BREVE RESENHA SOBRE O LIVRO DE GRAÇA PIRES “A
SOLIDÃO É COMO O VENTO”
A Poesia conta
histórias? Interrogo-me. Sei que seria conveniente responder que não, a Poesia
não é narrativa, a Poesia é outra coisa, faz outras coisas, eleva-se,
distancia-se do ruído dos dias, das dores concretas, dos nomes verdadeiros,
preferindo inventá-los, metamorfoseá-los, falar de anjos para dizer homens, ou,
ao invés, dizer mulher para falar de amor primordial. A Poesia finge, pois
finge, sem fingir, assim o disse o Poeta. A Poesia é a vida, o mundo, a
natureza, o homem, o supremo e o ínfimo. Há quem a sinta, quem a leia, quem a
escreva, quem a ignore, quem a venere, quem a tema. Mas voltemos ao princípio:
a Poesia conta histórias? Resposta não tenho, não devo. Se resposta fosse, eu
diria: Atentemos no livro de Graça Pires. Sim, é um grande livro de histórias,
melhor, de história. Sem dizer, era uma vez, ou, foi assim que aconteceu, os
poemas passam diante de nós, por dentro de nós, e os personagens acenam-nos,
sem nunca se nomearem. Ao ler este livro, vamos dizendo, na mudez a que a
leitura convida: sei quem és, eu conheço-te, ou, eu sou essa, tu és esse, somos
isso, ou, como adivinhaste, quem te contou, também penso assim, ou, não digas
isso, há sempre uma saída, por que me fazes chorar.
Histórias anunciadas
no primeiro verso de cada poema e que depois se diluem, se desencaminham, nos
desencaminham, numa trama de mistérios e impossibilidades que só a Poesia
permite, como, por exemplo: “Naquela aldeia havia uma ribeira”, “Aprendiz de
escultor era o seu ofício”, “Foi numa tarde de maio que as fontes secaram”,
“Habitava aquele sítio por engano”.
Histórias contadas
em poemas curtos, de verso solto e livre, com economia do verbo, nem uma
palavra a mais, conseguido com trabalho rigoroso da língua portuguesa,
resultando numa música suave e escorrente que tanto proporciona uma calma
leitura interior como convida a ampliá-la em alta voz para que bem a apreciem.
Histórias muitas,
que nos falam de variadíssimos temas alguns dos quais passo a citar:
- Do desejo, dos
homens enfeitiçados pelo ventre das mulheres. Do desejo das mulheres, bordando
abraços de mar. “Ela bordou ponto por ponto/os veleiros que adivinhava no seu
peito”. E do encontro prodigioso do homem-mulher, ele que sai do deserto, ela
que procura o mar.
- Do mar, como
destino, de “um homem (que) morreu sem ver o mar/agora na sua aldeia/os barcos
sobrevoam as casas”, e das mulheres vestidas de luto, a caminho do mar, “a
acender estrelas que guiam os marinheiros.”.
- Da loucura, seus
fantasmas, seus códigos, seus caminhos de deambulação, assombração, perdição.
“Assombrado, rebolou o corpo/pelo chão até ser trevo rasteiro”.
- Do amor, caminho
e alcance, do seu tempo inaugural, indizível, precário. Do ciúme, sua morte. E
do desamor, da rebeldia, quando “no peito … encalham as barcas da paixão”.
- Dos lugares,
desejados, procurados, nunca encontrados, que trazem escrito no fim “Quem me
dera voltar para a minha casa”.
- Dos gestos das
mulheres, “enigmas que só as mãos das mulheres/sabem decifrar no resgate/de um
meticuloso nomadismo.”, ou “com a perícia das unhas arranhou os poros da
pele.”, ou “com as mãos sobre as mãos”, ou “a quantos exílios se forçou/para
encontrar a mudez propícia/à urdidura de acautelados gestos” ou “vagarosamente
enrodilha na anca/as vestes de pano cerzido”.
- Da Natureza, a
fazer corpo com o homem, com a mulher, em interpenetração, em mútuo
reconhecimento. A mulher “despia-se e deitava-se na erva/com as mãos sobre o
ventre”, ao homem “Um inesperado cio, /bafo da terra em júbilo, alojou-se-lhe
no sangue.”
- Da
incomunicabilidade, quando a filha pergunta “O que é que nos aconteceu, mãe?”
ou o neto reclama do avô, “mas isto não é um cavalo a sério, como eu queria”.
- Do silêncio,
como lugar recôndito de toda a solidão: em “a puríssima luz do silêncio/na
solidão das montanhas.”, ou “a sua boca inchou com o silêncio, /com a poeira,
com as ervas secas.”, ou ainda “desenhava no chão o silêncio/de um tempo
demorado”.
- Da memória,
quando alguém no seu desdobramento “começou a dissipar a véspera do passado” ou
quando com ela vem “o estranho retorno de um espanto”.
- Da indiferença
perante os que “saem dos túneis da noite e do medo”, os “excluídos da luz”, os
mesmos que são temidos porque diferentes, de tal sorte que “à sua passagem
fugiam as crianças, /ladravam os cães, agitavam-se as mulheres, /escondiam-se
os homens.”
- Da solidão, (por
último, e porque não saberia enumerar todos os temas do livro), Graça fala-nos
da solidão, tema primeiro e permanente. Tal como se anuncia no título, ela é
como o vento, esse fluido invisível, que vai e volta, maléfico quando
persistente, arrasador, dilacerante, afirmativo sempre nos seus sons sem nexo,
numa voz próxima da do silêncio. É a solidão que nos versos se mostra/se
oculta, como uma dor informe, perfurante, como pode ser o vento. “Ao longo do
seu corpo/diluía-se uma solidão/que lhe ocupava os sonhos.” ou “Os limites da
solidão a perfurar-lhes o peito.”, ou da solidão não dita em “Envelheceram
juntos, / falando cada vez menos/até perderem a voz.”
Para falar do livro,
do que fala a autora, servi-me abundantemente das suas palavras, que não sei
outro modo de dizer a Poesia senão com as palavras que para ela nasceram. Citei
temas que são carne e respiro desta Poesia, habitada por homens, mulheres,
meninos, que nos apontam o dedo, que nos piscam o olho, que nos estendem o
braço ou nos viram as costas, que são nossas testemunhas, nossos cúmplices,
nossos acusadores. Diz-se a certa altura, “poderão perdoar a nossa ausência?”.
Todos eles parecem afincar-se a revelar-nos estradas onde a culpa e a salvação
caminham lado a lado, como se fôssemos, nós e eles, filhos do deus menor.
É tempo de
terminar esta breve, modesta resenha em jeito de apresentação do belo livro “A
solidão é como o vento”, que se vai juntar a todos os outros da vasta obra da
Graça Pires, igualmente a merecer o nosso respeito, a nossa gratidão.
Que o vento lhe
seja favorável e que viva, pelo menos, os cem anos da solidão.
Licínia Quitério, poeta
Apresentação do
livro, 21 de março de 2020
Da obra “A Solidão é como o
Vento”
O sol e o vento falam
apenas de solidão, diz Albert Camus.
Quem
diria que também o sol lembraria a solidão? Seria mais comum e mais razoável
ver no sol, uma das mais dilectas companhias, no entanto tudo obedece ao
critério de quem vê, dependendo do estado de alma. A solidão está quase sempre
aliada ao silêncio, que também é como o vento na medida em que atiça os
grandes mal-entendidos e só extingue os pequenos (cit. Elsa Triolet).
Daí
que solidão e silêncio tanto podem contribuir para a criação de grandes obras –
nos mais variados campos artísticos – como as mesmas serem atraiçoadas pelo
vento.
Mas a
solidão é conivente com o silêncio, pois é com ela que este se faz mais
presente, e é com esta presença que os ventos da imaginação encontram terreno
fértil para o processo criativo, inerente à capacidade e inteligência do Homem
enquanto ser cocriador. Ela pode ser um vento rápido que sopra e
coloca algumas coisas no seu devido lugar, mas nunca um furacão que torna sua
vida um verdadeiro caos. Mas é o que muitas vezes deparamos com o vento: se
pode ir e voltar como a solidão, não raras vezes derruba, deixa as cicatrizes
na alma e na vida…
Na
casa de cada homem está muitas vezes a sua solidão. Pode andar com os outros,
mas está só na medida em que a casa da sua solidão tanto existe no momento de
perda como quase sempre no encontro consigo.
Tal
como a solidão, o vento está em toda a parte, mas em troca traz outros tipos de
ventos: os da solidariedade na CONDIÇÃO HUMANA, o despertar de consciências –
subtemas tão caros à nossa grande Poeta Graça Pires –, num bouquet de várias
histórias poéticas cujas flores despertam e dispersam aromas vários.
O
ESTILO
A
sensibilidade poética define-se pelo estilo que caracteriza o autor. É
indelevelmente a marca do seu Eu.
Hoje,
estamos perante uma exímia amante da palavra, uma purista da linguagem no
panorama literário actual, pelo seu perfeccionismo e depuração linguística.
A
autenticidade do que escreve e o seu estilo, são o reflexo da personalidade da
autora, caso contrário não se reconheceria como único, na coerência entre o Eu
e a Obra.
A
poesia é “o murmúrio daqueles que não ousam afirmar em voz alta as suas emoções
íntimas, é um modo velado e até sofrido de comunicar, revelando-se muitas vezes
o” grito” de quem não se conforma com o mundo em que participa. É o modo mais
complexo e mais sintético da expressão do espírito humano. Ela veicula o sonho
e é uma via para alcançar o inatingível, essencial à existência humana e tem a
incumbência de dar resposta a situações concretas do quotidiano.
E
é o que encontramos nesta obra de Graça Pires. Ela estimula o trabalho da
linguagem enquanto delapida o diamante que faz de cada poema.
E
tanto a sua linguagem como a mensagem poética são ímpares.
CONTEÚDO
Na
sua obra “A Solidão é como o Vento”, Graça Pires percorre a tragédia da vida do
Homem, já que a vida é um palco onde os actos se desenrolam, com todos os
cambiantes inerentes à solidão, na representação de cenas de agruras,
incompreensão, saudades, solidão, no inconformismo silencioso com que a
sociedade tantas vezes pactua, deixando-nos a amargura num “sarro de vergonha”.
Podemos
considerar vários sub-temas abordados nesta belíssima obra e tão caros à nossa
Poeta com as vertentes intrínsecas à condição humana nas mais variadas
solidões:
a
mulher e a tragicidade de sua vida/ a solidão conjugal / os sem abrigo, na
fragilidade da sua condição / os “errantes” da vida que se deixam viver como
“trevos rasteiros” / a migração e sua condição precária / mas também a natureza
num todo harmonioso como refúgio no estar só.
A
solidão, é acompanhada do tom silencioso na personagem de cada história-poema.
Desde amores que um dia se cruzaram “com golpes migrantes e cada momento do olhar”,
à mulher que nunca foi menina, “pelo trabalho que se instalou na orfandade das
suas mãos”.
É no
contexto do universo familiar que a mulher protagoniza muitas das histórias:
ela é a canção abafada neste vento silencioso que se deixa ouvir, quer pelas marcas
do tempo, quer pela recordação e dor contidas com “os limites da solidão a
perfurar-lhes o peito”, quer no “canto que é um brado” onde se misturam “as
roseiras bravas com a aspereza das mãos”.
De
notar o amplo conhecimento de Graça Pires nos mais variados aspectos da
realidade feminina, de tal forma autênticos, como se os experienciasse a todos
e cada um, desde a mulher-mar, à mulher-campo.
No
papel de mulher-mãe, deparamo-nos com a beleza de um belíssimo poema na dor e
saudade extensivas às violetas brancas de tal forma irmanadas no mesmo
sofrimento que “Desde então, emurchecem desde que as apanha”.
*
Todos
sofremos de solidão. O homem é um universo povoado de solidões, qualquer que
seja a sua viagem na vida.
A
obra de Graça Pires disso é o exemplo no infortúnio de quem tem de deixar sua
casa pela condição da sua idade ou outro, instalando-se a tristeza e incerteza
somente amenizada pela companhia proibida até dos pássaros no parapeito da
janela.
A
terra e o mar constituem na maior parte das vezes o pano de fundo destas
vivências onde Graça Pires nos envolve com a devoção pela Terra: mãe, origem e
fim de alegrias e encantos, para depois, sem qualquer “azedume” voltar a ela
porque dela fazemos parte.
É
frequente a autora fazer um enlace numa moldura com a natureza e o amor, numa
espécie de fusão com a terra, sendo esta, quase sempre, a testemunha da
plenitude amorosa.
A
Terra é uma espécie de paixão de que a autora é feita, pó que nos faz e cinzela
e para onde vamos e que longe de ter uma conotação lúgubre, como lugar onde um
dia nos diluímos, esta é, para Graça Pires a fonte de tudo o que nos rodeia,
com a beleza, alegria e encanto com que nos acorda ao assomar à janela nas
manhãs claras, com o vibrante das folhas e flores até ao poente rosado das estações,
no ciclo das árvores como da vida. Daí a citação que ela repete e onde se
revê:
“Não
somos nós que regressamos à terra, é ela que um dia chega aos nossos
corações." 'O Diário do Meu Pai', Jiro Taniguchi.
Está
no homem esta atracção pela terra e o seu declínio (“quando o corpo se faz
sombra”) no destino implacável de ser um dia parte do mesmo pó.
Canta-se
o amor porque apesar de tudo e de todos os ventos, é condição da vida ser feliz
– com o amor perenizado na felicidade mútua. E esta cumplicidade está
projectada na admirável arte poética de Graça Pires onde todos os alvoroços da
terra se fundem com o “TU”, no colorido do verde e no círculo das águas.
Contempla-se
a beleza indescritível da Natureza no enlace total, abrangente, entre a terra a
água e a luz, e é nesta catarata de assombros donde virá o sobressalto da
primavera numa intensa explosão de um hino à criação, numa vénia e assombro
pela terra, fonte e origem de toda a beleza, cadinho de renascimento numa
transformação incondicional para que a Renovação seja vida.
Longe
da mágoa e desassombro pelo infortúnio da caducidade humana, ela exalta -a
porque ela é seu princípio e o seu fim.
*
Tal
como um aprendiz, Graça Pires toma cada palavra-pedra, entalha-a e o poema
nasce na escultura perfeita “onde até lhe adivinhamos o lado mais íntimo”.
E
como numa apoteose da alegria de permanecer aqui, ela termina com uma
história-poema de amor sublime, onde o Eu Poético encontra a afinidade no mesmo
cansaço e de “de cacto murcho em cada mão”, despe a solidão, e saciando a sede
mata saudades do mar. Uma narrativa em que a solidão se encontra com outra
solidão.
É
neste contexto que se encaixam as histórias-poema de Graça Pires. Todas são
gritos de irmandade, preocupação, solidariedade pelas mais variadas condições
humanas. São ventos, solidões e agitações que se vão curando com brisas de
solidariedade.
Assim
é a Poesia da nossa grande autora Graça Pires, com Palavras que têm a
leveza do vento e a força da tempestade (Vitor
Hugo).
Manuela Barroso, poeta
Apresentação
do livro, 21 março 2020
Li o teu novo livro, com muito prazer, do primeiro ao último
verso.
Cabe-me felicitar-te por teres mantido neste trabalho aquele
cunho pessoal que te identifica e confirma, mais uma vez, como a poeta da
clarividência do pensamento e da fala. Em “A solidão é como o vento” somos
postos perante imagens, “flashes” que trazem à pupila momentos, não apenas de
vidas passadas, mas também de espaços que, dentro de nós, são como terrenos
pantanosos que nos fazem temer o futuro. Um livro em que a Poesia, longe de ser
apaziguamento, é matéria de reflexão, de tomada de consciência, de percepção do
sobressalto em que nestes tempos conturbados, nos vemos viver.
Lídia Borges, poeta
E-mail, 29 abril 2020
Chegou a Braga uma solidão.
Uma outra solidão.
Esta, substancial, plena de respiração.
Não traz vírus, não é maléfica.
Contagia as mãos, segura os olhos.
Leve e limpa. Arejada.
Para que se respire a voz do canto.
Como quem a escreve.
Veio com o vento.
Vai um beijo, Graça Pires
Maria Isabel Fidalgo, poeta
E-mail, 1 maio, 2020
Graça Pires habituou-nos a uma rebeldia ao que é excessivo em poesia. As
palavras articulam-se incisivas, profundas, cirurgicamente resgatadas.
Na sua escrita prevalece uma concepção romântica da vida captada nas suas
raízes mais depuradas. Fala-nos de uma luz tecida entre as sombras da
nostalgia, do amor ao mar, da espera, do incumprimento dos sonhos.
“A solidão é como o vento” não escapa à matriz da escrita a que Graça Pires
já nos acostumou. É um livro peculiar, pois a autora conta-nos em verso
pequenas histórias ou instantes de personagens que estão vivos dentro dela. Na
leitura, vamos reconhecendo partes de nós e conhecendo partes dos outros.
São narrativas poéticas sensatamente construídas onde se movem figuras
excluídas da luz numa sofreguidão de vida. Ensimesmadas, nelas não secam sonhos
nem desejos. Ainda que silenciadas pela espera, as personagens aprisionadas
dentro do tempo têm a loucura dos violinos na voz.
Ama as montanhas, ausentam-se do deserto, bebem com avidez águas
primitivas.
Na incompletude dos segredos atiram medos ao vento e confundem-se com as
gaivotas.
Graça Pires sabe bem colocar o sofrimento em palavras adornadas com tal
tonalidade afectiva que esbatem a dor nelas contida.
Lília Tavares, poeta
E-mail, 1 maio 2020
«A solidão é como o vento» da amiga que muito estimo e admiro Graça Pires:
Depois de uma aventura no envio do livro citado, por entre caminhos e
serras perdido, nos atrasos inconcebíveis dos CTT, o prazer de contemplar
olhares ilustradores num trabalho bem desenhado transmite um sentir apelativo
de querermos viver momentos desta lavra.
- “Conhecia todos os rios navegáveis
e a puríssima luz do silêncio
na solidão das montanhas”,
Graça Pires, uma autora já com alguns prémios literários, olha o vazio da
folha de papel, e giza pensamentos ímpares onde flutua o amor de criar, e o
timbre simples, mas intensamente belo de um navegar em desafios constantes e personalizados.
- “Naquela aldeia havia uma ribeira
onde vinham beber os homens e os lobos”.
Neste atraente mar criativo, Graça Pires define o lado natural do
acontecer, e vibra em momentos e olhares reais, os desenhos simples de um viver
natural.
- “O bordado da toalha
esconde enigmas
que só as mãos das mulheres
sabem decifrar no resgate
de um meticuloso nomadismo”.
À beira de um fim de semana (de cautelas) atrevam-se, e descubram este
criar belo e provocador de reflexões únicas.
- “Olharam-se. E ela contou-lhe.
Contou-lhe das vezes que se afogou no chão
pensando que era água;
como rebentaram seus lábios pela sede interminável”.
Mais uma leitura, que me convidou a reler.
José Luís Outono, poeta
E-mail, junho 2020
Li este seu livro na última madrugada, e reencontrei em suas páginas a
beleza e a originalidade que são intrínsecas à sua literatura. Há um ritmo
muito peculiar nos seus versos, imagens de raro encanto, e gosto das alusões
que faz, da presença do mar, das aves, das recordações, dos sentidos do corpo.
É uma voz verdadeiramente feminina, tudo parece gestado num âmago maduro,
sensível, onde as emoções são intensas e ao mesmo tempo sóbrias e refletidas.
Momentos como “… um poeta / sôfrego de silêncio”, “As gaivotas começaram a
amar-lhe / a fragilidade das mãos.” “…e os seus gestos tão íntimos / da
linguagem da pedra. “… margens que oferecem às aves / um ninho clandestino”,
“…poemas / escritos em folhas de plátano…”, “…colheu no pão e na lã o aconchego
certo.”, “… Os limites da solidão a perfurar-lhe o peito.”, “… Cinge, agora,
nas mãos a luz de março…”, dentre vários outros, são pedras preciosas. E os
poemas “Violetas de cheiro”, “Ela bordou ponto por ponto”, “Habitava aquele
sitio por engano”, “Não quis falar do vinho”, “Aparecia depois das febres”,
“Secaram as roseiras bravas”, “Não é ficção nem simbologia”, “Tinham uma
bússola imaginada” chegam a machucar o coração, tamanho o encanto que externam
José d’Ângelo, poeta
E-mail, junho 2020
SOLIDÃO - A POESIA QUE
DÓI
Há quem diga que a inspiração poética só pode vir da
tristeza e da dor e que até o amor - a maior das alegrias - precisa de
sofrimento para inspirar alguém. Talvez. Quando se está alegre, quando tudo
corre bem, fica-se demasiado ocupado a viver a alegria...
A SOLIDÃO É COMO O VENTO (Poética Ed., 2020), o
recente livro de GRAÇA PIRES, é sobre a solidão. A tristeza e a solidão vêm
logo no poema inaugural:
'Doía-lhe na voz
a crueza das palavras
como se fosse um poeta
sôfrego de silêncio.
com olhos alagados de tristeza
perdia-se no espaço
mais íngreme das vagas
quando a sombra dos barcos
acostava no seu corpo
até se transformar em tempestade.
Num rodeio de vento sobre as dunas
achou o seu exílio.
as gaivotas começaram a amar-lhe
a fragilidade das mãos.' (p. 7)
A tristeza pode vir de um passado que deixa saudades
('Vacilante, enrolou o sorriso no passado / e chorou com saudades do sul' - p.
9), ou da crueldade da morte. Os exemplos não podiam ser mais duros. Na página
13, é a imagem lancinante da mãe que vai entregar o filho recém nascido:
'Grávida da noite
soube, desde logo,
que o filho não iria pertencer-lhe.
Adoptaram-no.
Antes de o entregar
ela lavou-o, demoradamente,
com as próprias lágrimas'
Na página 24, a imagem é a dos refugiados que caminham
na incerteza e sob olhares desconfiados:
'Caminham por dentro do próprio desalento
com a memória exausta de pretéritos desejos.
Já não sabem quem são.
Dia após dia enfrentam a rejeição
com o áspero calamento do olhar.
Há golpes migrantes sulcando sua pele' (P. 249
'Poderão perdoar a nossa ausência?' (p. 56)
Depois, a brutalidade do trabalho infantil:
'Não frequentou a escola
no tempo de criança que lhe coube.
O trabalho instalou-se, desde sempre,
na orfandade de suas mãos.
[...]
Um cansaço antigo a transformou
em filha de si própria.' (p. 25)
E seguem-se muitas mais imagens. O drama dos náufragos
do Mediterrâneo é recordado nos poemas das páginas 26 e 27, a ferir vergonhas e
consciências. Na pág. 32, a alusão explícita à escravatura da prostituição. A
violência doméstica na pág. 46. A humilhação dos sem-abrigo na pág. 52. A
recordação da morte da mãe (pág. 34) ou até mesmo o risco de vida dos
pescadores na angústia das mulheres que esperam na praia (pág. 39). Os versos
de GRAÇA PIRES sobre estes casos são tão vivos como fotos de primeira página.
Não são leves as dores que inspiram esta escrita
pesada. Os Poetas não ouvem as notícias, sentem-nas. A Poesia é uma
manifestação da consciência. 'A Solidão é como o Vento' porque não é coisa que
fique quieta. Move-se à nossa volta e, por mais contraditório que pareça,
enquanto houver gente só, todos seremos, conscientes ou não, vítimas de alguma
forma de solidão, que é também uma forma de morte. Ao publicar estes Poemas,
GRAÇA PIRES exerceu um dos mais nobres ofícios da Poesia.
'O estranho retorno de um espanto' (pág. 58) conta o
reencontro entre um menino levado para cidade e o seu gato que deixou a aldeia
para ir ter com ele. Mas o que parece à primeira leitura ser o poema mais alegre
do livro, talvez seja mais doloroso que os outros: o gato foi capaz, os homens
não.
Carlos Campos
16 de junho de 2020
Um livro por semana
Depois
de «Espaço livre com barcos», «Uma claridade que cega» e «Fui quase todas as
mulheres de Modigliani», Graça Pires volta a publicar na Poética Edições, quase
30 anos depois do seu primeiro livro («Poemas») que recebeu o Prémio Revelação
da Associação Portuguesa de Escritores. A partir de citações de Herberto Helder
e Adonis, o livro de 61 páginas nasce do que podemos designar como
poema-resumo: «Encontrou-o à entrada do deserto / absorto, como se conhecesse /
todas as invocações do silêncio. / Lia-se nos olhos dele a atracção pelo vento
/ pelas areias, pelo espaço imenso, pela solidão».
A solidão
do título do livro pode surgir expressa no masculino («Sobre os seus ombros
apenas a noite / sempre tão húmida / sempre tão humilhante») mas também no
feminino: («Grávida da noite / soube desde logo / que o filho não iria
pertencer-lhe. / Adoptaram-no. / Antes de o entregar / ela lavou-o
demoradamente / com as próprias lágrimas.»
Os
poemas são registos qualificados daquilo a que chamamos «vida»: «A superstição
é ignorância / diziam-lhe os amigos / Ela enumerava os medos / que lhe
habitavam os gestos: / espelhos quebrados / facas cruzadas, gatos pretos / uma
progressão de alarmes / abrigados ma memória / pressentindo catástrofes e azares”.
Ou ainda do que podemos chamar amor: «Rasgou o retrato em pedaços. /
Enviara-lho uma amiga / do grupo do ginásio: ela ao lado dele. / Não gostou. /
Ainda tinha no sangue / a vertigem solar / do corpo que amara.» Umas vezes o
poema fecha-se no «eu»: «Não frequentou a escola / no tempo de criança que lhe
coube. / O trabalho instalou-se desde sempre / na orfandade de suas mãos».
Outras vezes abre-se ao grupo, ao «nós»: «O jantar estava excelente / disseram
seus amigos / voltando a encher os copos. / Um rumor de vindimas / propagou-se
pela sala».
Cada
poema faz a crónica de uma solidão. Seja na página 42 «Elas retêm múltiplas
memórias / que definem a vida que lhes coube» ou seja na página 47 «Procurou a
cicatriz dos dias, o risco da vida / e da morte, o choro dos filhos nas horas
aflitas». Mas também a confusão entre a Arte e a Vida na página 50: «E quanta
mágoa no olhar do avô / quando o neto lhe disse em arremesso: / mas isto não é
um cavalo a sério como eu queria».
José do Carmo Francisco,
poeta
“Gazeta das Caldas, 20 julho 2020