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quinta-feira, 7 de abril de 2022

REINO DA LUA

 


Reino da Lua. Lisboa: Escritor, 2002


O projecto-base deste sexto livro de Graça Pires pode estar no poema 4: «Quero um poema, ainda que imperfeito, mas que fale de amor. / Que diga o corpo inteiro, antevendo o júbilo das mãos. / Que diga a boca adjacente à boca e os olhos em festa e a lua ardendo atónita nas veias. / Um poema onde doa a ausência dos abraços, onde se redima a mendicidade do olhar.» Para alcançar esse objectivo o poeta sabe que tem que parar o tempo: «Pára todos os relógios, para escutar a respiração dos dias.» Isto se por «parar o tempo» entendermos o «não avançar», mas sim o recuar numa espécie de viagem à memória: «Não me lembro da cor dos meus olhos quando, em menina, me comovia com heróis imaginários. / Mas, recordo-me bem, eu fui a princesa do conto de fadas da minha infância. / Mas depois perdi a inocência, por descuido, e deixei de ser princesa. / Blondina era o seu nome.» Mas essa viagem é também descoberta de que mesmo a infância (paraíso perdido) não é um lugar estático e sobre ele cai a erosão do tempo: «O meu retrato de criança vai-se cobrindo de pó. Nada me pertence salvo a memória de trilhos luminosos na encosta da noite.»

O que o poema diz é que o amor é, não só a memória do encontro no passado («Houve um ano em que as andorinhas se esqueceram de partir») mas também a memória antecipada de um encontro no futuro: «Hoje, teço no teu peito, indizíveis naufrágios: não para morrer, mas para ser salva de pretéritas e futuras solidões.»

Mas não há nesta viagem poética de Graça Pires apenas a voz do «eu». Seja a lembrar Bertolt Brecht («Com a noite entrincheirada nos dedos, engatilhou as letras contra os lábios, até acender, preso ao coração, o lume das palavras.») seja para lembrar os 25 anos do 25 de Abril no desejo de uma pátria melhor. «Aqui onde o coração reclama uma pátria melhor / volto ao lugar das palavras que nunca calei / por saber que o silêncio se articula na errância da voz / e que nele cabe a solidária multidão que ama por inteiro a liberdade.»

No difícil trânsito entre a certeza da morte e o precário do amor, o poeta sabe que só uma arte poética forte o poderá resgatar do esquecimento que o ameaça: «Sem qualquer pretexto, transcrevo linha a linha / o perfil emotivo desta cidade, onde piso todos os caminhos procurando o rio e o corpo me estremece à proximidade da água. /, «como se escavasse no coração a promessa de uma pátria planto, entre as unhas, heras de palavras que constroem a morfologia dos nomes que amei.»

 

José do Carmo Francisco, poeta

“Notícias da Amadora”, 24 de outubro de 2002

e “Diário Insular”, 20 março 2003







Negociando a noite

Soubéssemos ao menos a matéria de que é feito o que em nós não é matéria

David Mourão-Ferreira

 

Já se sabe que a noite é o melhor pretexto. A noite serve para todos os crimes, para todas as violências, para todas as dádivas e permutas, incluindo o amor. A noite presta-se ao traficar pantanoso, ao medo clandestino, à febre dos afectos, incluindo o amor. À noite confundem-se mais as palavras e os sorrisos e, quando ocorrem pressurosas as recordações do sol da sua sede, são múltiplas as formas de colocar as mãos e os lábios. Durante a noite os segredos despertam, os mistérios percorrem as volutas de um labirinto inconsumível, e não se pode negar o encanto que, de entre todos, desaba no poema. Porque é pela noite, muitas vezes, que a lua faz incidir nas palavras o mel que as transfigura, o suor que as apresa, o calor que as induz ao risco.

Quando falamos da noite não sabemos bem do que falamos, não há definição concreta com tão ilimitado número de atributos abstractos. Pouco importa, não é defini-la o que nos move: é descobrir no coração do verbo o trilho para o seu cometimento, é encontrar na mão direita, onde as veias engrossam / como rios, […] todos os enredos / que se revezam: inevitáveis, aleatórios, urgentes.

Estamos a referir-nos desde o início ao último livro de Graça Pires, “Reino da Lua”, Estamos, num exercício profundo e consolador, a penetrar dentro desta noite primordial onde a memória e o corpo se cruzam e completam, onde a infância corta o outono a gumes de silêncio e de tristeza. Estamos, se quiserem, a partilhar a revelação de um céu nocturno onde um barco acena e as mãos acolitam.

Não pretendemos desmontar o poema consonante nem refazer as partes, Graça Pires não necessita de ajuda, ela própria, com um vigor exemplar, único sobrevivente de um enredo imaginário que se crê, gera o concluso e expõe os fragmentos. Para nós sobra, ao lê-la, a emoção, por vezes a comoção: não é fácil nem inócuo, nem livre de perigos profundos e abismos reais, o negócio com a noite, sobretudo de o luar – que o há sempre, oculto que seja dentro de punhos cerrados ou de olhos fendidos por um lume de barro, a par do sol – é um luar de outono.

Porque o tempo comanda a noite e dela faz esta noite e não outra, uma nova, uma noite de todo transfigurada, porque o tempo soma os afectos e amotinações dentro das nossas rugas e a lua afunda a cordilheira dos afectos – bem sabemos como a cada momento se cumpre o risco de escorregar um pé sobre uma lágrima inerme, uma dor limosa, um grão de nostalgia. É agora, sabe-o Graça Pires, um musgo espesso à beira do caminho, junto às ravinas de dias e mais dias cheios de cantos e ciladas, nada como dantes, é agora preciso calcular os passos e tentear o balanço do corpo, nada como outrora, nada como nesse ano: Houve um ano em que as andorinhas se esqueceram de partir. […] Agora nenhum horário / retarda o êxodo das últimas andorinhas em direcção ao sol.

Restam perguntas, nem sempre formuladas nos versos, mais vezes adivinhadas num tom entre o mel e a agonia: é neste território perturbador que nos prende a poetisa, ao ponto de nos sentirmos, desde muito cedo, como filhos dessa pátria onde o silêncio se confunde com a noite, onde um verão / inclinado sobre o corpo, incendeia de luzes as sombras / que me rondam as mãos.

E há depois (ou antes) a criança que foi Graça Pires. Não se acredite quando diz Depois perdi a inocência, por descuido: não é verdade, a poesia de “Reino da Lua” desmente este verso – atrevo-me a dizer que ela é, genuinamente, de uma matéria pura, qual não sabemos, mas imaculada, feita ao sabor da palavra breve e sem mancha nem precaução. Quando a poetiza diz O meu retrato de criança vai-se cobrindo de pó refere-se exactamente a isso: ao retrato. E quando diz trago, na boca, um imenso / deserto traçado a sede, corrige logo com os belíssimos versos, fruto precioso da maturidade poética nascida de uma sensibilidade imanente: Sei, hoje, onde o mar adormece descuidado: tão próximo / da sombra dos navios, que torna irremediável o júbilo das ondas.

Falemos, então do amor, já que não há mais nada / a fazer senão amar. Apesar de tudo. Apesar de nada. Falemos desse cheiro a rosmaninho à beira dos dedos / e [de] um pássaro desvairado por dentro do peito.

Falemos dessa distância das mãos que se anula e da linguagem do afecto na curva dos braços. Falemos nesse poema, ainda que imperfeito / mas que fale de amor. / Que diga o corpo inteiro, antevendo o júbilo das mãos. / que diga a boca adjacente à boca, e os olhos em festa.

Sem o verão cheio de sol, sem os extremos consentidos de um calor em excesso, sem o bruto desarmar das guardas e o fragor insano das batalhas. Mas habilmente cheio de sabedoria, traficando com o outono, contrabandeando o tempo de véspera, negociando a noite: e a lua / ardendo atónita nas veias. Um comércio com a noite que é partilha de outras noites e com elas se completa: Quero sentir a tua noite a rondar-me o sangue / quando dizemos: “é tempo de acender o fogo”; porque há a nossa noite e a noite do outro e quando as noites se olham na transparência dos olhos tudo se transfigura, a tal ponto que a poetisa pode afirmar que Um verão / inclinado sobre o corpo, incendeia de luas, as sombras / que me rondam as mãos.

E à medida que o pó vai cobrindo esse retrato de criança, mais o amor se extrema e dulcifica, e a poetisa pressente, quando o mar se enfurece […] uma […] alegria a latejar no corpo. À medida que essa cumplicidade com o tempo se afirma e persiste, a poetisa fixa no calendário o instante de ser jovem, e a pergunta apagada exangue, quase fere a sua língua: Diz-me, meu amor, onde se cruza a tua sombra com a minha.

Talvez pareça o desalento rondando os portões do outono, açulando os cães ao fundo deste quintal tardio em que olhamos os frutos sem a gula voraz de uma canção de maio. Talvez pareça o soçobrar das forças e o exaurir das esperas, o cansaço do gesto em assumir essa violenta cor da solidão. Desiludamo-nos. Graça Pires emenda de imediato com estigmas da infância no interior das mãos […] Há pátrias onde as mãos se tornam perfil de pássaros / definindo o fraterno voo do silêncio. É esse o meu rumo, / rente a um lugar conivente com as manhãs que redimem / as noites sem afecto.

Chega-se assim à forma indisciplinada de não resignação: nunca o medo ao silêncio e à solidão, antes a busca deles – terra e ar de um país de utopias. Traficando com a noite, de preferência. Graça Pires negociando a noite: Houve, porém, uma noite em que disseste “meu amor” / e o coração alvoroçou-se-me no peito.

São memórias, é o comércio antes do sol. O vício das nossas unhas crescendo sempre e o rumor das nossas rugas fervilhando no sangue. As difíceis negociações no “Reino da Lua”. Percorrem-se as horas e os dias em busca do repouso, de um mítico instante sem sobressalto outro que o de uma pele aflorando a nossa pele, de uma boca refazendo o nosso fôlego, de uns dedos descobrindo o sopro e o cântico dos poros.

Faz-se a travessia que refere a poetisa Graça Pires e, sem darmos por isso, inopinadamente, à revelia dos sentidos e dos afectos, achamo-nos dentro da nossa noite em frente da noite do outro. E, consentida que se torna a catástrofe anunciada, resta-nos ainda o projecto de outra nova transcendência, a obstinação no percurso dentro de um mar adverso: Hoje teço no teu peito indizíveis naufrágios: não para morrer / Mas para ser salva de pretéritas e futuras solidões.

Poesia de coragem, pois. E de aposta consumada contra os limites impostos. Contra toda a lógica, apesar “da noite que se lhe enrosca na cintura e lhe move um cerco”. Poesia de autenticidade, de ser-se o que se sente ser, de estar onde se sente estar; poesia de fidelidade ao Eu, de afirmação: hei-de sobreviver ao meu próprio caos.

De onde vem esta força, esta certeza? De onde chega sem o ecoar dos passos nas vielas escuras, o dom de resistir ao poema submerso? É simples, está na reinvenção desse país longínquo de uma utopia transcendente que se relata no poema 15 de “Reino da Lua”: Existe, sim, um continente soalheiro, ao alcance / do mais íntimo pressentimento da vida, onde, em asas / de gaivota, nascem os homens reconciliados com a morte.

É tão grande a força da Palavra poética! Tão lenta, à sua sombra lustral, a progressão da cinza, do escorbuto, dos vermes, e tão consolador o desespero dos ossos ávidos pelo exílio sob a terra! É que esta poesia de Graça Pires suspende o tempo, eis a verdade, basta ler. Já não como era outrora quando as mulheres, no circular gesto de disfarçar desejos / com astúcia […] esquecem […] os sonhos intranquilos e passam a levantar-se antes do sol / nascer: para preparar o inverno, pensa toda a gente.

É tão incomensurável o dom da palavra poética! Ata-nos esta poesia como se nada pudesse alterar o percurso de uma paixão. De vez em quando o rigor da estação apruma-se, a visibilidade esmorece ante os círculos concêntricos dos pássaros no céu das insónias – some-se a força, os braços caem, a testa tomba sobre os joelhos, a poetisa olha e sente: O Outono entra-me pela casa, e a pergunta magoa-lhe a penumbra do rosto: onde estão os pássaros de olhos aguados, que sobrevoavam / ainda há pouco, as minhas mãos?

E logo adiante revela o seu temor: Tão inesperado como um assombro, um coro de tragédia / urde, em meu peito, a travessia da noite.

Mas o caos recompõe-se, a ameaça de naufrágio dispersa-se com o espargir dos cabelos. Basta que a menina volte de novo / e se reparta em íntimos silêncios. A poetisa reencontra o outro, os outros, reencontrando-se, os passos alcançam a “direcção do vento” e preparam-se para prosseguir: Agora, nas margens da lua cheia, há uma mulher, / em cujo rosto se passeia o lado mais claro da noite.

Vimos falando de um livro raro: há poucos livros assim. A arte de falar de nós evitando os escolhos que à poesia recusam, normalmente, o fascínio e o dom da assombração. Vimos falando de um livro impossível de calar, ou de remeter ao esquecimento. Vimos falando de Graça Pires, rainha “solar” de “Reino da Lua”, pátria onde as acácias incendiaram as ruas, roteiro de uma cronologia, voz de percurso melodioso.

Graça Pires: agente de uma alquimia subtil, de um concerto harmónico gerido pelo coração, demiurga de uma humanidade celebrada, verbo de uma causa cheia de combates, travessias, de horas plenas, de noites inconsúteis, imaculadas e fecundas: Repara como nos emocionamos com a vida / e, em segredo, nos olhamos sem qualquer pudor. / Repara.

Repara.

 

Nuno de Figueiredo, poeta

“Entre Letras: Livros e Escritores”, maio de 2003







 

Em raros momentos senti a alma latejar tão intensamente como agora, ao ler o belo livro que tenho nas mãos: REINO DA LUA, do poeta portuguesa Graça Pires. A poesia de [Graça] Pires, verdadeiramente, encarna-se na graça poética do instante, iluminação súbita a nos prodigalizar os horizontes, a derrubar os muros da insensibilidade, palavra a pulsar juntamente com o coração do leitor, a tal ponto que não sabemos se, ao lermos a sua poesia, o sussurrar de cada sílaba é o próprio fluir da leitura ou pulsar de nossas veias… Graça Pires ressuscita em seus leitores a melancolia da infância, os tristes quintais do nosso passado, os resíduos invisíveis de nossos eus antigos:


Encosto a cara às quimeras da infância,
para exorcizar a inocência perdida
e rodopiar, sobre os sonhos, a valsa
solitária da criança que fui, 
enquanto as minhas mão, nativas
de sol, eram aves de múltiplas cores.
Paro todos os relógios, para escutar 
a respiração dos dias.
E como um actor que se esgota na personagem, 
rasgo o cenário e danço, como um louco, 
em redor dos malogros
entrelaçados nos meus pulsos. 
Tenho, em volta do pescoço,
uma lua transparente 
que me enrouquece a voz.

 

Esta poesia banha-se no noturno, nas profundezas abissais do luar, a fim de resgatar vivências espirituais de plenitude. É na noite que Graça encontra sua manhã, sua palavra de leveza e densidade. Das trevas, essa poeta tece seu encanto solarizado, rendilhado de iluminuras, de alegrias súbitas. Em cada poema, o leitor descobre uma epifania, uma revelação.

 

No encalço de pequenas alegrias, 

faço do corpo um barco.

Amarro-o nas margens do silêncio 

e divago, com urgência,

por dentro de um impulso incontrolado.

 

Tomo em meus olhos a transparência dos teus.

Quero sentir a tua noite a rondar-me o sangue,

quando dizemos: é tempo de acender o fogo.

Quero conhecer a excessiva inclinação da luz,

quando, desarmado, o coração, 

aguarda que aconteça

aquele fascínio de garotos, 

à espera da festa prometida.

 

Esses garotos somos nós, seus leitores, sempre na iminência, a cada palavra de Graça, de uma festa múltipla, adolescente. A magia de Graça reside na sutil combinação lexical, dulcíssima em vários momentos, combinação essa integrada a uma emoção sutil, arrebatada, sentir delicado a se espraiar em uma musicalidade de finas notas e tons. A grande poesia é, antes de tudo, um mergulho no mais profundo que há no homem, no mais pungente que existe no coração da vida. E Graça não teme esse tombo nas profundezas da existência, queda típica que caracteriza a pulsão vital dos poetas místicos, videntes, mágicos. A memória irriga as palavras da poeta, abrindo um universo de sutilezas, biografia universal do humano:

 

O meu retrato de criança vai-se cobrindo de pó.

Nada me pertence, salvo a memória de trilhos

luminosos nas encostas da noite. A lua entra-me,

inteira, na garganta, rompe-me o peito deles a lés

e sublinha, a cores, uma errância inscrita no destino.

 

Quem foi que ousou apagar, de meus pés, os traços

de impossíveis aventuras, e me deixou, na pele,

tamanha rebeldia? Enterro os dedos em dunas

de areias assombradas que me sufocam a alma,

até à dor, porque trago, na boca, um imenso

deserto traçado a sede.

 

Essa alquimia verbal faz-nos lembrar, em alguns instantes, das imagens belas de António Ramos Rosa, poeta imenso, ainda muito pouco conhecido no Brasil. Graça Pires, ao nos revelar a dor, o sofrimento, com sua palavra de sopros e levezas, mostra-nos também o sortilégio da poesia: a palavra lírica leva-nos à dor, mas a uma dor em estado de alegria. A poesia intensifica todas as nossas sensações, a nossa sensibilidade ante o mundo, a tal ponto, que o real nos arde, nos dardeja, nos fere. Todavia, tal sofrimento vem sempre embalado pelo bálsamo da palavra poética, cântico a transmutar a cicatriz, em bailado, em voo. Para encerrar esse breve passeio por esse universo de alumbramentos, encerro esse breve comentário como esse poema cheio de Graça:

 

Houve um ano em que as andorinhas se esqueceram de partir.

Comovidos, os deuses adiaram o começo do inverno.

Nesse ano, uma mulher e um homem se fundiram em barco

feito ao vento e partiram sem rumo e sem dar notícias:

como se fora de cinza o nome que usaram.

Agora, nenhum horário retarda o êxodo

das últimas andorinhas em direcção ao sol.


Diz-me, meu amor, onde se cruza a tua sombra com a minha.

Diz-me em que crónica de espanto te tornaste o marinheiro

que debandou ao encontro do deslumbramento das manhãs.

 

E ao encontro das manhãs também seguimos nós, por essa vereda de pura poesia.

 

Alexandre Bonafim, poeta e professor de literatura portuguesa

Blogue “Arqueologia dois Acasos”, 25 agosto 2006