedica a escrita e a poesia.

Queria-lhe dizer que de alguma maneira, algumas das ideias do seu livro conectavam com os poemas que eu estou a escrever, um poemário que se intitula "LENGUA MATERNA", por isso decidi que a citação que vai abrir o livro será, esta:

 

 Tenho no rosto as marcas da memória e debaixo

da língua as palavras maternas com que aprendi

a nomear a vida.

 

Estou muito contente com a leitura, espero que o meu livro possa sair este ano e poder-lho enviar. Estes dias vou tentar algum poema seu para o catalão,

 

um grande abraço e espero que tudo estiver bem,

 

José Ángel Garcia Caballero, poeta

 

 E-mail 18 janeiro 2022






Fiquei devendo comentários sobre seu livro, que li há algumas semanas. A sua prosa é tão poética quanto seus versos, e encontro nela não só o mesmo encanto, mas uma sonoridade ou musicalidade muito especiais que estão em tudo o que escreve, sendo isso obtido de maneira ao mesmo tempo mágica e espontânea, sem recorrer a artifícios como rimas ou aliterações.

De todas suas obras com que me presenteou, “Fui quase todas as mulheres de Modigliani” é minha favorita, seja pela originalidade da proposta quanto pelo resultado, além de ter como referência retratos de um dos meus artistas preferidos. Mas “Antígona Passou Por Aqui” é pródiga em maravilhas. Seria difícil selecionar alguma passagem como a mais encantadora nessa sucessão de páginas que surpreendem por encantos que se revelam através de paisagens, do mar ou de um universo onde o feminino impera com delicadeza e profundidade, em reminiscências e emoções que transgridem o silêncio com sutileza.

Porém, entre tantos momentos de sonho neste livro, não há como não salientar este fragmento, da página 16, que é um dos momentos de lirismo mais lindos que encontrei nessa minha extensa vida de leitor:

“Agora, neste flagrante momento da memória, recordo o teu vestido branco estampado de malmequeres.

O dia abria-se sempre inteiro no teu corpo, onde a adolescência ainda breve te concedia a leveza das crianças e dos pássaros.

Sei que é primavera quando os teus cabelos esvoaçam no desalinho da lembrança e o grito das flores irrompe das árvores em que balouçavas com alegria.

Sei o teu nome porque danças sobre o meu nome.

Sei onde moras porque o coração estremece quando te pressinto.”

 

Você diz “Há sempre o mar a cercar meus poemas, eu sei.” Eu afirmo que todas suas palavras estão ilhadas pela beleza.

 

Abraços.

 

José d'Angelo, poeta

 

E-mail 18 janeiro 2022

 







Querida Graça,

Nos últimos dias tenho andado a ler o seu livro, "Antígona passou por aqui". Finalmente! Devo terminar a leitura entre hoje e amanhã, mas quis vir já dizer-lhe o que tenho sentido em relação a esta sua obra.

Tenho sido guiado pela Voz que dita cada verso, como se fosse Perséfone que, no Submundo, sabe que já findou o tempo das flores, restando-lhe a memória da luz. Ou como se fosse Ariadne, a que não teme a escuridão do labirinto por saber como a enfrentar, pois está munida de um fio-guia. Os poemas deste livro remetem-me para estas narrativas mitológicas e arquetípicas, de mulheres que transitam no fio da navalha, como a própria Antígona. Vozes de quem caminha no centro, resistindo à tensão eterna entre a luz e as trevas, mas que não se deixam vencer quando sabem que terão de transitar pelo rigor da escuridão. Vozes que sabem forjar o seu próprio caminho. Único e inimitável. O livro traz-me uma voz de profunda soberania, não a soberania secular, sujeita às oscilações do tempo. Refiro-me à soberania primordial, a que é nossa por direito de nascimento, de quem é senhor e senhora de si. A soberania concedida pela Terra. E sinto, ao ler estes poemas, que este caminho (e caminhos) de que nos fala a Voz, é um caminho que se tornou sagrado, seguindo literalmente a etimologia da palavra "sacrifício": nada nele foi dado ou gratuito, foi percorrido sob o peso de muitas escolhas, de muitas recusas, de muita solidão. Mas é isso que lhe dá força e que o torna irrepetível, pois é real, cru, verdadeiro. A verdadeira soberania é sobre caminhos como este.

Gosto também das referências às mulheres, às mães, à Terra, do antigo conhecimento do sagrado da Mater, da Voz que se revela como sacerdotisa guardiã dos Mistérios. Há neste livro, como em nenhum outro que li seu, uma marca profunda pagã, ancestral, telúrica, ainda que guiada por anjos, por vezes.

Sinto muita proximidade e familiaridade com este seu livro. Tem sido muito comovente lê-lo, muito forte! Chego a ler cada texto três vezes de seguida e preciso de parar várias vezes, tal a força das imagens. Acho que posso dizer que é o seu melhor livro, de todos os que já li. Obrigado por esta dádiva, obrigado por ter criado uma obra tão bela e inspiradora. Lê-la é um exercício de aprofundamento interior e de expansão da Visão. E da escuta.

É sempre um privilégio e um maravilhamento lê-la, querida Graça! Mais ainda, é um privilégio ter-me cruzado consigo, e agradeço muito à teia da vida por nos irmos escrevendo e encontrando. Gosto muito de si!

Um abraço enorme, esperando que nos possamos encontrar em breve,


Samuel Pimenta, poeta

E-mail, 21 fevereiro 2022





Procuro o lugar onde começa o silêncio.


Convoco-me para os lugares da infância, meu paraíso
tão desmoronado, tão precocemente desaparecido.
Um anjo austero apoderou-se de mim enquanto eu
escondia nos bolsos os berlindes coloridos.
Quis nascer de novo. Da mesma mãe. Com o mesmo
pai. Mas num tempo sem infâncias desamparadas,
sem deuses distraídos na cadência das horas lentas...


Procuro o lugar onde começa o silêncio.
O silêncio da cintilação das sombras pelo chão.
O silêncio onde me esvaeço, na negritude da noite.


...Vem de tão longe, meus filhos. Vem do começo
sagrado dos tempos e do silêncio dos dias ao acaso, 
a grandeza de cada gesto. É preciso ter asas e deixar 
que o fascínio vos conduza até ao infinito, onde a avidez 
da vida inaugure no olhar o prodígio do espanto e a pura 
nascente de todas as sedes. ...

Procuro o lugar onde começa o silêncio.
O silêncio transparente do mar, dos barcos ao longe,
da sombra dos mastros, do brilho dos búzios.


Esbarro na sombra, na minha sombra, e alargo os
passos para encurtar a distância entre os barcos e a
ilha mais próxima, onde uso o declive certo do olhar
para deslindar a ausência da água em meus olhos 
secos pela maresia.
Procuro o silêncio desconcertante das madrugadas, 
com a luz ainda baça do orvalho a dissipar-se. 
...

Procuro o lugar onde começa o silêncio.
O silêncio das sementes, da melancolia das árvores,
do restolho do trigo, do afago da terra.


No impulso da manhã, o nevoeiro esfarrapa-se sobre
os arbustos, incerto e sem peso. É o momento em que 
o olhar não tolera a luz que incide sobre branquíssimas
açucenas. Digo pétala, e o perfume de cada flor
estremece no olfacto como um sismo brando, com
réplicas no chão flexível que me prende e torna
urgentes os caminhos repetidamente pisados. ...


Procuro o lugar onde começa o silêncio.
O imenso silêncio dentro de mim, na ansiedade das
palavras distantes, quando, sem aviso, ele se afunda
no meu peito insensatamente,  ...


Nas pontas dos dedos, uma insubmissa escrita teima 
na promessa de um poema com sílabas luminosas.
Escrevo silenciosos vocábulos, agora que a poesia se
detém no fingimento de entrelinhas, soletrando 
a febre nos lábios. Podem dizer de mim que nunca me
cansei das palavras porque foi com elas que me
aprendi inteira.
Regressa a mim, poesia!...


Procuro o lugar onde começa o silêncio.
O silêncio das montanhas azuis, da neve, das 
planícies eternas, das glicínias, do vinho maduro, da 
música de schubert, do coração dos pássaros
da fulguração da alba, ...

...O coração não cabe nas palavras quando a dádiva e o 
fascínio se confundem.
Distancio-me de mim. Um breve lume acende na lembrança
o prodígio da luz de maio.
E deixo que a emoção encontre a ânfora onde guardei o 
mel com que aclarei os gritos abafados no recato da noite.
Sinto ainda o cheiro do leite quente guardado em 
meus seios para delírio precoce da boca que sugou
a minha sede. ...

Procuro o lugar onde começa o silêncio
O profundo silêncio de deus. O celestial silêncio dos
anjos.

...
Em minha garganta dilato os gritos sangrantes que 
antígona não gritou para que ressoem em todos os 
templos, em todos os palácios, em todos os mares,
em todas as praias, em todas as planícies, em todas
as montanhas, em todos os desertos, em todas as
casas. Na cegueira de uma febre maldita e benigna.
No amor sem perdão dos homens e dos deuses. ...


Procuro o lugar onde começa o silêncio.
O silêncio definitivo da morte.
...

Procuro definir o eixo doloroso do espaço seguido
por antígona, feminina e livre, até à transgressão mais
tangível de um mundo nocturno.
Ela não chorou. Não dramatizou o lamento. Não
implorou aos deuses qualquer auxílio. Ela ficou
isolada, agarrada à compaixão sentida, em total
solidão. Lançada na treva, levou nos cabelos a
grinalda de uma morte ausente da morte: antinomia
alucinante, a antecipar a perda do paraíso. ...
 


Procuro o lugar onde começa o silêncio.

ANTÍGONA PASSOU POR AQUI numa pequena mostra das profundas palavras de GRAÇA PIRES. 

Assistimos a uma sentida homenagem, em prosa poética, a mais uma figura feminina, desta feita mitológica, Antígona, que atravessa os tempos e, nas devidas proporções, traz o seu rasto trágico até aos dias de hoje. 

Em Isadora, a autora entra-lhe na pele e transmite-nos as suas dúvidas, as  tristezas, a incompreensão dos contemporâneos perante a interpretação da arte que lhe preenchia a vida. Com Antígona embrenha-se no mundo antigo lê-lhe os pensamentos e os mitos, a sua forma de estar e de actuar, trazendo-o assim para o presente.

Sentimo-nos envolvidos, como que fazendo parte dessa travessia que nos atinge o âmago, num caminho de pedras percorrido com a garganta apertada de emoção. 

Busca de um silêncio que abafe a dor, mas que também faz ansiar pelo doce encanto da infância, não desamparada, a magia do aleitamento materno e a grandeza de cada gesto desde o começo dos tempos:

Obrigada, querida Graça, por nos proporcionar a oportunidade de penetrar nessa sua esfera em que a cultura e o talento andam de mãos dadas. 


Abraços
Olinda Melo
Do Blogue Xaile de Seda, 26 fevereiro 2022


terça-feira, 7 de junho de 2022

JOGO SENSUAL NO CHÃO DO PEITO

 




Jogo sensual no chão do peito. Fafe: Labirinto, 2020


Isadora(s)

 

Ao contratar o barco [1903], Raymond explicou através de pantomima, e um pouco de grego antigo, que desejava que a nossa viagem, tanto quanto possível, se parecesse com a de Ulisses. (Isadora Duncan, A Minha Vida)

Everything must be undone. (Isadora Duncan, "The Dance of the Greeks"; La Danse de l’avenir, p. 50)

I hate dancing. I am an expressioniste of beauty. I use my body as my medium, just as the writer uses his words. Do not call me a dancer. (Isadora Speaks, p. 53)

  



1.

A primeira palavra de Jogo Sensual no Chão do Peito, poema (dramático) de Graça Pires, em seiscentos e trinta e quatro versos e cerca de uma trintena de sequências, é uma palavra de acção. Mas de acção intransitiva. “Aceito.”, diz, com ponto final, o eu poético. Porém, continua: “Deliberadamente aceito/reencontrar-me comigo.” A acção do verbo intransitivo muda abruptamente. Afinal a aceitação volve-se transitiva e dolorosa. Na primeira sequência deste poema, auto-épico (um prólogo, cantos e uma coda ou epílogo), que se espraia pelo campo semântico do olhar, radica o programa do que se vai seguir. Há um antagonista visível – justamente o “[seu] olhar” – que obriga à urgência de um reencontro. A poeta não recusa. E o grande antagonista “Tempo” terá, então, “o jogo de quem vence”. O corpo, por meio metonímico dos pés, “no improviso da dança”, inicia esse jogo, feroz, de enfrentamento do eu com a sua alteridade, com a sua memória. E, “na trama deste enredo”, num estranhamento de si, a poeta nomeia a Outra: “Isadora”.

E a autobiografia duplamente ficcionada, da bailarina e da poeta, começa a desenrolar-se pelo fio enganador da roca de Penélope.

2.

Que fantasma é este que se desenha e de quem é o nome que encarna o simulado e especular enfrentamento de si? É, como se lerá, o fantasma mítico de Angela Isadora Duncanon, a norte-americana Isadora Duncan (1877-1927) que, quase sozinha (talvez ao lado de Nijinsky), simboliza uma revolução na Belle Époque da Ginástica Rítmica e da Ginástica Sueca. Símbolo da libertação do Corpo pela Dança, da libertação do corpo das mulheres das barbas de baleia e das normas antinaturais do Ballet, lutadora pela restituição do Corpo às Mulheres, defensora da trilogia programática Dança-Natureza-Nudez, Isadora, leitora ávida, melómana indefetível mas estudante bissexta e impaciente, foi uma pioneira desencontrada do seu tempo que dizia, sem pudor, ter somente três Mestres: Jean-Jacques Rousseau, Walt Whitman e Nietzsche, ou melhor, Beethoven, Nietzsche e Wagner!

Largando, com os irmãos e outros libertários, as roupagens da sua classe, procurou um modelo de vida alternativa, peripatético e dionisíaco, inspirado no romântico ideal de uma mitificada Grécia Antiga, alimentado intelectualmente nos seus primeiros tempos de Londres (com Andrew Lang, o helenista, em lugar de destaque), e consubstanciado, aliás, no movimento Lebensreform da Alemanha e em comunidades anarquizantes como a de Monte Verità, na Suiça (que visitou no terrível ano de 1913), dançando, como mais tarde Laban e os seus discípulos, descalça e vestida com ligeiras e transparentes túnicas desenhadas segundo a estatuária grega e a pintura. Antes da Grande Guerra, Isadora, a californiana, ladeara o helenismo, o pacifismo, o feminismo, o safismo, a antroposofia, a psicanálise, o anarquismo, o comunismo, o vegetarianismo, a filosofia oriental via ocultismo, enfim, o movimento (simbolista) da dança como arte total, ritual e religião.

Dançou pelo mundo e conheceu a glória. Perseguiu, de 1904 até ao fim dos seus dias, da Alemanha, aos Estados Unidos, da França à URSS, o inatingido sonho de fundar uma escola de Dança gratuita para crianças, sobretudo meninas, na qual o conhecimento seria alcançado através da prática da “expressão natural”. Era pagã, contra o absurdo do casamento, contra o sufragismo e o feminismo – enquanto existisse parto com dor! -- e acreditava na maternidade. Perdeu os seus três filhos e perdeu-se totalmente de si, mas não da Dança. Em Corfu, sacrificou, no mar, a cabeleira em sinal de luto.

Casar-se-ia por generosidade com um poeta nevrótico. Viveu a sua decadência e não entendeu o tempo novo de Zelda Scott-Fitzgerald. Ditou e inventou as suas memórias parciais por necessidade económica. Morreu num acaso trágico e espectacular que parecia encenação sua.

3.

E quem é, por seu turno, a Isadora do poema?

Esta Isadora de Graça Pires inscreve – nas paredes de ressonâncias platónicas – gestos indecisos, palavras sombrias, pressentimentos, lágrimas, gargalhadas e desalentos. Reconhece a solidão que não mascara com as lembranças. Para se observar, para se ver de fora, esta Isadora recorda, ao contrário de Ulisses, o seu nome, a sua infância, inocente, as suas fugas, o mar, o corpo nu, a boa solidão de estar só, a vertigem. Treina a evasão de si. Nascida sob a estrela de Afrodite, loira, olhos violeta de revoltada, pernas esguias, com elas soerguia o corpo até à intimidade do chão. Descobria que a Natureza era a sua única escola.

Sob a influência da Mãe, aprendeu a feminilidade sem enfeites. Adquiriu poder espiritual a ouvi-la tocar música clássica e a recitar os poetas do seu tempo.

Começou a decifrar os mitos nos vasos gregos e na pintura de Botticelli. Percebeu o sagrado e o profano e que a dança é a expressão divina da humanidade em direcção à luz. Dançou descalça imitando os rituais aos deuses e aos anjos. Foi cúmplice das bacantes e dos bichos, das árvores e das chuvas, como Francisco de Assis. Procurou as máscaras da tragédia grega até à alucinação das vozes.

Muito jovem, desejou fugir, mas interditou-se os sonhos.

Regressava ao corpo sempre que o sangue lho pedia. Com as suas mãos – cingia, acenava, manuseava, suplicava, ordenava, tacteava --, imitava o ritual da posse e aprendeu a voar para a luz do sol purificadora.

Rumou à Europa e pensou na vida como peregrinação.

Encenou o seu corpo seminu e vestiu-o ligeiramente para o júbilo do voo; criou uma coreografia sobre música que só ela escutava. Inventou um erotismo de gestos abstractos das coxas firmes, das articulações ágeis, disfarçando a dor; com a sua pele suada, enfrentou as vozes que lhe espiavam o rodar das ancas para a acusar de imoralidade. Foi enlameada e difamada e acusada de escândalo e provocação. Mas os seus gestos, de tumulto erótico, vinham do instinto e eram arquetípicos, primordiais.

Recomeçou sempre, bebeu em todas as fontes que lhe mitigavam a solidão. Ouviu e dançou a música – de Chopin, de Beethoven, de Wagner. Esculpiu, no espaço, figuras retiradas da vida: pétalas de rosa a cair, velas ao vento a lutar contra as ondas. Mimetizou a imobilidade e o espasmo do movimento convulso. Experimentou o transe e a euforia, o ar e o fogo da emoção dançada. Inventou gestos inspirados pelo enigma dos Mistérios de Elêusis. Nada nem ninguém a desviou do palco. A posteridade culpá-la-á por ter sonhado. Mas sonhou, trabalhou, deixou-se fascinar, enfeitiçar. Era possuída por um felino interior que lhe ditava as coreografias.

Adorou os aplausos, mas nunca acreditou em Salvação. A Dança era o seu credo. Quis fazer uma escola habitada por crianças e ternura. Em país nenhum, da América à Rússia bolchevique, foi entendida.

Enrolava-se na cortina azul, seu único cenário. Chegou até a escrever a sua vida. Percebeu, porém, que as palavras são insuficientes.

Aceitou o destino de ser mãe, o sublime anseio.



[Rememora agora o passado e interroga-se: “Como contar aqui todos os tropeços, /todos os despojos, todas as solidões?”]



Lembra-se da fama, coisa vã. Surpreende-se com a passagem do tempo. Recorda os amores, as paixões, os desencantos.

Teve maus pressentimentos que a levaram a gostar de dançar ao som da Marcha Fúnebre de Chopin. Descobre, com a morte dos filhos, o grande, o único grito maternal.

E renuncia ao amor. Horror, guerra e caos. Mas ressuscita.

Regressa aos Estados Unidos da América, lugar onde nascera.

Naquele dia frio do sul da França, vê a natureza em convulsão e pressente um acto sacrificial. Tenta cobrir os ombros com o xaile vermelho. Cavalos cavalgam as ruínas do seu peito. O coração parou. “Morrer sim, mas devagar”, parece lembrar a bailarina. A poeta.

 

 

Alguma Bibliografia

DUNCAN, I., My Life, New York: Liveright, 1927. Em francês: Ma Vie, tradução Jean Allary, Paris: Gallimard, 1932; 2009. Em português: Isadora: Memórias de Isadora Duncan, tradução Gastão Cruls, Rio de Janeiro: José Olympio, 1969.

---, Isadora Speaks, San Francisco, City Lights Books, 1983. Em português: Isadora: Fragmentos autobiográficos; tradução Lya Luft, Porto Alegre: L&PM, 1996.

---, La Danse de l’avenir ["Der Tanz der Zukunft”, 1903], suivis de Regards sur Isadora Duncan, selecção e tradução Sonia Schoonejans, Bruxelles, Éditions Complexe, 2003.

 

Eugénia Vasques

Colares, 24 de setembro de 2020

Prefácio do livro




A VIDA COMO UMA LONGA DANÇA

 

Pode a carreira de uma bailarina expor as vivências, pensamentos e sofrimentos de uma mulher? Pode a viagem no tempo de uma carreira, de uma vida, revelar a intimidade intangível de uma mulher, enquanto descreve os movimentos do seu corpo?

 

GRAÇA PIRES, no seu recente livro JOGO SENSUAL NO CHÃO DO PEITO (Ed. Labirinto, 2020), oferece-nos uma leitura que permite responder afirmativamente às duas perguntas.

Sobre a (auto)biografia de Isadora Duncan, a Poeta criou um poema épico (exercício raro nos dias que correm), em que o sujeito simultaneamente real e pretexto, convida e desafia o leitor. Mais do que bailarina, Isadora é uma mulher. Uma mulher que aceita expor-se: "abro devagar a seda de meus véus para / desvendar o mel e o sangue dos sentidos, /que a vida e a morte consentiram" (p. 15). Uma mulher em fuga: "Perto do mar reservei o lance irrepetível / da evasão onde me desencontrei de mim / e me aguardei e me persegui, / amotinada, sempre, nos atalhos dos dias" (p. 18). Porém, uma mulher que nunca deixou de viver a sua vida, de dançar - " E dançava. / Incansavelmente dançava. / [...] / [...] como se voasse em chamas" (p. 32) - e de dar sempre o melhor de si: "Nenhum sinal de insubmissão / eu consentia aos músculos. // O meu ofício era o anúncio de movimentos / que exigiam e anulavam todos os excessos, / mesmo os que amotinavam o sangue e o nervo" (p. 35).

Nesta viagem pela vida de Isadora, estão os altos e baixos, desde as apoteoses - " Quantas vezes me comovi / por bradarem o meu nome / de forma cúmplice e calorosa" (p. 36) - até à perda terrível dos filhos (p. 46).

A persistência na dança sobrevive ao sofrimento e ao desencanto das paixões da vida. Isadora não fugiu às paixões - "Arredia como um pássaro retornava / ao que unia e dividia o rasgão das noites / mais secretas, mais privadas", mas confessa logo que "Desprevenida errei todas as paixões" (p. 44). A dança, essa persiste: "Sei que as dores e os desencantos do amor / transformaram a minha arte. / Mas nunca refreei o gosto de dançar / ou vedei dentro de mim o desinibido / anúncio do cansaço" (p. 44). São assim as mulheres que sobrevivem aos desgostos e ao sofrimento sem deixar que sejam pretexto para seja o que for. E no epílogo, a mesma coerência:

 

Os cavalos, gritando,

vieram no seu trote.

De meu brilho se tomaram.

Cavalgaram as ruínas do meu peito

e meu silêncio sustiveram na garganta.

O coração, tão breve,

ficou suspenso por uma névoa

que, num instante se dissipou.

 

Devagar bailando

Devagar morrendo" (pp. 53-54)

 

Voltando à pergunta inicial, sim, é possível revelar a intimidade intangível de uma mulher, mas o mistério sobrevive à revelação.

 

Carlos Campos

23-12-2020





Segundo dia instável deste novo 21. Estado de emergência, confinamento desde as 13 horas e, decido "terminar" mais uma leitura.

«JOGO SENSUAL NO CHÃO DO PEITO» é o novo "desafio" poético da amiga que muito estimo e admiro Graça Pires.

Com a chancela Labirinto, Graça Pires autora já distinguida com vários prémios literários, ousa criar um apelativo sentir de uma autobiografia duplamente ficcionada, onde exercita versos sedutores no meio de personagens "identificadas" e simetricamente dialogantes entre o traço de quem escreve e o espelho de um olhar interrogativo, nas envolvências de um reflectir.

.../...

" E dancei descalça por todos os lugares,

imitando os rituais aos deuses

das límpidas manhãs,

ou aos anjos das trevas,

na euforia do enlevo."

(pág.23)

É este "contar" livre, que desenha o título desta obra num correr constante ao encontro de telas personalizadas, onde o hoje não vacila nos enredos do ontem, e o cuidado do pormenor é sempre um parágrafo dialogante com o verbo versejar.

.../...

Tentei ignorar o tempo

golpeado de incertezas,

recusando o desgaste

dos caminhos percorridos

e das lembranças

deslizando sobre a pele.

(pág. 49)

Graça Pires define assim, quase um diário de parágrafos vividos, no enclave de olhares sonhadores, e "sabores" sempre personalizados, deixando ao leitor a honra de contracenar nos jogos sensuais esculpidos no chão do peito.

.../...

"Nos sabores que à boca concedi,

interroguei os mares, iludi distâncias

e sobre o tempo saltei sem dar por isso."

(pág. 52)

Mais uma satisfação plena de uma leitura "romanceada" em seiscentos e trinta e quatro versos, onde cada ponto final é um convite a uma leitura interpretativa e digna de um sorriso de agrado constante.

Fica o convite!

 

José Luís Outono, poeta

E-mail, 02 janeiro 2021





Terminei de ler o seu livro. Belíssimo, como já nos habituou, aos seus leitores!

A solidão é, para mim, transversal a todos os poemas, desde a solidão reveladora, dos momentos da infância, da descoberta e consciência do corpo, à solidão vazia, em que a vida perde o sentido.

 

Há momentos encantatórias em que a dança se revela como movimento extático, dando a Isadora a configuração de uma sacerdotisa, de uma feiticeira, e nós somos testemunhas do seu rito. Participamos nele, aliás! A voz que convocou é antiquíssima, arquetipicamente deífica e profundamente humana. Uma menina que se descobre, que cresce, torna-se mulher madura e de sucesso, que conhece a dor maior de perder os filhos e vê o prenúncio da própria morte. E, contudo, essa mulher foi sempre fidelíssima à sua natureza, pagando por isso com a solidão. Pois é com a solidão que pagamos a nossa liberdade. Mas temos o direito de ser quem somos, temos direito de o expressar. Como a luz breve de um relâmpago.

 

Sempre um maravilhamento lê-la, sempre uma gratidão profunda por nos termos cruzado. Também "penso na vida como uma peregrinação", como caminho. Sou feliz pelas pessoas que tenho encontrado neste caminho que estou a trilhar. A Graça é uma dessas pessoas.

 

Um grande abraço,

 

Samuel Pimenta, poeta

 E-mail, 8 janeiro 2021





Poesia em vários tons

Graça Pires versus Isadora Duncan

 

Graça Pires é uma poeta que não quer ser tomada por prodígio para o que teria de acolher resposta substantiva aos sucessivos livros com que vai avolumando a sua obra, mas cujo reconhecimento em prémios atribuídos desencoraja ostracismos por vezes parentes de complô de que ela admitisse ser o desafortunado alvo.

Em todo o caso, o seu último livro Jogo sensual no chão do peito traz por companhia um prefácio muito diferente daqueles que se usam para empurrar o livro ou o Autor, mas que situa já no âmbito do ensaio. Ensaio esse que fornece ao leitor motivos capazes de despertarem a sua curiosidade. E quem é esta prefaciadora ilustre? O seu nome será familiar a muito boa gente, especialmente quem acompanho o teatro e o bailado de perto. Eugénia Vasques. Reputada crítica de Teatro, mostra-se conhecedora profunda de quem foi a bailarina Isadora Duncan, elaborando um síntese histórico-biográfica sobre a norte-americana que revolucionou a Dança, interveio em acções ligadas à condição feminina, pugnando pela emancipação da mulher ao bater-se pela mudança de usos e costumes especialmente danosos para aquela, vindo a falecer em França em condições trágica.

Ora, neste livro, Graça Pires pretende rever-se, à custa de seiscentos e quatro versos, na controversa bailarina, tomando como base o que da ciência certa se sabe sobre o trajecto acidentado por ela percorrido – Isadora foi autora de um diário – bem como os comportamentos cuja natureza se revestiam de traumáticos problemas de consciência e de dor aos quais Graça Pires, num empenhamento lírico servido por um estilo notável já consolidado, recupera para celebrar a convergência emocional e as semelhanças psicológicas consigo própria que foi buscar ao seu encontro com a mulher-mito.

Eugénia Vasques, mais atenta ao enquadramento histórico, tem palavras encorajadoras para Graça Pires, fazendo questão de separar sempre a Autora do Fantasma.

E termina.

E a autobiografia duplamente ficcionada, da bailarina e da poeta, começa a desenrolar-se pelo fio enganador da roca de Penélope.

 

Júlio Conrado, escritor

“As Artes entre as Letras”, 10 fevereiro 2021
















ESTREIA NO DIA 31 DE MAIO, NO TEATRO SÃO LUIZ, A MAIS RECENTE CRIAÇÃO DE RITA LELLO, ISADORA, FALA!, UM SOLO POÉTICO CRIADO EM COLABORAÇÃO COM EUGÉNIA VASQUES, A PARTIR DAS PALAVRAS DE GRAÇA PIRES E DE ISADORA DUNCAN.

Neste espetáculo, Rita Lello propõe um espaço de encontro de memórias, um encontro das palavras de Isadora Duncan com as questões da contemporaneidade. Conduzida pelo olhar de Amélia Bentes, explora o espaço cénico, acompanhando de gesto e movimento um texto que mescla Poesia, Ensaios, Relato e Memórias. 


Criadora, aventureira revolucionária, defensora ardente do espírito poético, da liberdade e dos direitos da mulher; livre pensadora dotada de lucidez crítica, originalidade e ousadia, defensora do amor, pedagoga apaixonada. É explorando estas dimensões que ouvimos Isadora Duncan neste texto, a partir do itinerário proposto na poesia de Graça Pires em Jogo Sensual no Chão do Peito e da prosa da própria Isadora.

“O desafio para trabalhar Isadora, nomeadamente o poema (dramático) de Graça Pires, foi-me colocado por Eugénia Vasques, em 2019. Trabalhar a questão do feminino, do feminino vanguardista do qual um dos arautos foi sem dúvida Isadora Duncan, explorá-lo, conhecê-lo e depois dar-lhe espaço e voz, foi-se concretizando à medida que encontrava nas palavras de Isadora o eco dos desejos de liberdade e reivindicações que ainda hoje as mulheres reclamam”, revela a encenadora e atriz.

ISADORA, FALA! estará em cena até dia 9 de junho, de quarta a sábado às 19h30 e no domingo às 16h.

Pedro Marques 



                                            


                              


Rita Lello chega a Isadora Duncan, com o desafio da professora Eugénia Vasques, a partir do poema de Graça Pires, da avó de Rita Lello e da mulher que foi Isadora. Criadora, aventureira, revolucionária, defensora ardente do espírito poético, da liberdade e dos direitos da mulher: Coreógrafa, bailarina, mulher do mundo.

Não é um espetáculo biográfico, Rita Lello não é a atriz que faz de Isadora Duncan, são as palavras que escreveu, disse, sempre na primeira pessoa.

Rita Lello em palco, com estas palavras de Isadora Duncan, e liberdade. Há mulheres, sim! Também um feminismo, mas sempre liberdade.

Ouvir a voz de Isadora Duncan pela voz de Rita Lello. Livre pensadora, original, a defender o amor e dança que quis mudar e ainda hoje lá estão os traços dos movimentos desta mulher.

José Carlos Barreto, 30 Maio 2023