Uma extensa mancha de sonhos. Fafe: Labirinto, 2008
No rasto de Dulcineia
A nova colectânea poética de Graça Pires – uma autora que, com menos de duas décadas de publicar-se em volume, já vai no seu décimo livro – assenta em dois travejamentos essenciais: tem, por um lado, uma configuração discursiva que, embora sem qualquer menção de datas, se aproxima do formato diarístico; e desenha-se, por outro, num manifesto trabalho de despersonalização, numa procurada assumpção dos hipotéticos sentimentos e congeminações de um outro. Ou mais exactamente de uma outra – que é Dulcineia del Toboso, a amada distante de D. Quixote, como bem se sabe.
Ao assumir a suposta
personalidade de Dulcineia – essa figura que Cervantes retratou como «moça
lavradora de muito bom parecer», a viver num indeterminado lugar da região de
la Mancha, próximo do local, também não nomeado, onde vivia o celebrado
cavaleiro andante -, a autora parte para o que também é uma inolvidável
aventura: a de imaginar um «percurso» onde naturalmente se entrevêem alguns
relevos e baixios, pontos luminosos e zonas de escuridão, trilhos desafrontados
e complicados desvios.
Corroborando a asserção,
patente no título de uma das últimas obras de Maria Gabriela Llansol, de que O começo de um livro é precioso,
verifica-se que os dois poemas iniciais deste volume de Graça Pires nos deixam
alguns importantes sinais desse trajecto.
Primeiro sinal, o da
referência à morte de D. Quixote – um passamento verificado após o regresso à
sua casa natal, ocorrido por causas naturais e «sem alarido», como se diz em
texto mais adiante. Estamos perante um indício de que todo o acervo
memorialista e meditativo transposto no livro é posterior às muitas e insólitas
aventuras do cavaleiro de triste figura.
Segundo sinal, o da
caracterização, que se há-de completar noutros momento deste volume – por
exemplo nas páginas 28 e 23 (onde se diz que «foste herói, / foste visionário,
foste poeta») -, do perfil multifacetado e imprevisível de D. Quixote:
E lembro os
dias
em que ouvia
falar
de um homem:
quase um
peregrino,
quase um
nómada,
quase um louco.
Um homem
deambulando
no rumo dos
animais bravios
que povoavam
sua mente.
Terceiro sinal, o de um discreto,
mas implícito remorso frente ao que, no curso dos dias pretéritos, representou
um sentimento de lamentável perda, de inexorável desperdício: «Só agora
descubro / que esteve ao meu alcance / a tua errância», uma errância que, por
ser demasiado excêntrica e na aparência inconsequente, a protagonista também
julgou «absurda / e sem destino».
Quarto e último sinal, o de
que Dulcineia, embora tardiamente, acaba por recolher, com ambas as mãos, toda
a «vasta mancha de sonhos» de que se sente herdeira, ou seja, toda a teia de
nebulosidade, de imagerie e de
loucura que rodeou os passos fantasiosos e inglórios desse cavaleiro protector
das damas, dos fracos, dos desvalidos e dos injustiçados. Na senda desse culto
e até de uma tentativa de identificação com ele, esta Dulcineia de Graça Pires
chega a dizer, noutro passo (p. 17), que «comecei a ler romances de cavalaria».
Repare-se, já agora, no facto curioso e bastante significativo, dessa alargada
«mancha de sonhos» tão intensamente absorvida pela amada de D. Quixote, fazer
parte do próprio título do volume de que estamos a falar…
Singularmente, será ainda
num dos primeiros e mais pujantes textos deste livro (o da p. 12) que vemos bem
contornadas, digamos assim, as intenções e a estratégia de escrita destas
lembranças de Dulcineia, amante apenas virtual ou fictícia, e amada porque
antes do mais esse papel convinha à boa composição do retrato do cavaleiro:
Ponho nestas
memórias
a íntima
clandestinidade
dos amantes.
Hei-de dizer o
nome
de quantas
aves se perderam
por roçarem o
vazio da noite
em vagaroso
voo.
Hei-de ocultar
a cara
próximo de uma
fonte,
para colar a
boca
ao trilho das
chuvas
(…)
Depois, sei
que vou estremecer de aflição
quando o
ranger das portas se confundir
com o
chamamento da tristeza.
Como se vê, insinua-se em
certos momentos desta parcial transcrição, mormente nos versos finais, uma tristeza e uma aflição que anunciam desalento, recessão psicológica. Embora por
vezes sob outros signos – como, por exemplo, os de mágoa, exílio, sombra, luto ou penumbra
-, tal registo está largamente disseminado neste livro.
Diga-se, todavia, que, em
contraste com sinalizações amiúde correspondentes a uma consciência de
desolação e ruína, também na obra desta autora ficam patentes numerosos
sintomas de frescura, de luminosidade alusiva, de vitalidade. Estão nesse caso
não poucas passagens do volume entre os quais me permito destacar estes dois
impressivos versos, oriundos do poema acabado de mencionar: «Hei-de cercar com
águas / nocturnas o lume dos seios» (p. 12). Como estão nesse caso outros
versos ou imagens que, reportando vocábulos como boca, beijos, lábios, braços, ancas ou ombros, transportam, no contexto, algumas formulações de abrasiva
fremência, de uma inequívoca sensualidade. Isto quer dizer que, não obstante a
presença de alguns vultos ameaçadores – como a prolongada tortura de uma «sede
lenta» (p. 14) ou o severíssimo castigo que é a «morte dos desejos» (p. 26) –
esta Dulcineia impede que fique no esquecimento a voz e o seu instinto de
corporalidade, ainda que tardia, isto é, o agitar de um vezo amoroso que,
naturalmente, reclama plenitude.
Leia-se, a terminar, a
versão integral de um curto poema deste livro de Graça Pires. Por sinal um dos
textos que, supomos, mais parece alhear-se da trama quixotesca:
Pinto na
janela a tormenta
de um mar
imaginado.
De costas para
a lua
preparo a
minha fuga.
Enrolo à volta
do corpo
a primeira
onda:
a derradeira
âncora
para roçar na
boca
o lamento
verde
das marés.
Imbuído, como fica bem à
vista, por uma clara referenciação marítima,
essa composição talvez chegue para ilustrar uma poética que, sendo discreta e
despretensiosa arquitectura, está longe de ser simplista; que, recusando o
discurso meramente narrativo, linear, se compraz, e com desenvoltura, numa
expressão de cariz transfigurador. Uma poética, enfim, onde vitoriosamente se
conciliam segurança oficinal e ajustada plasticidade metafórica.
João Rui de
Sousa, escritor
No lançamento do livro, 19 abril
de 2008
Vila Nova de Gaia, 14 abril 2008
Querida Amiga:
Como nos seus outros livros nada nesta sua “extensa mancha de sonhos” é dissonante, agreste. A voz flui, serena, mansa, sem alteração de tom, num ritmo de solilóquio, embora haja (quase) sempre um tu subentendido. São poemas de ausência, ainda, de distância. De saudade da infância, da pureza dos gestos que ela guarda no seu seio ou de que é depositário e onde o sonho é presença continuada. E há os sinais da morte, essa que vamos morrendo lentamente (“Eu aqui, morrendo aos poucos”, diz num dos poemas). A nossa morte. A do outro. A dos outros. E há, enfim, “as aves que se perderam, no “vazio da noite”. Ou, numa imagem de rara beleza, “a boca devorando a própria fome”
Bem-haja.
Um abraço afectuoso do
Albano Martins, escritor
Carta manuscrita
A nomeação do amor é
transversal a toda a criatividade de Graça Pires que surge com o décimo livro: Uma
Extensa Mancha de Sonhos. Quatro de dezenas de poemas nos quais se projecta
a personagem Dulcineia, a mulher amada por D. Quixote na inesquecível novela de
Cervantes. Graça Pires leva a dimensão metafórica e a interacção dos elementos
líricos a um desempenho surpreendente tanto no que respeita à plasticidade do
verso e à tensão do poema como à agilidade comunicacional do eu-profundo.
Palavra do sensível e do engenho da síntese, o corpo-físico e o imaginário,
indissociáveis comungam o deleite da transfiguração numa poesia depurada,
cristalina, só aparentemente fácil, pois é inquestionável a “segurança
oficinal” a que se referiu o poeta João Rui de Sousa ao apresentar a obra.
Distinguida com diversos
prémios, em Uma Extensa Mancha de
Sonhos Graça Pires oferece-nos matéria poética como “um curso de água / à
beira do verão”.
Maria Augusta Silva, jornalista
“Diário de Notícias, Supl.
NS, 14 junho 2008
Cara Graça,
Às vezes a perda é uma viagem, uma viagem para poder explicá-la. E leio uma mancha de sonhos e vejo que o vazio da recordação é um corpo morto, mas um corpo no que morou a vida que pode ser vivida na luz. Mas também quero falar da voz que queda, da voz que olha os espaços vazios das presenças, da voz que pergunta, da voz que reconstrói o amor quebrado como um vidro claro. Essa voz já não espera, porque a única certeza é a morte, o seu silêncio. E não há palavras. Nada é consolador porque sempre vai faltar o que se pergunta. A certeza do ausente, a dor de uma Penélope, que não tem mais tecido que possa desfazer e fazer…
“Uma mancha de sonhos” é um
livro que sempre irá comigo. Tenho uma história muito próxima…
Não pude ainda enviar-te os
meus livros (peço-te desculpas pela minha falta de tempo, embora pensasse cada
dia na vontade de leres as minhas palavras, de estar mais perto) mas desde hoje
que estou de férias vou poder, porque tenho vontade de encontrares neles tudo
do que falo e que já sei que compreendes porque tu também falas disso.
E depois soube que a noite
podia incendiar-se nos meus olhos. Os versos fizeram-se físicos em mim. Não foi
difícil. “No dia em que pensei escrever-te, as palavras começaram a doer-me”.
Soube, de novo, que as palavras doem, mas não o seu corpo de voz e vento,
também não as letras que as fazem. Doem quando dão luz a coisas que se foram
embora. Palavras como um rito iniciático, como os jovens que depuravam antes de
saber o segredo dos deuses e depois já não podiam falar. Esse nada, esse
segredo, essa dor que nos faz mais puros às vezes. Assim é o amor que eu vi no
livro.
[…] E agora envio-te um
abraço e desejo-te toda a luz do mundo nestes dias e sempre
Marta Lopez
Vilar, poeta
E-mail, 23 dezembro 2008