Outono: lugar frágil. Fânzeres: Junta de Freguesia, 1993
Outono, metáfora de solidão
A escrita poética de Graça
Pires realiza-se no fôlego e na respiração larga do verso que se alonga até ser
quase prosa, até ser um pleno dizer da lembrança do sonho e dos sentidos.
Estamos
perante uma poesia que opera com os materiais da memória e do afecto, com a
geografia das coisas sentidas, amadas e sofridas e que incessantemente reflecte
sobre a grande impossibilidade que é o processo da busca da felicidade. É a
consciência dessa impossibilidade que conduz à inquietude, ao desassossego, à
atitude interrogativa: “Já não sou o recanto do meu sossego, nem o eco da
inocência que não tive. Encho os olhos de mar e abro, de par em par, os meus
sentidos, para deixar passar todos os barcos perdidos”.
Confessional, esta escrita
elege como espaço de representação as paisagens marítimas, as dunas, o fragor
das ondas, a imensidão desafiadora das águas. O mar é, de resto, mais do que
espaço de representação, um modo de metaforizar a solidão e o assombro perante
as dúvidas e perplexidades que o destino comporta.
“Outono: lugar frágil” é um
livro sobre a inocência perdida, sobre as cicatrizes da ausência e da
distância, sobre as mágoas que o tempo interiorizou. E embora a autora diga “os
sonhos deixaram-me esta secura de doer”, reconhece que só o exercício do sonho,
enquanto operação de magia e de terno retorno, pode representar resgate e
consolo.
Os fragmentos de texto em
itálico são uma voz que se insinua dentro de outra voz, como se um monólogo se
desdobrasse ao ponto de dramatizar, num esforço de alteridade, o que é um dizer
único, pessoalíssimo e intransmissível.
Graça Pires faz da escrita
poética o aríete de som e de afecto capaz de trespassar o “muro de barro, a
rodear a rodear a tranquilidade dos meus olhos”. Franquear essa porta, vencer
essa barreira é sempre um acto de descoberta e de fascínio que pode conduzir a
novas dores, a novos desamparos, a repetidos momentos de desconsolo. Mas o
poeta é isso mesmo: um persistente desafiador dos fogos que cabem dentro do
fogo, dos lumes que conduzem ao pesadelo, das raivas e dos medos que
desencadeiam o desassossego. É essa proximidade do abismo, essa tentação dos
limites, essa sofreguidão do absoluto, essa sede de infinito que define a
própria condição poética.
O outono em que esta poesia
se escreve e se encena, mais do que tempo bem delimitado no calendário das
lembranças, é um lugar confessional, um casulo de intimidade em que,
sussurrante e nostálgica a voz da autora diz: “É outono e o coração pressente
que a felicidade não existe, que é tudo inútil como os beijos adiados”.
Mas tal como António Ramos
Rosa no título de um dos seus mais belos livros, Graça Pires sabe que não pode
adiar o coração porque, liberta “do véu dos medos”, descobrirá “o nome de todos
os riscos que o amor contém”.
Buscando raiz e linhagem na
grande tradição do lirismo de amor ocidental, a autora garante e modernidade
deste longo poema de respiração ampla recorrendo à solução do verso discursivo
e extenso, da frase que se alonga até ser prosa, até ser a suprema ficção
íntima que o sentir poético constantemente põe em cena.
A vocação do verso, como
salientava T. S. Eliot, é buscar essa respiração larga e livre que o torna
gémeo da ficção e do teatro. Aqui estamos perante um teatro dos sentidos e das
íntimas partilhas, das imagens fragmentadas, dos aromas e das vozes que a
memória dos afectos arrumou nos compartimentos do olhar e da lembrança.
“Aquém de mim acendem-se
todos os mares e, na voz dos marinheiros, pergunto ao sol se pode ser eterna a
sombra de um barco” – escreve Graça Pires. O outono é, ao mesmo tempo estação e
lugar de todos os encontros-desencontros que fazem o mistério da poesia. É um
lugar e um tempo breve e frágil, umas vezes cantante outras vezes fustigado por
antigos e torturados silêncios, no qual se acoitam os pressentimentos e os
temores ancestrais, os dramas secretos e as angústias primordiais. No tecer
dessa teia de lembranças e afectos que se entrelaçam é que esta poesia encontra
a sua feminilidade, o cristal brando dos prodígios descobertos.
“Outono: lugar frágil! É a
reflexão sobre o acto mágico que faz com que o botão de rosa de que falava
Nietzsche no seu “Zaratustra” se vergue até à eternidade sob o peso quase
imperceptível de uma gota de orvalho.
Graça Pires sabe que
“nenhuma linguagem explica o devir das paixões”. Por isso a sua escrita é
frequentemente uma viagem até ao âmago do silêncio, não para calar o que sente,
ama e sofre, mas para encontrar a voz puríssima e primordial que lhe permita
exprimir o inexprimível. E é nessa viagem e no retorno dela, quando o há, que
se joga sempre o destino dos poetas.
José Jorge Letria, poeta
Na badana do livro, 18 junho
1991