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segunda-feira, 2 de maio de 2022

O SILÊNCIO: LUGAR HABITADO

 



O Silêncio: lugar habitado. Fafe: Labirinto, 2009


 Caros amigos,

Razões de ordem profissional impedem-me de estar entre vós, como seria meu desejo e do meu agrado, neste dia em que a memória é celebrada através da evocação de um poeta, um dos maiores, que, quis o acaso, nasceu nosso conterrâneo. E que melhor maneira de evocar um poeta do que conceder-lhe a dignidade de o seu nome poder tornar-se uma porta de difusão para outras poesias? Julgo ter sido essa a intenção ao instituir-se o Prémio Nacional Poeta Ruy Belo, o qual tive a honra de servir ao aceitar o convite para integrar o júri da primeira edição. Sinto-me, pois, no dever de partilhar convosco algumas palavras acerca do livro premiado.

Porque não pretendo maçar-vos com análises fastidiosas, limitar-me-ei a enunciar com brevidade alguns aspectos que me levaram a preferir O silêncio: lugar habitado a outras obras concorrentes. O primeiro desses aspectos é, provavelmente, o mais simples de se compreender. Um bom livro de poesia tem de ser um livro bem escrito, isto é, um livro que não só respeite a língua que lhe serve de suporte, mas que tente oferecer a essa mesma língua uma tonalidade cativante. Neste caso, o que cativa é a sobriedade do discurso.

Não é necessário ser-se demasiado palavroso para que muito seja dito. A boa poesia, discurso sintético por excelência, não se faz de muitas palavras. Palavras a mais dão cabo dos poemas.
São raríssimos os poetas, e Ruy Belo foi um deles, que conseguem manter num poema longo a mesma intensidade que mais facilmente se obtém num poema breve. Curiosamente, o leitor reparará que O silêncio: lugar habitado pode ser lido de duas maneiras: ou como um conjunto de poemas breves ou como um longo poema subdividido em vários momentos. A ausência de índice no livro, assim como a ausência de títulos, oferecem ao conjunto uma consistência que acaba reforçada por um sentimento de ligação e equilíbrio entre cada um dos momentos. E este foi um segundo aspecto que muito me agradou no livro em causa. Temos, deste modo, um livro tão bem escrito quanto bem organizado.
A organização final do conjunto podia ser posta em causa se nele verificássemos algum tipo de dispersão temática. Não é isso que acontece. O último aspecto que pretendo salientar no livro vencedor da primeira edição do Prémio Nacional Poeta Ruy Belo é, pois, a unicidade temática que faz deste um livro singular até por não ceder a alguns tiques mais reconhecíveis na poesia actual. Quero dizer que sendo um livro onde o quotidiano está presente, não é um livro que se esgote no relato do quotidiano. Sendo um livro onde a relação do ser humano com o mundo natural está presente, não é um livro que se deixe embalar por um deslumbramento ingénuo, sentimentalista e elogioso dessa mesma relação. Sendo um livro onde o erotismo está presente, não é um livro assaltado pela lamechice que contamina muita da chamada lírica amorosa. Sendo um livro, por fim, belo, não deixa também de ser terrível nos seus momentos mais claramente melancólicos e elegíacos.
Quem vier a ler com atenção este livro, perceberá quem são os habitantes do silêncio. Esse silêncio que é ao mesmo tempo ausência e memória habitada pelos que a morte nos usurpou. Permitam-me, então, que termine felicitando a poeta Graça Pires pelo excelente livro que nos colocou em mãos. Estamos todos de parabéns quando no mundo, lugar cada vez mais perigoso, a poesia acontece e nos ajuda a respirar.
A todos o meu agradecimento e os mais sinceros cumprimentos,

Henrique Manuel Bento Fialho, escritor

Nota: este texto foi lido no passado dia 27, durante a sessão comemorativa do 77º aniversário do poeta Ruy Belo, aquando da apresentação de O silêncio: lugar habitado, de Graça Pires, livro vencedor da primeira edição do Prémio Nacional Poeta Ruy Belo. Um poema do livro:

Era um buscador de pérolas.
Atravessou a mais densa escuridão
para abrigar na expressão do rosto
uma luz absoluta. Ficou cego.
Agora há uma ferocidade
suspensa nos seus olhos.
E dorme pelas praias
onde só as mulheres
vestidas de negro
escutam o grito das areias.

Graça Pires
, in O silêncio: lugar habitado,









Vila Nova de Gaia, 23 novembro 2009

 

Cara Amiga:

 

A sua poesia - a deste seu “O silêncio: lugar habitado” – ostenta esta virtude: oferece-se natural, sem a preocupação de o parecer, de o ser. Quero dizer, escreve sem esforço e sem constrangimento, como as águas da nascente, isto é: com a “inicial pureza das fontes”. Não como aquela “água represada do olhar” de que fala o poema da p. 17, porque essa precisa do silêncio para se manifestar, ou, talvez melhor, para ser ela mesma.

O tom levemente narrativo não perturba a cintilação do poema, sustentado pelo avanço de uma ou outra metáfora, geralmente retirada do mundo vegetal ou, simplesmente natural.

Bem-haja pela oferta. E aceite um cordial abraço do

Albano Martins, escritor

Carta manuscrita








O jogo imagético faz de O Silêncio: Lugar Habitado, de Graça Pires, um trabalho assombroso, quer pela subtileza das metáforas que desenvolvem a relação do Eu com o Outro (processo lírico já intensificado a. C., por exemplo na  poesia de Safo), quer pelo apuro estético vocacionado para a síntese libertadora. Desta obra vencedora do Prémio Ruy Belo sublinhe-se a excelência da composição poética de  uma autora que logo na estreia (Poemas, 1990) nomeia o silêncio, os pássaros e o voo, elementos tão presentes no poeta que dá nome ao galardão. Graça Pires materializa os símbolos em “palavras cúmplices”, vindas de “excessivas solidões”, salvando-nos, porém, com “a inicial pureza das fontes”.

Neste volume, o amor e a sedução (notável arte de Ovídio) criam um cântico prodigioso, ciente da morte que “(...) pode ser um / ou um grito ou uma trepadeira enroscada / no corpo ou na lápide onde escreverão / o nome que tivemos.”, contudo procurando sempre nomear a vida, irmanando a sensualidade tangível e a profundidade do  espírito, modelando na água a “fenda da secura” e “o júbilo dos mastros”.

Em O Silêncio: Lugar Habitado (belíssima capa de Júlio Cunha) realiza-se assim a unidade do Ser: “Sei o som dos passos / com que regressas a casa. / (...) / De frutos doces  me enfeito. / Uma luz clandestina / inunda minhas margens / e deixa-me um rio no vinco da cintura. / O teu desejo terrivelmente puro!”. A casa torna-se indissociável do reino amoroso, no entanto é nos silêncios das mulheres “curvadas sobre os filhos”, afugentando “a morte rente às bocas” que as casas ganham, na poesia de Graça, um maior  sentido. Refira-se ainda o confronto com o tempo,  evocando Fiama. Mas são as mães (tal como acontece em Herberto) que instauram nos poemas de Graça Pires os grandes significados, as tensões vigiadas por uma escrita luminosa, abrindo serenamente caminhos de reflexão.

 

Maria Augusta Silva, jornalista
“Diário de Notícias, Supl. NS”, 19 dezembro 2009