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sábado, 6 de dezembro de 2025

DA SUBLIMAÇÃO DA SIMPLICIDADE

 

                                                        Pintura de Sílvia Mota Lopes




Conheci a Graça há cerca de 15 anos. O meu primeiro contacto foi com a sua palavra escrita, através do seu blogue, “Ortografia do Olhar”.

Recordo-me ainda do impacto do primeiro poema. Fui sacudida por um susto feliz, um espanto profundo, qual advertência, um recordatório da minha capacidade de sentir o eco ampliado de um poema.

Foi desde sempre este poder que me cativou na sua poesia. Impossível não acolher no coração o vibrante ritmo da sua ondulação, impossível não lhe abrir as artérias dos sentidos e deixá-la fluir por tudo quanto em nós é vida.

Comecei desde logo a olhá-la como uma “mãe poética”, queria ser como ela quando “crescesse”. A sua forma única de sublimar a simplicidade, de desconstruir as emoções e com os destroços reconstruir poemas repletos de significados profundos, não é algo que encontremos com frequência. Na poesia de Graça Pires tudo é genuíno e puro, não há filtros fúteis, nem buscas intelectualmente acessórias para nos distrair do essencial. Tudo é poesia no seu estado mais depurado, sem interferências de outra ambição que não a do “grito” poético. As aspas servem aqui para ressalvar que o seu grito, às vezes tão doído, quase sempre inconformado, pontualmente feliz, é, em tantos momentos, quase mudo, e, noutros, quase silêncio, de tão fundo nos cai na alma.

O primeiro encontro com a pessoa para lá da poeta trouxe-me uma lágrima de alegria. O abraço em que nos encontramos é sempre terno, emocionado, desde sempre até hoje.

Sou sua editora desde 2014, desde o seu maravilhoso livro Espaço livre com barcos, onde somos assoberbados com esta avassaladora síntese biográfica:

Eu te baptizo em nome do mar,

disse minha mãe com barcos na voz. E as ondas enlearam nas águas o meu nome, abrindo nas fendas do corpo um impulso salgado que me brandiu o sangue. Sei agora que há âncoras afogadas nos meus olhos: nítido eco de todas as demandas.

Aquando da apresentação do seu livro O improviso de viver, referi-me a essa obra como uma “uma incursão pela vida, pela sua intensidade, pelos seus meandros e enredos, pelas memórias, pelas coisas do mundo, também, pelo que dói, às vezes, no mundo”.

Qual o som do mar me questiono

qual o som do mar tão saturado de mortos?

Que sinos soarão por eles?

Quem fará a oração o sinal da cruz o requiem?

Penso que esta consideração se poderá aplicar a toda a obra desta autora tão inteira e íntegra, tão consciente de si e da humanidade.

Há pessoas que apenas por entrarem na nossa vida nos mudam, não por algo que façam, mas simplesmente pelo que são. E não mudam o nosso comportamento, ou a nossa atitude perante o mundo, ou a nossa visão das coisas. Mudam a forma da nossa alma, acrescentam linhas aos seus contornos.

A Graça é uma dessas pessoas, e por isso lhe serei eternamente grata, e por isso é indizível a minha admiração por ela.

Virgínia do Carmo, Poeta e Editora

In: Rostos inabaláveis, Lisboa: Poética, 2015, p. 70-72