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sexta-feira, 3 de junho de 2022

A SOLIDÃO É COMO O VENTO

 



A solidão é como o vento. Braga: Poética, 2020

BREVE RESENHA SOBRE O LIVRO DE GRAÇA PIRES “A SOLIDÃO É COMO O VENTO”

 

A Poesia conta histórias? Interrogo-me. Sei que seria conveniente responder que não, a Poesia não é narrativa, a Poesia é outra coisa, faz outras coisas, eleva-se, distancia-se do ruído dos dias, das dores concretas, dos nomes verdadeiros, preferindo inventá-los, metamorfoseá-los, falar de anjos para dizer homens, ou, ao invés, dizer mulher para falar de amor primordial. A Poesia finge, pois finge, sem fingir, assim o disse o Poeta. A Poesia é a vida, o mundo, a natureza, o homem, o supremo e o ínfimo. Há quem a sinta, quem a leia, quem a escreva, quem a ignore, quem a venere, quem a tema. Mas voltemos ao princípio: a Poesia conta histórias? Resposta não tenho, não devo. Se resposta fosse, eu diria: Atentemos no livro de Graça Pires. Sim, é um grande livro de histórias, melhor, de história. Sem dizer, era uma vez, ou, foi assim que aconteceu, os poemas passam diante de nós, por dentro de nós, e os personagens acenam-nos, sem nunca se nomearem. Ao ler este livro, vamos dizendo, na mudez a que a leitura convida: sei quem és, eu conheço-te, ou, eu sou essa, tu és esse, somos isso, ou, como adivinhaste, quem te contou, também penso assim, ou, não digas isso, há sempre uma saída, por que me fazes chorar.

Histórias anunciadas no primeiro verso de cada poema e que depois se diluem, se desencaminham, nos desencaminham, numa trama de mistérios e impossibilidades que só a Poesia permite, como, por exemplo: “Naquela aldeia havia uma ribeira”, “Aprendiz de escultor era o seu ofício”, “Foi numa tarde de maio que as fontes secaram”, “Habitava aquele sítio por engano”.

Histórias contadas em poemas curtos, de verso solto e livre, com economia do verbo, nem uma palavra a mais, conseguido com trabalho rigoroso da língua portuguesa, resultando numa música suave e escorrente que tanto proporciona uma calma leitura interior como convida a ampliá-la em alta voz para que bem a apreciem.

Histórias muitas, que nos falam de variadíssimos temas alguns dos quais passo a citar:

- Do desejo, dos homens enfeitiçados pelo ventre das mulheres. Do desejo das mulheres, bordando abraços de mar. “Ela bordou ponto por ponto/os veleiros que adivinhava no seu peito”. E do encontro prodigioso do homem-mulher, ele que sai do deserto, ela que procura o mar.

- Do mar, como destino, de “um homem (que) morreu sem ver o mar/agora na sua aldeia/os barcos sobrevoam as casas”, e das mulheres vestidas de luto, a caminho do mar, “a acender estrelas que guiam os marinheiros.”.

- Da loucura, seus fantasmas, seus códigos, seus caminhos de deambulação, assombração, perdição. “Assombrado, rebolou o corpo/pelo chão até ser trevo rasteiro”.

- Do amor, caminho e alcance, do seu tempo inaugural, indizível, precário. Do ciúme, sua morte. E do desamor, da rebeldia, quando “no peito … encalham as barcas da paixão”.

- Dos lugares, desejados, procurados, nunca encontrados, que trazem escrito no fim “Quem me dera voltar para a minha casa”.

- Dos gestos das mulheres, “enigmas que só as mãos das mulheres/sabem decifrar no resgate/de um meticuloso nomadismo.”, ou “com a perícia das unhas arranhou os poros da pele.”, ou “com as mãos sobre as mãos”, ou “a quantos exílios se forçou/para encontrar a mudez propícia/à urdidura de acautelados gestos” ou “vagarosamente enrodilha na anca/as vestes de pano cerzido”.

- Da Natureza, a fazer corpo com o homem, com a mulher, em interpenetração, em mútuo reconhecimento. A mulher “despia-se e deitava-se na erva/com as mãos sobre o ventre”, ao homem “Um inesperado cio, /bafo da terra em júbilo, alojou-se-lhe no sangue.”

- Da incomunicabilidade, quando a filha pergunta “O que é que nos aconteceu, mãe?” ou o neto reclama do avô, “mas isto não é um cavalo a sério, como eu queria”.

- Do silêncio, como lugar recôndito de toda a solidão: em “a puríssima luz do silêncio/na solidão das montanhas.”, ou “a sua boca inchou com o silêncio, /com a poeira, com as ervas secas.”, ou ainda “desenhava no chão o silêncio/de um tempo demorado”.

- Da memória, quando alguém no seu desdobramento “começou a dissipar a véspera do passado” ou quando com ela vem “o estranho retorno de um espanto”.

- Da indiferença perante os que “saem dos túneis da noite e do medo”, os “excluídos da luz”, os mesmos que são temidos porque diferentes, de tal sorte que “à sua passagem fugiam as crianças, /ladravam os cães, agitavam-se as mulheres, /escondiam-se os homens.”

- Da solidão, (por último, e porque não saberia enumerar todos os temas do livro), Graça fala-nos da solidão, tema primeiro e permanente. Tal como se anuncia no título, ela é como o vento, esse fluido invisível, que vai e volta, maléfico quando persistente, arrasador, dilacerante, afirmativo sempre nos seus sons sem nexo, numa voz próxima da do silêncio. É a solidão que nos versos se mostra/se oculta, como uma dor informe, perfurante, como pode ser o vento. “Ao longo do seu corpo/diluía-se uma solidão/que lhe ocupava os sonhos.” ou “Os limites da solidão a perfurar-lhes o peito.”, ou da solidão não dita em “Envelheceram juntos, / falando cada vez menos/até perderem a voz.”

Para falar do livro, do que fala a autora, servi-me abundantemente das suas palavras, que não sei outro modo de dizer a Poesia senão com as palavras que para ela nasceram. Citei temas que são carne e respiro desta Poesia, habitada por homens, mulheres, meninos, que nos apontam o dedo, que nos piscam o olho, que nos estendem o braço ou nos viram as costas, que são nossas testemunhas, nossos cúmplices, nossos acusadores. Diz-se a certa altura, “poderão perdoar a nossa ausência?”. Todos eles parecem afincar-se a revelar-nos estradas onde a culpa e a salvação caminham lado a lado, como se fôssemos, nós e eles, filhos do deus menor.

É tempo de terminar esta breve, modesta resenha em jeito de apresentação do belo livro “A solidão é como o vento”, que se vai juntar a todos os outros da vasta obra da Graça Pires, igualmente a merecer o nosso respeito, a nossa gratidão.

Que o vento lhe seja favorável e que viva, pelo menos, os cem anos da solidão.

 

Licínia Quitério, poeta

Apresentação do livro, 21 de março de 2020






Da obra “A Solidão é como o Vento”                      

O sol e o vento falam apenas de solidão, diz Albert Camus.

Quem diria que também o sol lembraria a solidão? Seria mais comum e mais razoável ver no sol, uma das mais dilectas companhias, no entanto tudo obedece ao critério de quem vê, dependendo do estado de alma. A solidão está quase sempre aliada ao silêncio, que também é como o vento na medida em que atiça os grandes mal-entendidos e só extingue os pequenos (cit. Elsa Triolet).

Daí que solidão e silêncio tanto podem contribuir para a criação de grandes obras – nos mais variados campos artísticos – como as mesmas serem atraiçoadas pelo vento.

Mas a solidão é conivente com o silêncio, pois é com ela que este se faz mais presente, e é com esta presença que os ventos da imaginação encontram terreno fértil para o processo criativo, inerente à capacidade e inteligência do Homem enquanto ser cocriador. Ela pode ser um vento rápido que sopra e coloca algumas coisas no seu devido lugar, mas nunca um furacão que torna sua vida um verdadeiro caos. Mas é o que muitas vezes deparamos com o vento: se pode ir e voltar como a solidão, não raras vezes derruba, deixa as cicatrizes na alma e na vida…

Na casa de cada homem está muitas vezes a sua solidão. Pode andar com os outros, mas está só na medida em que a casa da sua solidão tanto existe no momento de perda como quase sempre no encontro consigo.

Tal como a solidão, o vento está em toda a parte, mas em troca traz outros tipos de ventos: os da solidariedade na CONDIÇÃO HUMANA, o despertar de consciências – subtemas tão caros à nossa grande Poeta Graça Pires –, num bouquet de várias histórias poéticas cujas flores despertam e dispersam aromas vários.

 

  O ESTILO

A sensibilidade poética define-se pelo estilo que caracteriza o autor. É indelevelmente a marca do seu Eu.

Hoje, estamos perante uma exímia amante da palavra, uma purista da linguagem no panorama literário actual, pelo seu perfeccionismo e depuração linguística.

A autenticidade do que escreve e o seu estilo, são o reflexo da personalidade da autora, caso contrário não se reconheceria como único, na coerência entre o Eu e a Obra.

A poesia é “o murmúrio daqueles que não ousam afirmar em voz alta as suas emoções íntimas, é um modo velado e até sofrido de comunicar, revelando-se muitas vezes o” grito” de quem não se conforma com o mundo em que participa. É o modo mais complexo e mais sintético da expressão do espírito humano. Ela veicula o sonho e é uma via para alcançar o inatingível, essencial à existência humana e tem a incumbência de dar resposta a situações concretas do quotidiano.

 E é o que encontramos nesta obra de Graça Pires. Ela estimula o trabalho da linguagem enquanto delapida o diamante que faz de cada poema.

E tanto a sua linguagem como a mensagem poética são ímpares.

 

CONTEÚDO

Na sua obra “A Solidão é como o Vento”, Graça Pires percorre a tragédia da vida do Homem, já que a vida é um palco onde os actos se desenrolam, com todos os cambiantes inerentes à solidão, na representação de cenas de agruras, incompreensão, saudades, solidão, no inconformismo silencioso com que a sociedade tantas vezes pactua, deixando-nos a amargura num “sarro de vergonha”.

Podemos considerar vários sub-temas abordados nesta belíssima obra e tão caros à nossa Poeta com as vertentes intrínsecas à condição humana nas mais variadas solidões:

a mulher e a tragicidade de sua vida/ a solidão conjugal / os sem abrigo, na fragilidade da sua condição / os “errantes” da vida que se deixam viver como “trevos rasteiros” / a migração e sua condição precária / mas também a natureza num todo harmonioso como refúgio no estar só.

A solidão, é acompanhada do tom silencioso na personagem de cada história-poema. Desde amores que um dia se cruzaram “com golpes migrantes e cada momento do olhar”, à mulher que nunca foi menina, “pelo trabalho que se instalou na orfandade das suas mãos”.

É no contexto do universo familiar que a mulher protagoniza muitas das histórias: ela é a canção abafada neste vento silencioso que se deixa ouvir, quer pelas marcas do tempo, quer pela recordação e dor contidas com “os limites da solidão a perfurar-lhes o peito”, quer no “canto que é um brado” onde se misturam “as roseiras bravas com a aspereza das mãos”.

De notar o amplo conhecimento de Graça Pires nos mais variados aspectos da realidade feminina, de tal forma autênticos, como se os experienciasse a todos e cada um, desde a mulher-mar, à mulher-campo.

No papel de mulher-mãe, deparamo-nos com a beleza de um belíssimo poema na dor e saudade extensivas às violetas brancas de tal forma irmanadas no mesmo sofrimento que “Desde então, emurchecem desde que as apanha”.

*

Todos sofremos de solidão. O homem é um universo povoado de solidões, qualquer que seja a sua viagem na vida.

A obra de Graça Pires disso é o exemplo no infortúnio de quem tem de deixar sua casa pela condição da sua idade ou outro, instalando-se a tristeza e incerteza somente amenizada pela companhia proibida até dos pássaros no parapeito da janela.

A terra e o mar constituem na maior parte das vezes o pano de fundo destas vivências onde Graça Pires nos envolve com a devoção pela Terra: mãe, origem e fim de alegrias e encantos, para depois, sem qualquer “azedume” voltar a ela porque dela fazemos parte.

 É frequente a autora fazer um enlace numa moldura com a natureza e o amor, numa espécie de fusão com a terra, sendo esta, quase sempre, a testemunha da plenitude amorosa.

A Terra é uma espécie de paixão de que a autora é feita, pó que nos faz e cinzela e para onde vamos e que longe de ter uma conotação lúgubre, como lugar onde um dia nos diluímos, esta é, para Graça Pires a fonte de tudo o que nos rodeia, com a beleza, alegria e encanto com que nos acorda ao assomar à janela nas manhãs claras, com o vibrante das folhas e flores até ao poente rosado das estações, no ciclo das árvores como da vida. Daí a citação que ela repete e onde se revê: 

“Não somos nós que regressamos à terra, é ela que um dia chega aos nossos corações." 'O Diário do Meu Pai', Jiro Taniguchi.

Está no homem esta atracção pela terra e o seu declínio (“quando o corpo se faz sombra”) no destino implacável de ser um dia parte do mesmo pó.

Canta-se o amor porque apesar de tudo e de todos os ventos, é condição da vida ser feliz – com o amor perenizado na felicidade mútua. E esta cumplicidade está projectada na admirável arte poética de Graça Pires onde todos os alvoroços da terra se fundem com o “TU”, no colorido do verde e no círculo das águas.

 Contempla-se a beleza indescritível da Natureza no enlace total, abrangente, entre a terra a água e a luz, e é nesta catarata de assombros donde virá o sobressalto da primavera numa intensa explosão de um hino à criação, numa vénia e assombro pela terra, fonte e origem de toda a beleza, cadinho de renascimento numa transformação incondicional para que a Renovação seja vida.

Longe da mágoa e desassombro pelo infortúnio da caducidade humana, ela exalta -a porque ela é seu princípio e o seu fim.

*

Tal como um aprendiz, Graça Pires toma cada palavra-pedra, entalha-a e o poema nasce na escultura perfeita “onde até lhe adivinhamos o lado mais íntimo”.

E como numa apoteose da alegria de permanecer aqui, ela termina com uma história-poema de amor sublime, onde o Eu Poético encontra a afinidade no mesmo cansaço e de “de cacto murcho em cada mão”, despe a solidão, e saciando a sede mata saudades do mar. Uma narrativa em que a solidão se encontra com outra solidão.

É neste contexto que se encaixam as histórias-poema de Graça Pires. Todas são gritos de irmandade, preocupação, solidariedade pelas mais variadas condições humanas. São ventos, solidões e agitações que se vão curando com brisas de solidariedade.

Assim é a Poesia da nossa grande autora Graça Pires, com Palavras que têm a leveza do vento e a força da tempestade (Vitor Hugo).     

 Manuela Barroso, poeta

Apresentação do livro, 21 março 2020





Li o teu novo livro, com muito prazer, do primeiro ao último verso.

Cabe-me felicitar-te por teres mantido neste trabalho aquele cunho pessoal que te identifica e confirma, mais uma vez, como a poeta da clarividência do pensamento e da fala. Em “A solidão é como o vento” somos postos perante imagens, “flashes” que trazem à pupila momentos, não apenas de vidas passadas, mas também de espaços que, dentro de nós, são como terrenos pantanosos que nos fazem temer o futuro. Um livro em que a Poesia, longe de ser apaziguamento, é matéria de reflexão, de tomada de consciência, de percepção do sobressalto em que nestes tempos conturbados, nos vemos viver.

Lídia Borges, poeta

E-mail, 29 abril 2020





Chegou a Braga uma solidão.

Uma outra solidão.

Esta, substancial, plena de respiração.

Não traz vírus, não é maléfica.

Contagia as mãos, segura os olhos.

Leve e limpa. Arejada.

Para que se respire a voz do canto.

Como quem a escreve.

Veio com o vento.

Vai um beijo, Graça Pires

 

Maria Isabel Fidalgo, poeta

E-mail, 1 maio, 2020







Graça Pires habituou-nos a uma rebeldia ao que é excessivo em poesia. As palavras articulam-se incisivas, profundas, cirurgicamente resgatadas.

Na sua escrita prevalece uma concepção romântica da vida captada nas suas raízes mais depuradas. Fala-nos de uma luz tecida entre as sombras da nostalgia, do amor ao mar, da espera, do incumprimento dos sonhos.

“A solidão é como o vento” não escapa à matriz da escrita a que Graça Pires já nos acostumou. É um livro peculiar, pois a autora conta-nos em verso pequenas histórias ou instantes de personagens que estão vivos dentro dela. Na leitura, vamos reconhecendo partes de nós e conhecendo partes dos outros.

São narrativas poéticas sensatamente construídas onde se movem figuras excluídas da luz numa sofreguidão de vida. Ensimesmadas, nelas não secam sonhos nem desejos. Ainda que silenciadas pela espera, as personagens aprisionadas dentro do tempo têm a loucura dos violinos na voz.

Ama as montanhas, ausentam-se do deserto, bebem com avidez águas primitivas.

Na incompletude dos segredos atiram medos ao vento e confundem-se com as gaivotas.

Graça Pires sabe bem colocar o sofrimento em palavras adornadas com tal tonalidade afectiva que esbatem a dor nelas contida.

 

Lília Tavares, poeta

E-mail, 1 maio 2020






«A solidão é como o vento» da amiga que muito estimo e admiro Graça Pires:

Depois de uma aventura no envio do livro citado, por entre caminhos e serras perdido, nos atrasos inconcebíveis dos CTT, o prazer de contemplar olhares ilustradores num trabalho bem desenhado transmite um sentir apelativo de querermos viver momentos desta lavra.

- “Conhecia todos os rios navegáveis

e a puríssima luz do silêncio

na solidão das montanhas”,

Graça Pires, uma autora já com alguns prémios literários, olha o vazio da folha de papel, e giza pensamentos ímpares onde flutua o amor de criar, e o timbre simples, mas intensamente belo de um navegar em desafios constantes e personalizados.

- “Naquela aldeia havia uma ribeira

onde vinham beber os homens e os lobos”.

Neste atraente mar criativo, Graça Pires define o lado natural do acontecer, e vibra em momentos e olhares reais, os desenhos simples de um viver natural.

- “O bordado da toalha

esconde enigmas

que só as mãos das mulheres

sabem decifrar no resgate

de um meticuloso nomadismo”.

À beira de um fim de semana (de cautelas) atrevam-se, e descubram este criar belo e provocador de reflexões únicas.

- “Olharam-se. E ela contou-lhe.

Contou-lhe das vezes que se afogou no chão

pensando que era água;

como rebentaram seus lábios pela sede interminável”.

Mais uma leitura, que me convidou a reler.

 

José Luís Outono, poeta

E-mail, junho 2020






Li este seu livro na última madrugada, e reencontrei em suas páginas a beleza e a originalidade que são intrínsecas à sua literatura. Há um ritmo muito peculiar nos seus versos, imagens de raro encanto, e gosto das alusões que faz, da presença do mar, das aves, das recordações, dos sentidos do corpo. É uma voz verdadeiramente feminina, tudo parece gestado num âmago maduro, sensível, onde as emoções são intensas e ao mesmo tempo sóbrias e refletidas.

Momentos como “… um poeta / sôfrego de silêncio”, “As gaivotas começaram a amar-lhe / a fragilidade das mãos.” “…e os seus gestos tão íntimos / da linguagem da pedra. “… margens que oferecem às aves / um ninho clandestino”, “…poemas / escritos em folhas de plátano…”, “…colheu no pão e na lã o aconchego certo.”, “… Os limites da solidão a perfurar-lhe o peito.”, “… Cinge, agora, nas mãos a luz de março…”, dentre vários outros, são pedras preciosas. E os poemas “Violetas de cheiro”, “Ela bordou ponto por ponto”, “Habitava aquele sitio por engano”, “Não quis falar do vinho”, “Aparecia depois das febres”, “Secaram as roseiras bravas”, “Não é ficção nem simbologia”, “Tinham uma bússola imaginada” chegam a machucar o coração, tamanho o encanto que externam

 

José d’Ângelo, poeta

E-mail, junho 2020








SOLIDÃO - A POESIA QUE DÓI

Há quem diga que a inspiração poética só pode vir da tristeza e da dor e que até o amor - a maior das alegrias - precisa de sofrimento para inspirar alguém. Talvez. Quando se está alegre, quando tudo corre bem, fica-se demasiado ocupado a viver a alegria...

A SOLIDÃO É COMO O VENTO (Poética Ed., 2020), o recente livro de GRAÇA PIRES, é sobre a solidão. A tristeza e a solidão vêm logo no poema inaugural:

'Doía-lhe na voz
a crueza das palavras
como se fosse um poeta
sôfrego de silêncio.
com olhos alagados de tristeza
perdia-se no espaço
mais íngreme das vagas
quando a sombra dos barcos
acostava no seu corpo
até se transformar em tempestade.
Num rodeio de vento sobre as dunas
achou o seu exílio.
as gaivotas começaram a amar-lhe
a fragilidade das mãos.' (p. 7)

A tristeza pode vir de um passado que deixa saudades ('Vacilante, enrolou o sorriso no passado / e chorou com saudades do sul' - p. 9), ou da crueldade da morte. Os exemplos não podiam ser mais duros. Na página 13, é a imagem lancinante da mãe que vai entregar o filho recém nascido:

'Grávida da noite
soube, desde logo,
que o filho não iria pertencer-lhe.
Adoptaram-no.
Antes de o entregar
ela lavou-o, demoradamente,
com as próprias lágrimas'

Na página 24, a imagem é a dos refugiados que caminham na incerteza e sob olhares desconfiados:

'Caminham por dentro do próprio desalento
com a memória exausta de pretéritos desejos.
Já não sabem quem são.
Dia após dia enfrentam a rejeição
com o áspero calamento do olhar.
Há golpes migrantes sulcando sua pele' (P. 249

'Poderão perdoar a nossa ausência?' (p. 56)

Depois, a brutalidade do trabalho infantil:

'Não frequentou a escola
no tempo de criança que lhe coube.
O trabalho instalou-se, desde sempre,
na orfandade de suas mãos.
[...]
Um cansaço antigo a transformou
em filha de si própria.' (p. 25)

E seguem-se muitas mais imagens. O drama dos náufragos do Mediterrâneo é recordado nos poemas das páginas 26 e 27, a ferir vergonhas e consciências. Na pág. 32, a alusão explícita à escravatura da prostituição. A violência doméstica na pág. 46. A humilhação dos sem-abrigo na pág. 52. A recordação da morte da mãe (pág. 34) ou até mesmo o risco de vida dos pescadores na angústia das mulheres que esperam na praia (pág. 39). Os versos de GRAÇA PIRES sobre estes casos são tão vivos como fotos de primeira página.

Não são leves as dores que inspiram esta escrita pesada. Os Poetas não ouvem as notícias, sentem-nas. A Poesia é uma manifestação da consciência. 'A Solidão é como o Vento' porque não é coisa que fique quieta. Move-se à nossa volta e, por mais contraditório que pareça, enquanto houver gente só, todos seremos, conscientes ou não, vítimas de alguma forma de solidão, que é também uma forma de morte. Ao publicar estes Poemas, GRAÇA PIRES exerceu um dos mais nobres ofícios da Poesia.

'O estranho retorno de um espanto' (pág. 58) conta o reencontro entre um menino levado para cidade e o seu gato que deixou a aldeia para ir ter com ele. Mas o que parece à primeira leitura ser o poema mais alegre do livro, talvez seja mais doloroso que os outros: o gato foi capaz, os homens não.

Carlos Campos

16 de junho de 2020






Um livro por semana

Depois de «Espaço livre com barcos», «Uma claridade que cega» e «Fui quase todas as mulheres de Modigliani», Graça Pires volta a publicar na Poética Edições, quase 30 anos depois do seu primeiro livro («Poemas») que recebeu o Prémio Revelação da Associação Portuguesa de Escritores. A partir de citações de Herberto Helder e Adonis, o livro de 61 páginas nasce do que podemos designar como poema-resumo: «Encontrou-o à entrada do deserto / absorto, como se conhecesse / todas as invocações do silêncio. / Lia-se nos olhos dele a atracção pelo vento / pelas areias, pelo espaço imenso, pela solidão».

A solidão do título do livro pode surgir expressa no masculino («Sobre os seus ombros apenas a noite / sempre tão húmida / sempre tão humilhante») mas também no feminino: («Grávida da noite / soube desde logo / que o filho não iria pertencer-lhe. / Adoptaram-no. / Antes de o entregar / ela lavou-o demoradamente / com as próprias lágrimas.»

Os poemas são registos qualificados daquilo a que chamamos «vida»: «A superstição é ignorância / diziam-lhe os amigos / Ela enumerava os medos / que lhe habitavam os gestos: / espelhos quebrados / facas cruzadas, gatos pretos / uma progressão de alarmes / abrigados ma memória / pressentindo catástrofes e azares”. Ou ainda do que podemos chamar amor: «Rasgou o retrato em pedaços. / Enviara-lho uma amiga / do grupo do ginásio: ela ao lado dele. / Não gostou. / Ainda tinha no sangue / a vertigem solar / do corpo que amara.» Umas vezes o poema fecha-se no «eu»: «Não frequentou a escola / no tempo de criança que lhe coube. / O trabalho instalou-se desde sempre / na orfandade de suas mãos». Outras vezes abre-se ao grupo, ao «nós»: «O jantar estava excelente / disseram seus amigos / voltando a encher os copos. / Um rumor de vindimas / propagou-se pela sala».

Cada poema faz a crónica de uma solidão. Seja na página 42 «Elas retêm múltiplas memórias / que definem a vida que lhes coube» ou seja na página 47 «Procurou a cicatriz dos dias, o risco da vida / e da morte, o choro dos filhos nas horas aflitas». Mas também a confusão entre a Arte e a Vida na página 50: «E quanta mágoa no olhar do avô / quando o neto lhe disse em arremesso: / mas isto não é um cavalo a sério como eu queria».

José do Carmo Francisco, poeta

“Gazeta das Caldas, 20 julho 2020