“Desta embarcação possessa que é poesia e
chamamento”
Mas, depois, partirei,
Porque sei que há no meu sangue
Uma embarcação possessa
Do chamamento do mar, ou da solidão.
Graça Pires, In Poemas
Escolhidos 1990-2011, p. 60.
Para quem não
conhece bem a obra desta poeta, este é o 14º da sua obra vasta. Nascida em
1946, na Figueira da Foz, Graça Pires licenciou-se em História na Faculdade de
Letras e estreou-se na poesia com a obra Poemas,
em 1990, pela editora Vega, publicada após ter sido consagrada com o Prémio
Revelação de Poesia da APE, em 1988. Posteriormente, em 1993, recebe o Prémio
Nacional de Poesia Sebastião da Gama, com a obra Labirintos, que virá a ser publicada em 1997, numa edição da Câmara
Municipal de Murça (esta obra recebeu, aliás, dois prémios, o segundo após a
sua publicação). No mesmo ano de 1993, recebe o Prémio Nacional de Poesia da
Vila de Fânzeres, com Outono: Lugar
Frágil, obra que foi publicada pela Junta de Freguesia de Fânzeres, no
mesmo ano. É reveladora a existência constante de Prémios de poesia, que se
repetem com Ortografia do Olhar (1995),
Conjugar Afectos (1996), Uma certa forma de errância, em 2003, Quando as Estevas entraram no Poema, 2004,
o silêncio: lugar habitado, 2008.
Apesar de premiada por várias vezes, o que exprime a unanimidade do gosto
poético de quem a leu, é surpreendente e contraditório o facto de ser
simultaneamente uma figura discreta da poesia portuguesa e do panorama crítico
literário, sempre tão “urgente” nas suas descobertas e revelações literárias. É
mais fácil celebrar uma poesia mais mediática e urbana do que premiar o
laborioso esforço que se lavra na solidão.
Esta obra, como o
próprio nome o indica, consiste numa selecção, feita pela própria autora, a
partir de poemas que foram escolhidos no conjunto dos doze livros que publicou
até ao final de 2011. O critério, inevitavelmente subjectivo, está à vista, na
própria apresentação da autora, que antecede o livro: “Escolhi aqueles poemas
onde o rosto da poesia se confunde com o rosto do poeta que procura um
compromisso entre a linguagem estética e o sentimento, entre o sonho e a
realidade.” É também esclarecedora a forma como a poeta entende a sua própria
escrita: “é uma poesia de carácter intimista onde falo de amor, de solidão e de
mar, das coisas da vida; aquelas que me vão acontecendo a mim e aos outros.”
Por outro lado, constata-se nesta obra uma capacidade de reinvenção e de
renovação notáveis, pois a autora mostra bem como se move entre vários registos
e os trabalha com a mesma mestria, desde os poemas mais narrativos e longos,
até aos poemas de grande contenção e economia, que exprimem um labor poético
intenso e fértil. Todavia, o que é marcante, ao longo de toda a obra, que reúne
poemas de vários livros, é a permanência de uma voz inconfundível, que ressoa
desde o primeiro livro, Poemas (1990), e se vê amadurecer e ganhar espessura,
ao longo do seu percurso poético.
Neste sentido, para
ler a poesia de Graça Pires, é preciso um silêncio demorado, aquele que nos
abre a passagem para o limiar da sua poesia intimista e que nos permita
penetrar o intrincado labirinto das suas metáforas, é preciso arredarmo-nos
desse realismo pobre e quotidiano que nos assalta por todo o lado e contamina a
nossa cultura actual. É preciso, como o diz a própria poeta, na página 78,
“percorrer os fonemas como se dançasse/envolta numa túnica de água/guarnecida
de espelhos.” É nas metáforas privilegiadas que a autora escolhe, não muitas,
mas de uma profunda riqueza semântica, porque se metamorfoseiam e estendem uma
rede infinita e polifónica de vozes. Não é apenas ela/poeta, que aqui se faz
presente, mas antes a “portadora” das múltiplas e inesgotáveis vozes que se
apresentam, num desdobramento imenso e sempre surpreendente. É voz que devém
vento, rio, segredo, barco, nascente, marinheiro, voz que se renova em cada
alento ou forma assumida, que habita as formas mitológicas, as personagens, os
seus desejos e sonhos, voz que é pura abertura e recomeço, a cada instante. A
viagem, a rota, a cartografia do desejo, inscrevem-se nos seus versos como
presença recorrente, exprimindo uma inquietação sem nome, como no poema da
página 97: “Anoiteceu mais cedo. À porta fechada, preparo um roteiro de viagens.
/Sublinho rotas e derrotas. /Tatuo no pulso uma rosa-dos-ventos/e gravo na mão
esquerda um astrolábio. /Tenho uma ilha adiada no peito. /É a época das marés vivas.
/Pressinto-o, /pela intensa ondulação do meu cabelo, /antecipando a tormenta.”
A vida, para Graça Pires, inscreve-se simbolicamente nas metáforas da partida e
da viagem, da errância, com rotas traçadas pelo desejo, inscritas na pele,
transformando o caminho errante na única certeza, mesmo que da partida não
sobrevenha senão a tormenta ou o naufrágio. O olhar, metáfora por excelência na
sua poesia, é portador de inúmeros sentidos: é o da memória, que convoca, à sua
passagem, a infância como um lugar nostálgico e irreversível – como nos poemas
em que evoca a meninice, sempre mediada pela distância marítima ou, porque não
dizê-lo de outra forma, onírica – mas é também o olhar que é visionário,
antecipador, que reclama e convoca “o límpido diálogo dos abismos” (p. 105), na
clara alusão da viagem de Ulisses, procurando uma “ilha escondida na memória”.
É, quase sempre, não o olhar físico, mas interior, que procura o caminho que há-de
conduzir à libertação.
Para a poeta, o
mundo não se divide, nem se criva em géneros ou diferenças, não se autolimita
em categorias, mas assume a dança da metamorfose em todo o seu esplendor.
Veja-se, na página 23: “É outono. Cada mulher transporta consigo uma serpente
que mata e ressuscita a voz intransmissível do passado”. É uma metáfora que
convoca, não apenas o seu sentido originário, a da mulher-tentação, que obedece
ao desígnio do mal através da figura da serpente, mas é também ela, a mulher e,
ao mesmo tempo, a serpente assassina, que resgata a voz do passado e a traz ao
presente, tornando-a fogo vivo. Ao usar esta ambivalente e poderosa imagem, a
autora coloca-se num plano em que o estético se sobrepõe claramente ao
normativo, no sentido convencional em que é usado. O enigma poético, ela
sabe-o, está para além do juízo, libertou-se dessa esfera do convencional, para
ascender à leveza da palavra: a “voz intransmissível do passado”, essa que um
dia foi canto e luz. E, nesse texto, ainda, de uma profunda, irreversível
nostalgia, em a autora diz (p. 24) “exibo nos pulsos as marcas de naufrágios
inexplicáveis, enquanto percorro um cenário vazio, no mutismo das árvores que
se despem, lentamente, com o sopro magoado do poente”, há ainda o espaço para,
no verão, “se ele sobrevier, desenhar um veleiro na palma da mão”. O poema
salva, porque vai a caminho do sonho e é através dele e da memória que pode o
tempo florescer. Por isso, a autora fala, nesse poema, de “transpor para o
coração um tempo mítico”, na exigência de um Nunc Stans, de um instante suspenso capaz de fazer durar o precário
e resgatá-lo do curso ininterrupto do tempo. Ela conclui, nesse poema: “A que
país pertenço”? Aliás, essa metáfora da errância, que aparece com tanta
frequência a sua poesia, no sentido em que a poesia, essa “embarcação possessa/do
chamamento do mar, ou da solidão” é uma travessia do mar e da solidão, habitada
pela dor, mas também arrastada pelas águas do sonho e da redenção, numa
constante ambivalência que contamina toda a sua escrita poética.
Há, assim, um
universo onírico que se perfila nesta poesia, muitas vezes habitado por uma
componente alucinatória fortíssima, que nos aproxima da poesia de Herberto
Helder, pelo caminho inequivocamente lírico que marca o compasso dos seus
versos, de grande força imagética, como no poema da página 55: “No meu peito há
uma árvore/onde prendo um baloiço para espiar os ninhos/e entrelaçar, nos
cabelos, penas de todas as cores. /Estou só. Tenho valsas rasgadas nos pés/e
asas, como línguas, em torno da boca. (…)” ou, ainda no mesmo poema, os versos
finais: “A minha tristeza pode ser um barco/ou, apenas, o corpo de um homem
vestido de relâmpagos azuis.” É sobretudo a partir do seu livro Conjugar Afectos, de 1997, que se
acentua a vertente lírica, e também onírica, da sua poesia, em que os versos
nos surpreendem por uma força telúrica e que lhes confere, muitas vezes, uma
violência alegórica notável, como o poema da página 111, onde a autora diz:
“Nas horas mais nocturnas, desenho um círculo/e rastejo, através dele, até à
sede./Bichos sonâmbulos ferem-me a garganta./Um barco alado irrompe da noite/e
mutila a lucidez das mãos./Um grito único ressoa no meu peito./Mas a planície
enrosca-se-me na voz/e não me devolve o eco, que só o coração ouve.” Ou, então,
o poema da página 126: “Vieram de longe. A pé, /Na hora do sol sem sombra. / E
ensandeceram à procura da fonte. Agora vivem em casas de paredes grosseiras/e
vestem-se de luto, à espera da morte. /É
irremediável, a solidão, /costumam murmurar baixinho”.
Se esta violência
onírica irrompe pelo poema, sacudindo-nos os sentidos e desarrumando uma certa
harmonia que é convencionalmente atribuída à poesia, ela nasce certamente de
uma melancolia antiga ou de um desassossego existencial que é próprio da poesia
metafísica, irrompendo como um gesto de suspender o sentido comum e a
continuidade, como uma forma de dilacerar uma suposta serenidade do olhar, que
é, assim, surpreendido pelo desamparo da morte ou da solidão. São, aliás, dois
temas que são caros à autora, sobretudo o da solidão, que atravessa todo a sua
obra, de lés-a-lés. “É irremediável, a
solidão”, di-lo no poema da página 126, como uma constatação, como algo que
antecipa já a morte, irreversível círculo, mas é também a solidão que é
condição de errância, de evasão onírica, de silêncio interdito, esse que deixa
ver o relâmpago da salvação e do olhar. O mito da mulher solitária, repetição
do arquétipo de Penélope, perdida nos escombros da sua memória, fazendo e
desfazendo e, novamente, refazendo, apresenta-se de forma constante, essa
mulher perdida entre as suas memórias, como no poema da página 129: “Em
silêncio, sempre em silêncio,/as mulheres refazem o penteado,/que as mãos
forasteiras/da noite desmancharam./É hora do romper do dia./A cor da
madrugada/quase que dói por dentro da pele./E não fora a urdidura de mágoas/antigas,
elas dariam à paisagem/o nome de um deus solar”. As mulheres, repetição de
Penélope, as que “urdem as mágoas”. “Antigas” são não apenas as mágoas, mas
também e essencialmente essas mulheres, que se cravam no horizonte da madrugada
(da alba da história da humanidade) e do novo dia, onde se perfila (e sempre) a
luz solar, a esperança de um nome ou, ainda, a paisagem como abertura infinita
ou passagem.
Outro nome arde, nesta paisagem poética: o amor. O amor de forma ampla,
esse amor que a poeta compara a uma viagem sem volta, como na página 135, num
belíssimo poema em prosa, em que Graça Pires diz assim: “Tantas vezes quis
falar-lhe do meu amor, como de barcos que chegam e partem de algum lugar onde
eu gostaria de ter nascido”. Errância e desejo, vontade de dar nome ao fogo que
habita o corpo. Do amor como o silêncio puro e habitado, onde a poeta diz:
“Sim. Partirei amanhã para aprender o idioma das nascentes e escrever o teu
nome na água dos meus olhos.” Sim, o amor só se escreve na limpidez do olhar e
só se diz no idioma intacto das nascentes. Pois só a linguagem pura nomeia e
salva o vivo.
Maria João Cantinho, poeta
Apresentação do livro, 26 maio 2012
Vila Nova de Gaia, 08 junho 2012
Este seu livro - Poemas
Escolhidos -, sendo embora formado de poemas retirados de outros livros é,
afinal, um livro novo, um novo livro. É a mesma luz (o seu “lado mais
intranquilo”) que agora abre novos horizontes, oferece novas leituras, rasga
novos caminhos. A linguagem do afecto, - dos afectos - essa de que fala o poema
“Reino da lua”, (p. 92) é a condutora do fio que se desdobra ao longo destas
207 páginas onde “o alvoroço dos pássaros” (mas também o “das vagas”) se
articula com o “exílio (…) dos lábios” e se ouve, num sussurro, o “imenso
galope (…) do peito”.
Este é, como diz a
sua dedicatória, um “livro habitado por emoções, sonhos e afectos”. Quer isso
dizer que nele mora e palpita a vida, e isso bastaria o tornar apetecido. Mais
apetecido porque nele mora, também, a poesia. Parabéns e bem-haja.
E, ainda, um
afectuoso abraço do
Albano Martins, escritor
Carta manuscrita
Como a autora menciona na
apresentação da antologia “Poemas Escolhidos”, o presente livro “é um pretexto
para apresentar uma selecção de poemas extraídos dos 12 livros” que Graça Pires
publicou até ao final de 2011, sendo importante referir que nessa escolha
esteve presente, sobretudo, “o olhar” que, no dizer da poetisa, “se deteve mais
tempo ou se sobressaltou com as palavras escritas”, mais em certos poemas e
menos em outros, dependendo também da envolvência, da relação de proximidade
com os mesmos. Por vezes este procedimento, enquanto acto solitário, leva o
poeta a separar, a desmembrar a sua memória de versos, sendo que o resultado
nunca seria o mesmo para outra pessoa. Pensamos que deva ser difícil escolher
emoções – muitas vezes subjacentes ao acontecimento dos versos, mas, em todo o
caso, não nos podemos esquecer que a apreciação estética é indissociável da
arquitectura do poema e que esta entidade literária possui mais do que uma
variante emocional. Assim o entendemos quando Graça Pires completa o sentido da
sua selecção: “(escolhi) Aqueles poemas onde o rosto da poesia se confunde com
o rosto do poeta que procura um compromisso entre a linguagem estética e o
sentimento, entre o sonho e a realidade”. Ao ganhar vida, o poema vale por si –
vive, sobrevive ou morre, dependentemente da força que tenha, muitas vezes de
forma inexplicável, no imediato ou no quase eterno. Podemos seleccionar com
segurança, mas o poema só é autenticamente seleccionado pelo leitor de poesia.
A poetisa, neste caso, atribui-lhe uma função, realçando que “A poesia é para
ser lida por aqueles que dela gostam”. Gostar de poesia e senti-la na sua
complexidade ou simplicidade, na sua fortaleza ou fragilidade, no seu
testemunho pessoal ou na sua vinculação sociológica e política poderá resultar
numa grandiosa irradiação de energia vital comunicativa/expressiva e elevá-la
ao estatuto de universal, quando os valores da humanidade e da originalidade
estética veiculam uma voz singular, representativa.
O presente livro reúne,
pois, poemas escritos entre 1990 e 2011, presentes nos livros “Poemas” (com o
qual a autora venceu o Prémio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de
Escritores, em 1988 e que saiu pelas edições Vega em 1990); “Outono: lugar
frágil “, publicado em Fânzeres, (Prémio nacional de Poesia da Vila de
Fânzeres, em 1993); “Ortografia do olhar” -
1996, publicado pela Éter ( Prémio Nacional de Poesia 25 de Abril, em
1995); “Conjugar afectos” – 1997 (Grande Prémio Literário do I Ciclo Cultural
Bancário do SBSI, em 1996); “Labirintos” - 1997 ( Concurso Nacional de Poesia
Fernão Magalhães Gonçalves); “Reino da lua”, publicado pela Escritor, em 2002;
“Uma certa forma de errância”, publicado pela Ausência, em 2003 (Prémio
Literário Maria Amélia Vaz de Carvalho); “Quando as estevas entraram no poema”
– 2005 (Prémio Literário de Sintra Oliva Guerra, em 2004); “Não sabia que a
noite podia incendiar-se nos meus olhos” – 2007 (Edição de autor); “Uma extensa
mancha de sonhos” , publicado pela Labirinto, em 2008; “O silêncio: lugar
habitado, também publicado pela Labirinto, em 2008 (Prémio Nacional Poeta Ruy
Belo); “A Incidência da luz”( editado novamente pela Labirinto, em 2011.
Debruçando-nos sobre a
expressão poética presente nos livros de Graça Pires, encontramos versos que
nos transmitem a inquietude da passagem do tempo, reflectida nas inúmeras
alusões à mutabilidade do que existe ou existiu na interioridade dos seres:
“Sem pressa, formulo a urgência/de sombras inquietas/na neblina do olhar, /como
se recuperasse um tempo/tão decisivo como a infância (in “Sombras, pág.25).
Quando a poeta formula a urgência, surge a inevitabilidade de reinventar o
real, para dar cor ao indefinido e proclamar a luz como verdade sobre todas as
coisas. Assim, interpretamos que, se de um lado, a claridade poderá
constituir-se como certeza, como determinação, por outro, também poderá ser uma
forma de aniquilar o estabelecido, causando inquietude e perplexidade no
entendimento do sujeito lírico, tal como nos versos “Rasgo, dentro de mim, /
imagens desfocadas/ com que encenei obsessões. / Uma linha de luz subverte/ a
penumbra do olhar, como um enigma, / ou um remorso sem retorno. Mais adiante, a
linguagem surge como uma espécie de artifício, algo extrínseco ao sujeito,
embora sirva a sua individualização, através da antítese: “Exponho-me no
disfarce transparente/ da linguagem, para que a intimidade/ se insinue nos meus
dedos. / Apodero-me da malícia das sílabas/ a entreter a língua” (in Sombras,
pág. 40). O corpo constitui-se, deste modo, uma metáfora do movimento
intrínseco que, ora se deixa embalar pela linguagem verbal, ora é ele mesmo
dominado, ainda que involuntariamente, pela mesma, como podemos observar no
poema “Quero que me abraces” (pág. 60): “Quero que me abraces, /antes que a
tristeza envelheça no meu peito. Com o tempo, habituei-me/ à conivência das
palavras/ e a usar, com inocência, certos gestos”. O gesto, a palavra conjugada
parecem constituir um estabelecido sem a novidade da busca, sem o acontecer do
inesperado. Então, somente o corpo pode experimentar a viagem original, porque
só a sós a pode sentir, como mais nenhum outro. A experimentação individual ou
singular que ocorre no eu lírico produz, assim, um efeito de simbiose com o
desejo. A linguagem só fará sentido, então, se proclamar a verdade poeticamente
transmitida: “Mas, depois, partirei, / porque sei que há no meu sangue/ uma
embarcação possessa/ do chamamento do mar, /ou da solidão”. No poema “O vento
da tarde entra pelas casas sem convite” (pág. 65), a sinestesia, amplamente
forte, dá lugar a um imaginário onde a mulher se constrói e destrói no papel de
mãe. Remetendo-nos novamente para o corpo vital que recebe e dá, a poetisa
reflecte uma preocupação relativamente à condição feminina, muitas vezes
esquecida: “Ao redor de tudo, as casas permanecem/ encerradas à insistência do
sol. / Dentro delas podemos imaginar as mulheres/ curvadas sobre os filhos
abrindo as blusas/ para que o leite e o sangue afugentem/ a morte rente às
bocas”. Reparamos aqui a omnipresença do feminino, enquanto fonte de vida e
salvação, mas, por outro lado, como continuidade do encerrado, do objecto que
está mais próximo da casa que não deixa entrar a luz. Se a mulher dá vida, se
ela mesma é luz, é então neste processo paradoxal que se deixa abater pelas
sombras, pela impossibilidade de ter acesso à sua liberdade e afirmação total,
como reparamos nos versos do poema (pág. 88): “Distingo, desde menina, as
palavras consumidas na voz / das mulheres, /cúmplices de silenciosas
madrugadas. /Conheço-lhes o circular gesto de disfarçar desejos/ com astúcia,
quando o destino lhes antecipa um enredo…”
A busca, a errância,
constituem outro traço fundamental na poesia de Graça Pires. Sem o processo da
descoberta, a existência não se reafirma válida ou conectada com o infinito
libertário. A viagem parte da memória, por vezes, como no poema “De um instante
para o outro (pág.119): “De um instante para o outro, /saíram barcos do meu
peito, / à procura do mar da minha infância: /o sangue paterno agitando o
coração.” Em outros momentos, a viagem parte de uma circunstância inesperada:
“De tanto olhar para o mar, um marinheiro enlouquecido dançou/ em meus olhos,
ensaiando-me nos pés uma valsa perversa.” (pág.89); noutras alturas, a viagem é
o significado metafórico das palavras tão presentes ao longo dos poemas, tais
como “barco”, “nave”, “vagas”, “velas”. No poema “As mãos” esse “barco”,
através de um animismo, transfigura-se em lágrima: “Quando o crepúsculo, quase
extinto, / se demora no olhar, há um barco,/ fatigado do rumor das vagas,/ que
se faz lágrima, lambendo/ o rosto, sulco a sulco./ É então que as mãos se
identificam/ com o coração das aves, de tão inquietas/ Aceitação ou dádiva,
afago ou dor, prece ou raiva?”. O desejo da transpor, percorrer, partir ou
simplesmente sonhar são constantes indeléveis na poesia de Graça Pires. A sede,
mesmo que cansada, mesmo que sofrida, será sempre, no nosso entendimento, a tal
inquietação que subjaz aos versos do poema. Poderá existir poesia sem sede, sem
barco, sem a beleza que ora nos dói, ora nos orgulha de assim existirmos?
Reparamos também que a
poesia de Graça Pires revela uma certa circularidade., talvez relacionada com a
condição feminina, por um lado, ou com a necessidade de protecção de algo
sagrado, por outro. Assim, a figura geométrica do círculo aparece notória em
certos poemas, como em “Nas horas mais nocturnas, desenho um círculo”
(pág.111), nos versos “Era Verão. À roda da cintura pendurávamos o musgo da
manhã/ e íamos, de lábios molhados, regar o pomar. /os teus olhos ardendo no
meu corpo”. Também a sequência cíclica das estações (que a nosso ver não
abandona a ideia da referida circularidade) apresenta uma força vital nos
“Poemas Escolhidos”. As inúmeras referências ao tempo (e também ao lugar)
revelam-se como presenças constantes nos poemas, dando a impressão da natureza
emergente que se incumbe de pertencer ao sujeito da enunciação, como condição
necessária e talvez vital no seu horizonte de eventos, como observamos nos
versos “Tinha chegado um tempo/em que era possível ser livre” (pág.49), “Quero
uma casa com paredes azuis, /com varandas vidradas sobre a noite.” (pág. 48);
“Voltaremos muitas vezes a um jardim de plátanos/ com o luar engatilhado nos
olhos.” (pág. 51).
Notamos, por último, a
constante da musicalidade, no conceito de Verlaine – a música, enquanto
princípio organizador, que perpassa grande parte da poesia de Graça Pires,
proporcionada pelo contraste entre sons abertos e fechados e, sobretudo, pela
cadência com que o poema inicia e encerra a sua trajectória sonora, como
podemos verificar no poema “Coloco sobre o corpo um vestido vermelho” (pág.
189) ou no poema “Percorro os fonemas como se dançasse” (pág.78), por exemplo.
A poetisa projecta-se numa
espécie de transcendência, no continuum
das artes postulado por Kandinsky, onde o real se afigura como ponte, num
envolvimento metafórico suspenso em imagens. Esta também é uma poesia
imagética, onde a presença do ambiente marinho e da claridade transcende a
poetisa, a recordar-nos Sophia de Mello Breyner. No poema “No verão, os mastros
têm o brilho” (pág. 62) são reveladoras as presenças do mar e da claridade,
essências estas que perpassam muitos versos de Graça Pires.
Se, por um lado se torna
evidente a marca sonora no estilo da poetisa, é de realçar, por outro, a
certeza do silêncio, a sua busca, o seu plafond
de meditação que proporciona reflexões e aclaramento de imagens, sombras ou
ideias. No poema “Às vezes vêm de muito longe” (pág. 175), a poetisa utiliza a
expressão “lâmina do silêncio”, referindo-se o sujeito da enunciação ao que as
palavras trazem. Sendo os signos significantes e significados que formam, de
modo abrangente, a palavra, é neles que a poetisa procura, ora o som, ora a
ausência de qualquer ruído, nessa busca incessante de se conhecer em todas as
dimensões, ditas e não ditas, em todos os lugares e em todos os não lugares.
Segundo a poetisa, “todas as palavras são adequadas/ para evocar os dias para
sempre agarrados/ à cal da casa onde nascemos”.
Marília Miranda Lopes, poeta
Apresentação no Porto, Casa do
Infante, 27 de outubro de 2012
De uma
dúzia de livros publicados entre 1990 e 2011, Graça Pires editou Poemas
Escolhidos, uma antologia organizada pela autora que nos diz em nota de abertura:
«Não
foi fácil a escolha. Não pretendi questionar-me ou questionar alguém sobre a emoção e a sensibilidade
que a poesia reclama. Escolhi aqueles
poemas onde o meu olhar se deteve mais tempo
ou se sobressaltou com as palavras
escritas. Aqueles poemas onde o rosto
da poesia se confunde com o rosto do poeta que procura um compromisso entre a linguagem estética e o
sentimento, entre o sonho e a
realidade. É uma poesia de cariz intimista onde falo de amor, de solidão, do mar, das coisas da vida: aquelas que me vão acontecendo a mim e aos outros. Procuro
misturar o pessoal com o social na
mesma vertigem do quotidiano, em que as palavras se tornam um espaço de afectos ou de mágoas, de esperança ou de angústias».
Graça
Pires tem uma poética de invulgar sensibilidade, recusando sempre
a facilidade. Em cada verso alcança a unidade perfeita
entre o Ser total e o jogo magnífico das
metáforas, da significação. Nesta relação
com a imagética, a autora não recorre a figuras de estilo pomposas
e vazias. Pelo contrário, há na sua lírica uma infinita
preocupação
com as palavras, depurando o poema até este ser uma luz natural, profunda, espelhando uma autenticidade que constrói
a grande partilha de afetos e reflexões.
«Escavo
no peito um declive de seara / para ceifar o pão e roçar o ventre / no aroma dos fenos, até que o
fermento / levede o trigo por entre
os dedos do estio. / As farpas de um arado podem sulcar-me a pele / porque
é de terra o molde do meu corpo».
O "sentido das palavras" é visceral nos passos literários de Graça Pires e indissociável dos grandes temas do amor, do tempo, da
memória, do meio ambiente,
da natureza em todas as suas grandezas e fragilidades, das artes, da
vida e morte, do Eu e o Outro num
diálogo intenso que demanda a claridade mesmo quando (ou sobretudo) «Um duplo estremecimento lateja nos espelhos».
Falamos de
uma poesia de busca constante na qual se conciliam «íntimas paragens»
e «a dupla teia dos lábios», onde o quotidiano e a idealização são um só lugar, o da
coerência poética. Repare-se neste poema da antologia pessoal
de Graça Pires:
«O
ofício das mãos não se intimida / com a apressada cadência do tempo. / Não tem fim o silencioso enleio /
que se esconde por entre a argila /
nos dedos do oleiro; ou se enrola no linho/ dos lençóis tecido pelas mães; ou se prolonga / no pão quando
chega o mês do trigo. / Porque esse é
o destino das mãos, / tão alheio à urgência de cada dia».
Graça Pires costuma dizer que chegou tarde a todas as coisas, inclusive à escrita. Discordamos. A sua
antologia é prova bastante de que a consciência
do poema é intemporal. Depois, naturalmente, há um itinerário: «(...) E sobre o chão da página me debruço e me procuro».
Avessa a parangonas e à ribalta,
Graça Pires tem uma carreira literária sólida, marcada pela
exigência de uma autora que conhece bem
as «máscaras dos búzios», «a lâmina do silêncio», «a ácida solidão
das letras», «a lança das memórias», «os desígnios da morte»,
e, também, «a respiração do mar», «o clamor das antigas oliveiras» e o
«chamamento do corpo».
Uma obra que atingiu a maturidade plena.
Site “Casal das Letras”,
ORTOGRAFIA
DE UM OLHAR APAIXONADO
A poeta descende da linhagem dos grandes líricos, dos
escritores videntes, inspirados, para os quais a palavra é sagração da
existência, ato demiúrgico a fundar um mundo perenemente inaugural, pátria
germinada pelos devaneios, incendiada pelos sonhos. Nessa obra de delicadezas
raras, o poema torna-se matéria de decantação, espelho por onde o universo
fenomênico, prosaico, ganha amplitude, exaltação e êxtase. Pela palavra de
Graça Pires o mundo se intensifica, abre-se em fecundidade; as coisas resgatam
sua aura feérica, sacra; o homem encontra sua condição de ser transcendente,
irmanado às fontes genesíacas da natureza, às pulsões cósmicas do corpo.
Como sabemos, do início do século XX aos nossos dias,
pudemos observar, na literatura portuguesa, a gestação de um período
prodigioso, fértil, em que se sobressaltaram nomes de grande proeza. No campo
poético, a tradição do lirismo adensou suas forças. Observamos com assombro o
advento de uma poesia que, quanto mais lírica, quanto mais arraigada às fontes
do ser, mais se tornou lucífera, extática, legando-nos poemas de grande
amplitude estética. Já afirmava Novalis: “Quanto mais poético, mais
verdadeiro”. Nesse aspecto, a lírica de Graça germinou dessa tradição de grande
húmus lírico: José Agostinho Baptista, Sophia de Mello Breyner Andresen, Ruy
Belo, Al Berto, Nuno Júdice. Entretanto, dentre todas as suas leituras, a
escritora soube captar, de fato, com maestria, com sapiência, a leveza do
traçado de Eugénio de Andrade, grande poeta de nossa língua portuguesa.
O escritor verdadeiramente criativo é aquele que sabe
fecundar-se na tradição e extrair dessa a sabedoria de um lirismo inaugural,
obra que se torna singular justamente por ter sido gestada pelo encontro com o
outro. Essa é a situação existencial de Graça Pires. A poeta sorveu o que havia
de melhor na tradição lírica de seu país e, por isso, tornou-se dona de sua
própria voz, legando-nos uma obra sutilíssima, de grande comoção poética, pela
qual a palavra atinge agudeza lírica, estertor de uma beleza em febre. Em
verdadeiras partituras musicais, de traçados melódicos sutis, a escritura de
Graça desvela o mundo como irresistível epifania, paixão pela condição humana, no
que ela tem de terrível e magnânimo.
Graça, assim, desde seu livro de estréia, modulou uma
dicção poética ímpar, fiel à sua voz, palavra que, ao ser sempre idêntica a si
mesma em cada livro, desvela, paradoxalmente, uma novidade irrepetível, como se
seu primeiro texto ecoasse, eternamente, com face sempre renovada, nos demais
poemas de sua obra. Esse é o húmus ontológico pelo qual se move um poeta: ser
em autenticidade, desvelar sua face primeva, arquetípica.
Em consequência disso, Graça modulou um leque pequeno de
temas que, para nosso assombro, são sempre retomados como se fossem tratados
pela primeira vez. Desses destacam-se alguns: a busca da infância perdida, o
erotismo, a solidão, a celebração do encontro, a exaltação da natureza.
A
busca pelo tempo perdido é signo de uma nostalgia encantada, fascinada pelas
coisas do universo. O olhar do poeta é aquele que jamais perde a amplitude da
infância, a raridade do êxtase, da jubilação. Para tanto, o poeta vive em
estado de alumbramento, enraizado no devaneio lírico. Como afirma o filósofo
Gaston Bachelard, a criança sente-se “filha do cosmos” (BACHELARD, 1996, p.
94). A cosmicidade, assim, é despertada naquele que se entrega aos devaneios do
poeta: “Sem infância não há verdadeira cosmicidade. Sem canto cósmico não há
poesia. O poeta desperta em nós a cosmicidade da infância” (1996, p.121). É
dessa celebração do cosmos que Graça extrai seus idílios paradisíacos:
Encosto a cara às quimeras da infância,
para exorcizar a inocência perdida
e rodopiar, sobre os sonhos, a valsa
solitária da criança que fui,
quando as minhas mãos, nativas do sol,
eram aves de múltiplas cores.
A
memória paradisíaca transfunde o corpo no cosmos (mãos = aves), quebrando a
cisão entre sujeito e objeto. O universo palpita no sangue do eu lírico e o
pulsar humano torna-se o grande fluxo das galáxias, dos cometas, das enchentes
e procelas. O universo revela-se com toda vastidão e encantamento para aqueles
que o contemplam com olhos ingênuos, puros, libertos das amarras e limitações
que a sociedade impõe entre o homem e o mundo. Essa pureza da percepção visual,
por sua vez, relaciona-se com o olhar que o homem arcaico estende sobre o
universo, um olhar que busca sempre o momento primevo, as fontes de tudo o que
existe. De acordo com o Mírcea Eliade, conhecer “os mitos é aprender o segredo
da origem das coisas” (ELIADE, 1991, p. 18). Dessa forma o lirismo de Graça é
mítico, pois coliga-se às fontes primeiras da existência.
Por
outro lado, com grande sensibilidade, essa consubstanciação entre corpo e
cosmos motiva poemas em que o erotismo surge como força vital capaz de ordenar
o caos da dor e da morte. Eros irrompe, na lírica da poeta portuguesa, como
energia telúrica, arrebatamento místico, resgate da sacralidade do amor.
Poderíamos afirmar que Graça Pires é exímia poeta do corpo. Em sua obra,
através de imagens de grande beleza, o corpo baila enamorado, movido pelos
fascínios do outro:
No verão, os mastros têm o brilho
intenso do sal e da água.
E são como as tuas mãos:
levemente inquietas,
levemente acesas,
levemente inocentes.
Não sei o que procuro nos teus olhos.
Talvez uma pretérita adolescência.
Ou um mar.
Ou um barco feito às ondas.
O que digo pode parecer paradoxal.
Encostada ao passado,
o coração tornou-se-me tão frágil
e, simultaneamente tão cruel.
Mas os teus olhos,
os teus olhos perpetuam nos meus
a claridade das manhãs,
a chegada dos pássaros
e este estranho fascínio de te amar.
Um
intenso desejo manifesta-se no mundo e pelo mundo. Trata-se de um desejo
cósmico, um desejo que se reflete no universo, configurando a beleza total. O
erotismo transforma-se na encarnação da própria poesia, poema que se faz corpo
e sangue, poema que se concretizou em carne e desejo. Octávio Paz reflete sobre
a íntima relação entre o erotismo e a poesia: “A relação entre erotismo e
poesia é tal que se pode dizer, sem afetação, que o primeiro é uma poética
corporal e a segunda uma erótica verbal” (PAZ, 2001, p.12).
Quando
a comunhão com o outro finda-se, abre-se a ausência e, com isso, a desordem do
ser e também da natureza: “Rasgo, nos pulsos, a veia onde guardei/ o primeiro
sinal da tua ausência. / Esvaio-me em sangue, ou em raiva, / como se a morte
fosse o único modo/ de resgatar os sentimentos/ pelo percurso do coração”.
Desse caos irão nascer as imagens de auto-mutilação, pelas quais a poeta
comunga o caráter dionisíaco da paixão. Entretanto, ao nos revelar a dor, o
sofrimento, a poeta, com sua palavra de sopros e levezas, mostra-nos também o
sortilégio da poesia: a palavra lírica leva-nos à dor, mas a uma dor em estado
de encantamento, de gratidão pelo dom da vida. A poesia intensifica todas as
nossas sensações, a nossa sensibilidade ante o mundo, a tal ponto, que o real
nos arde, nos dardeja, nos fere. Todavia, tal sofrimento vem sempre embalado
pelo bálsamo da palavra poética, cântico a transmutar a cicatriz em bailado, em
voo.
Em
momentos de plenitude, porém, a exaltação de Eros e do amor desvela momentos de
carpe diem, em que o tema do locus amoenus é retomado, em sensíveis
imagens do amor e da natura:
O alecrim incendiou-se de aromas
nas vertentes da serra
e contagiou a giesta, o mirto, o rosmaninho.
Aderiu à pele dos que traziam no corpo
a violência do fogo.
Se mais desordem houvera,
mais desenfreado se tornaria
o cavalo alado galopando prazeres.
Como dizer o rio que não coube
no êxtase de ser apenas água,
mas uma torrente imensa
a rebentar nos poros dos amantes?
A poeta faz da palavra, para lembrar Rimbaud, uma
alquimia, uma tessitura repleta de imagens de grande inventividade e beleza.
Portanto,
para Graça Pires, poesia é uma verdadeira entrega, irrestrita, à vida, no que
ela tem de magnífica e terrível, de sublime e sofrida. A poesia é feita das
veias da existência, dessa condição humana misteriosa, limitada, mas ao mesmo
tempo pródiga, pois é o verdadeiro terreno da paixão. Aliás, se há uma palavra
que poderia designar, com precisão, a sua escrita, essa palavra é justamente
paixão. Paixão pelo amado, pela contemplação do pequeno e infinito cotidiano,
com seus pássaros, barcos, estevas e árvores; paixão pelo mistério da noite,
pelo silêncio vivo do que é sagrado e pleno; paixão pela memória, pela infância
sempre a latejar e a pulsar o fio de suas palavras.
Pela
ortografia desse olhar apaixonado, encontramos, enfim, nosso rosto, o
verdadeiro rosto da poesia.
BIBLIOGRAFIA:
BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. 2ª Edição. Tradução de Antonio de Pádua
Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1996 - (Coleção Tópicos).
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. 3ª Edição. Tradução
de Pola Civelli. São Paulo: Perspectiva, 1991 - (Coleção Debates, nº 56).
PAZ, Octavio. A dupla chama: Amor e erotismo. 5a
ed. Tradução de Wladir Dupont. São Paulo: Siciliano, 2001.
Alexandre Bonafim, poeta e Professor de
Literatura Portuguesa, junho 2013
Leituras na sombra da
oliveira
“Um começo cor de mel como
um cenário aberto
À
violência das mãos,
Depois, a insinuante dialéctica
entre o corpo e a véspera
De um azul
impenetrável”
Uma retrospetiva em livro
da obra da autora. Um livro de poemas escrito ao longo de pouco mais de vinte
anos. Assim o li. Inicialmente por sugestão da organização do próprio livro,
mas costumo depois fazer os meus trajetos e inventar novas formas de respirar a
poesia de outrem. Um leitor de poesia que se preze faz o seu próprio livro. Se
não o fizer pode ser um problema do leitor ou do livro, ou da poesia. Neste
caso, a riqueza está do lado da Poesia e a dificuldade no lado do leitor. A
Poesia que se presta a múltiplas e infinitas leituras e que se recria sempre,
que se adiante e impõe até ao autor – é um prémio para a humanidade. Como o
caso da poesia de Graça Pires. Chamemos-lhe de Arte, ou o que quisermos, acaba
por não ser importante designá-la, não tenho essa obsessão, prefiro apreciá-la,
mesmo que me faça sentir incomodado ou afetado. Mas esta Poesia abrangendo a
paleta de cores da vida na sua extensão alargada não é uma arte de sombra e
escuridão. Por vezes sim mas em equilíbrio com o resto do contexto. Trata-se
de, no meu ver, de poemas de memória, luz, beleza, deslumbramento e grande
intensidade. O mar, o nosso mar, as nossas tradições, os nossos rostos, a
mulher, as mulheres e uma digna portugalidade. Este é um grato pormenor que me
vem sempre cada vez que me aventuro pelas leituras dos poema, uma Poesia
portuguesa virada para o mar, centrada numa serra verde, em viagem pelas
planícies, um abraço desperto a esta terra que pisamos e respiramos. Encontro
elementos nos textos que justificam pensar assim. Mas é apenas uma curta e
imediata abordagem a tanto que nos é apresentado. Analisando a linha criadora
de poemas ao longo do tempo, foi bom ler o poema “Ortografia do olhar, sorrir e
aceitar este termo como título do blogue da autora. Um belo tema, porque é
mesmo disso que se trata, daria um belo título a esta escolha de poemas:
“Ortografia do olhar”, o título do livro de 1996. O poema, que deu título ao
livro, um dos meus poemas.
“Ortografia do olhar”
Os barcos aproximam-se do quotidiano,
pelos atalhos da luz, no corpo da tarde.
Ao mesmo tempo, de cidade em cidade,
uma inquietante treva incendeia, noite
adentro,
o ruído mitológico das maresias de
outono.
Um navegante, sem bússola,
enforca-se no cais dos percursos para
sul,
como se rastejasse a paisagem dos
sonhos,
pelo lado mais escarpado da alma.
Ritual de sangue inadiável.
Rotas afogadas nas pálpebras.
Quilha de silêncio onde ficamos exilados
e cúmplices,
reassumindo não sei que espanto,
enconchando o coração para nele caber
o estremecimento intacto de um rio.
A brisa, de feição, justificará o
lentíssimo
tumulto dos remos junto à foz.
Alguns
livros se destacam, mas amanhã serão outros, é preciso tempo para deslindar a
vida nestes poemas e fazermos do discurso ponte para os nosso pensamentos.
Refiro-me a “Outono: lugar frágil” (1993), O silêncio: lugar habitado” (2009)
ou “A incidência da luz” (2011). Mas virão outras peças a impor-se, no seu
devido tempo. Na imensa lista de prémios e livros editados surge um caso,
diferente e singular, nesta obra. Um pequeno livro, em edição de autor, que me
conquistou lentamente, não à primeira. Fez-me ler mais uma vez o relato bíblico
de Marta, irmã de Maria e Lázaro. Textos em delírio poético de uma fina beleza:
“Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos (Cartas de Marta para
Maria” (2007). A poesia de Graça Pires merecia outra atenção da parte do mundo
editorial das editoras de visibilidade sempre presente. Não se pode ignorar
esta escrita que “enche as mãos de tílias para enfeitar a limpidez do olhar.”
Talvez não gostem do brilho desta luz. Desta liberdade, dos “cavalos verdes nas
margens (…)”. Restam-nos as pequenas editoras, como a Lua de Marfim, que em
2013, editou o novo pequeno livro de Graça Pires “Caderno de significados”,
onde roubei algumas expressões. Uma pequena apresentação para quem quer começar
do presente para trás. As leituras pertencem aos leitores. Resumindo, se tal é
possível. Um cosmos rico com uma linguagem própria e única. Graça Pires inventa
o mudo e dá-lhe uma nova linguagem. Como leitor sou um estrangeiro que se deixa
encantar numa terra que faço minha porque estou ali em pleno. Dentro deste
mundo, vivendo cada sinapse, por assim dizer, momento a momento. É pecado
perder alguma coisa.
Sigo os teus passos, caminheiro perdido em cidades sombrias. Não sei manejar as estacas com que te inclinas no abrigo dos alpendres. Mas todos os caminhos me desafiam para o desvario de um lugar, de uma palavra, de um rosto. Como se a linha da vida me cartografasse o olhar. (p. 30)
“Caderno de
Significados” (Lua de Marfim – 2013).
Carlos Teixeira Luís, poeta
Blogue “Histórias do Deserto”, março 2014
A Graça tem uma espantosa
forma de mungir as palavras, de as pensar e de as macerar para que caiam
solenemente no ventre dos livros.
Há sofreguidão nas ideias, que
saltam rebeldes e livres e se acomodam na memória das páginas, ciosas de novos
sons, repletos de sentido. Quanta força resignada ao grito das palavras! Uma
vontade férrea de não descansar o corpo físico para a reinvenção da poesia
uterina até ao renascimento improvável dos vocábulos agrestes de lua cheia.
No desnudar completo do eu, há
um infinito de cheiros e odores frios e agridoces a inundar o outono da vida. E
ei-la decididamente ansiosa de provocações, de libertação dos medos pendentes
da infância adormecida. No uso intencional dos vocábulos pássaros, barcos e
veleiros, a autora parece demonstrar um sentimento e vontade de fugir de si
própria, de voar para além de tudo o que a incomoda.
Um certo atrevimento na
aplicação de determinados adjectivos, fazem brotar novas metáforas a evidenciar
esperanças sonhadoras e combativas. Um vibrar nos momentos de nostalgia sob a
força de uma escrita muito criativa. Parabéns.
E-mail, 9
0utubro 2017
Logotetas
ou fundadores de línguas, assim lhes chamaria Roland Barthes, são-no, em estado
puro, os poetas. Essas novas línguas, tão diversas das outras linguagens,
instauram-se no âmago dos seres e não se oferecem ao estudo linguístico e,
muito menos, são passíveis de regulamentação gramatical. A sua única abordagem
é do domínio da Semiótica e da simbologia textual.
Vem isto a propósito de
duas obras que, gentilmente a nossa amiga e poetisa Graça Pires me
enviou numa oferenda que, publicamente, quero agradecer-lhe. A Graça é. Então
uma logoteta. Nela, a sintaxe é substituída pela criação. Nela, a língua
ilimita-se e, mesmo o lugar das perdas ou das ausências escalonam significantes
e desenham insistências. A poetisa transmuda-se em cenógrafa e as
representações do quotidiano dão-nos a logotesis. O «mar» ou os
«pássaros», «barcos» ou elementos surgidos de uma ruralidade remota tornam-se
fragmentos de inteligível, senhas de acesso a um mundo interior e íntimo.
Espaços, agora vazios, são sinuosidades de uma vida passada e, tantas vezes,
onírica.
Hoje conheço a Graça –
ouso dizê-lo! A Semiótica é o meu olhar sobre o mundo, o meu trunfo de
resistência e de amor. Hoje, amo a Graça, pois sei da utopia que a habita nessa
incessante urdidura da linguagem que procura a humana harmonia.
Aqui vos deixo um dos mais
belos poemas da autora:
Fecho-me no quarto.
Há demasiada luz
espalhada nas paredes
como se viesse o anjo
que anuncia a extinção
das sombras.
De meus lábios,
interditos a preces,
sai uma canção antiga,
um chamamento
à flor da boca.
Um fulgor suspenso
de meus olhos
tece, sem limites,
o tempo da infância.
Como se me perseguisse
um sonho intacto.
“Poemas
escolhidos 1990-2011”, ed. autor, 2012, p. 151
Ana Tapadas professora
Blogue “Rara Avis”, junho
2019