O Silêncio: lugar habitado. Fafe: Labirinto, 2009
Caros amigos,
Razões de ordem profissional impedem-me de estar entre vós, como seria meu
desejo e do meu agrado, neste dia em que a memória é celebrada através da evocação
de um poeta, um dos maiores, que, quis o acaso, nasceu nosso conterrâneo. E que
melhor maneira de evocar um poeta do que conceder-lhe a dignidade de o seu nome
poder tornar-se uma porta de difusão para outras poesias? Julgo ter sido essa a
intenção ao instituir-se o Prémio Nacional Poeta Ruy Belo, o qual tive a honra
de servir ao aceitar o convite para integrar o júri da primeira edição.
Sinto-me, pois, no dever de partilhar convosco algumas palavras acerca do livro
premiado.
Porque não pretendo maçar-vos com análises fastidiosas, limitar-me-ei a
enunciar com brevidade alguns aspectos que me levaram a preferir O silêncio:
lugar habitado a outras obras concorrentes. O primeiro desses aspectos é,
provavelmente, o mais simples de se compreender. Um bom livro de poesia tem de
ser um livro bem escrito, isto é, um livro que não só respeite a língua que lhe
serve de suporte, mas que tente oferecer a essa mesma língua uma tonalidade
cativante. Neste caso, o que cativa é a sobriedade do discurso.
Não é necessário ser-se demasiado palavroso para que muito
seja dito. A boa poesia, discurso sintético por excelência, não se faz de
muitas palavras. Palavras a mais dão cabo dos poemas.
São raríssimos os poetas, e Ruy Belo foi um deles, que conseguem manter num
poema longo a mesma intensidade que mais facilmente se obtém num poema breve.
Curiosamente, o leitor reparará que O silêncio: lugar habitado pode ser lido de
duas maneiras: ou como um conjunto de poemas breves ou como um longo poema
subdividido em vários momentos. A ausência de índice no livro, assim como a
ausência de títulos, oferecem ao conjunto uma consistência que acaba reforçada
por um sentimento de ligação e equilíbrio entre cada um dos momentos. E este
foi um segundo aspecto que muito me agradou no livro em causa. Temos, deste
modo, um livro tão bem escrito quanto bem organizado.
A organização final do conjunto podia ser posta em causa se nele verificássemos
algum tipo de dispersão temática. Não é isso que acontece. O último aspecto que
pretendo salientar no livro vencedor da primeira edição do Prémio Nacional
Poeta Ruy Belo é, pois, a unicidade temática que faz deste um livro singular até
por não ceder a alguns tiques mais reconhecíveis na poesia actual. Quero dizer
que sendo um livro onde o quotidiano está presente, não é um livro que se
esgote no relato do quotidiano. Sendo um livro onde a relação do ser humano com
o mundo natural está presente, não é um livro que se deixe embalar por um
deslumbramento ingénuo, sentimentalista e elogioso dessa mesma relação. Sendo
um livro onde o erotismo está presente, não é um livro assaltado pela lamechice
que contamina muita da chamada lírica amorosa. Sendo um livro, por fim, belo,
não deixa também de ser terrível nos seus momentos mais claramente melancólicos
e elegíacos.
Quem vier a ler com atenção este livro, perceberá quem são os habitantes do
silêncio. Esse silêncio que é ao mesmo tempo ausência e memória habitada pelos
que a morte nos usurpou. Permitam-me, então, que termine felicitando a poeta
Graça Pires pelo excelente livro que nos colocou em mãos. Estamos todos de
parabéns quando no mundo, lugar cada vez mais perigoso, a poesia acontece e nos
ajuda a respirar.
A todos o meu agradecimento e os mais sinceros cumprimentos,
Henrique Manuel Bento Fialho,
escritor
Nota: este texto foi lido no passado dia 27, durante a sessão comemorativa do
77º aniversário do poeta Ruy Belo, aquando da apresentação de O silêncio: lugar
habitado, de Graça Pires, livro vencedor da primeira edição do Prémio Nacional
Poeta Ruy Belo. Um poema do livro:
Era um buscador de
pérolas.
Atravessou a mais densa
escuridão
para abrigar na expressão do rosto
uma luz absoluta. Ficou cego.
Agora há uma ferocidade
suspensa nos seus olhos.
E dorme pelas praias
onde só as mulheres
vestidas de negro
escutam o grito das areias.
Graça Pires, in O silêncio: lugar habitado,
Vila Nova de Gaia, 23
novembro 2009
Cara Amiga:
A sua poesia - a deste seu
“O silêncio: lugar habitado” – ostenta esta virtude: oferece-se natural, sem a
preocupação de o parecer, de o ser. Quero dizer, escreve sem esforço e sem
constrangimento, como as águas da nascente, isto é: com a “inicial pureza das
fontes”. Não como aquela “água represada do olhar” de que fala o poema da p.
17, porque essa precisa do silêncio para se manifestar, ou, talvez melhor, para
ser ela mesma.
O tom levemente narrativo
não perturba a cintilação do poema, sustentado pelo avanço de uma ou outra
metáfora, geralmente retirada do mundo vegetal ou, simplesmente natural.
Bem-haja pela oferta. E
aceite um cordial abraço do
Albano
Martins, escritor
Carta manuscrita
O
jogo imagético faz de O Silêncio: Lugar
Habitado, de Graça Pires, um
trabalho assombroso, quer pela subtileza das
metáforas que desenvolvem a relação do Eu com o Outro (processo lírico já intensificado a. C., por exemplo na poesia
de Safo), quer pelo apuro estético vocacionado para a síntese libertadora. Desta obra vencedora do Prémio Ruy Belo sublinhe-se a excelência da composição poética
de uma autora que logo na estreia (Poemas, 1990) nomeia o silêncio, os pássaros e o voo, elementos
tão presentes no poeta que dá nome ao
galardão. Graça Pires materializa os símbolos
em “palavras cúmplices”, vindas de “excessivas
solidões”, salvando-nos, porém, com “a inicial pureza das fontes”.
Neste
volume, o amor e a sedução (notável arte de Ovídio) criam um cântico prodigioso, ciente da morte que “(...) pode ser um nó / ou um grito ou uma trepadeira
enroscada / no corpo ou na lápide onde escreverão / o nome que tivemos.”, contudo procurando sempre nomear a vida, irmanando
a sensualidade tangível
e a profundidade do espírito,
modelando na água a “fenda da secura” e “o júbilo dos mastros”.
Em
O Silêncio: Lugar Habitado (belíssima
capa de Júlio Cunha) realiza-se assim a unidade do Ser: “Sei o
som dos passos / com que regressas a
casa. / (...) / De frutos doces me enfeito. / Uma luz clandestina / inunda minhas margens / e deixa-me um rio no vinco
da cintura. / O teu desejo terrivelmente
puro!”. A casa torna-se indissociável do reino
amoroso, no entanto
é nos silêncios das mulheres
“curvadas sobre os filhos”, afugentando “a morte rente às bocas” que as casas ganham, na poesia de
Graça, um maior sentido. Refira-se ainda o confronto com o tempo, evocando Fiama. Mas são as mães (tal
como acontece em Herberto) que
instauram nos poemas de Graça Pires os grandes
significados, as tensões vigiadas por uma escrita luminosa, abrindo serenamente caminhos de reflexão.
“Diário de Notícias, Supl. NS”, 19 dezembro 2009