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quarta-feira, 6 de abril de 2022

OUTONO: LUGAR FRÁFIL

 



Outono: lugar frágil. Fânzeres: Junta de Freguesia, 1993



Outono, metáfora de solidão

A escrita poética de Graça Pires realiza-se no fôlego e na respiração larga do verso que se alonga até ser quase prosa, até ser um pleno dizer da lembrança do sonho e dos sentidos.

Estamos perante uma poesia que opera com os materiais da memória e do afecto, com a geografia das coisas sentidas, amadas e sofridas e que incessantemente reflecte sobre a grande impossibilidade que é o processo da busca da felicidade. É a consciência dessa impossibilidade que conduz à inquietude, ao desassossego, à atitude interrogativa: “Já não sou o recanto do meu sossego, nem o eco da inocência que não tive. Encho os olhos de mar e abro, de par em par, os meus sentidos, para deixar passar todos os barcos perdidos”.

Confessional, esta escrita elege como espaço de representação as paisagens marítimas, as dunas, o fragor das ondas, a imensidão desafiadora das águas. O mar é, de resto, mais do que espaço de representação, um modo de metaforizar a solidão e o assombro perante as dúvidas e perplexidades que o destino comporta.

“Outono: lugar frágil” é um livro sobre a inocência perdida, sobre as cicatrizes da ausência e da distância, sobre as mágoas que o tempo interiorizou. E embora a autora diga “os sonhos deixaram-me esta secura de doer”, reconhece que só o exercício do sonho, enquanto operação de magia e de terno retorno, pode representar resgate e consolo.

Os fragmentos de texto em itálico são uma voz que se insinua dentro de outra voz, como se um monólogo se desdobrasse ao ponto de dramatizar, num esforço de alteridade, o que é um dizer único, pessoalíssimo e intransmissível.

Graça Pires faz da escrita poética o aríete de som e de afecto capaz de trespassar o “muro de barro, a rodear a rodear a tranquilidade dos meus olhos”. Franquear essa porta, vencer essa barreira é sempre um acto de descoberta e de fascínio que pode conduzir a novas dores, a novos desamparos, a repetidos momentos de desconsolo. Mas o poeta é isso mesmo: um persistente desafiador dos fogos que cabem dentro do fogo, dos lumes que conduzem ao pesadelo, das raivas e dos medos que desencadeiam o desassossego. É essa proximidade do abismo, essa tentação dos limites, essa sofreguidão do absoluto, essa sede de infinito que define a própria condição poética.

O outono em que esta poesia se escreve e se encena, mais do que tempo bem delimitado no calendário das lembranças, é um lugar confessional, um casulo de intimidade em que, sussurrante e nostálgica a voz da autora diz: “É outono e o coração pressente que a felicidade não existe, que é tudo inútil como os beijos adiados”.

Mas tal como António Ramos Rosa no título de um dos seus mais belos livros, Graça Pires sabe que não pode adiar o coração porque, liberta “do véu dos medos”, descobrirá “o nome de todos os riscos que o amor contém”.

Buscando raiz e linhagem na grande tradição do lirismo de amor ocidental, a autora garante e modernidade deste longo poema de respiração ampla recorrendo à solução do verso discursivo e extenso, da frase que se alonga até ser prosa, até ser a suprema ficção íntima que o sentir poético constantemente põe em cena.

A vocação do verso, como salientava T. S. Eliot, é buscar essa respiração larga e livre que o torna gémeo da ficção e do teatro. Aqui estamos perante um teatro dos sentidos e das íntimas partilhas, das imagens fragmentadas, dos aromas e das vozes que a memória dos afectos arrumou nos compartimentos do olhar e da lembrança.

“Aquém de mim acendem-se todos os mares e, na voz dos marinheiros, pergunto ao sol se pode ser eterna a sombra de um barco” – escreve Graça Pires. O outono é, ao mesmo tempo estação e lugar de todos os encontros-desencontros que fazem o mistério da poesia. É um lugar e um tempo breve e frágil, umas vezes cantante outras vezes fustigado por antigos e torturados silêncios, no qual se acoitam os pressentimentos e os temores ancestrais, os dramas secretos e as angústias primordiais. No tecer dessa teia de lembranças e afectos que se entrelaçam é que esta poesia encontra a sua feminilidade, o cristal brando dos prodígios descobertos.

“Outono: lugar frágil! É a reflexão sobre o acto mágico que faz com que o botão de rosa de que falava Nietzsche no seu “Zaratustra” se vergue até à eternidade sob o peso quase imperceptível de uma gota de orvalho.

Graça Pires sabe que “nenhuma linguagem explica o devir das paixões”. Por isso a sua escrita é frequentemente uma viagem até ao âmago do silêncio, não para calar o que sente, ama e sofre, mas para encontrar a voz puríssima e primordial que lhe permita exprimir o inexprimível. E é nessa viagem e no retorno dela, quando o há, que se joga sempre o destino dos poetas.

 

José Jorge Letria, poeta

Na badana do livro, 18 junho 1991