Era madrugada em Lisboa: louvor a um dia com tantos dias dentro. Lisboa: Poética, 2024
Era madrugada em Lisboa:
Louvor a um dia com tantos dias dentro
Graça
Pires
Debati-me comigo e com a minha
claridade, com as minhas sombras, tentei resgatar o animal emocional que já fui
e tentar começar a apresentação do livro” Era madrugada em Lisboa, como convém,
temperadamente, da forma mais serena e circunstancial que um acontecimento
destes exige.
Disse para mim mesma- vá lá,
faz um esforçozinho e concentra-te no essencial que é a poética do livro e
rescinde contrato com o demais- Mas eu, sou a Luísa, apenas a Luísa, sem as
competências académicas que uma critica literária teria para balizar esta obra sob
a perspetiva ajustada, e fazê-lo, - como a enorme autora – a minha querida
Graça- merece. Sei, no entanto, que ao lado das minhas dúvidas crescem árvores
com as suas raízes antiquíssimas e que se estendem sobre a minha identidade, me
atiçam a memória, o que não me deixa alterar a voz do sangue. A minha voz. E esse é o meu argumento. Ter, também eu,
vivido este dia!
Mas, se me permitem, vamos
recuar um pouco, não tão pouco assim, para lhes contar o episódio que me deu a
conhecer a poesia da Graça Pires.
Foi no ano de 2007, e
aconteceu acidentalmente, - aliás como acontecem muitas coisas boas na minha
vida- numa biblioteca pública em Alenquer. Levou-me lá a circunstância de estar
a acompanhar uma pessoa que lia, como eu, poesia, mas nesse dia, estava à
procura de uma obra de filosofia. Enquanto esperava decidi folhear um ou outro
livro na secção de poesia. Puxei um, não me disse nada. Peguei outro. Li um
primeiro poema, o segundo, virei a página e continuei assombrada com a beleza
metafórica, com a elegância imagética na construção do poema e, sobretudo, com
um eu poético que nos leva a uma viagem infinita pelas sombras e pela claridade,
num diálogo permanente onde o eu existe como reflexo do mundo. Onde o silêncio
é o abrigo de todas as dores, mas é também o lugar onde as memórias reconstroem
o caminho do presente. E há o rio, esse rumor clandestino de vida, como
movimento permanente que purifica e renasce. E há o mar… o mar como alimento,
onde, quando se adoece, se descansa o olhar e se resgata da morte,
Foi breve a minha leitura e
antes de me chamarem, só tive tempo de reter na memória o nome da autora: Graça
Pires. Não podia requisitar o livro- estava muito longe de casa, por isso
escrevi num papelinho o nome da autora- não fosse a memória trair-me- para o
procurar em Estarreja, na Biblioteca Municipal. Não encontrei e, entretanto,
sem acesso a tempo e aos meios de que hoje disponho, acabei por deixar a
procura de lado. Porém, sempre que lia poesia, não conseguia deixar de lembrar aqueles
poucos poemas lidos, e onde o eu se decifra em demanda permanente. Uma poesia
que nos arranha e interroga, que nos descompõe, uma poesia com tal força que me
havia atravessado a alma.
Entretanto, talvez um ou dois
anos depois, criei uma página onde publicava alguns textos e um dia reencontrei
a Graça Pires. Aquela autora…era ela e tinha deixado um comentário no meu
texto!
Já passaram muitos anos, a
minha admiração pela autora aumentou exponencialmente à medida que conhecia a
sua vasta obra poética e uma amizade profundamente afetiva, é hoje a razão de
eu estar aqui. Porque só um carinho gigante me faria vir aqui, eu que sou
tímida e, em verdade, um desastre a falar em público.
Ah, já existem livros da Graça
Pires na Biblioteca de Estarreja.
Eu própria os entreguei, oferecidos gentilmente pela Graça.
Mas vamos então falar sobre o
livro que nos trouxe aqui?
E convido todos os presentes à
reflexão e à possível explicação do que entendo ser, “Era madrugada em Lisboa”
louvor a um dia com tantos
dias dentro.
O subtítulo é, por si só, um
hino. Um hino ao tempo, à transgressão do lógico e uma metáfora à medida como
se vive a existência. Onde cabem todos os homens, todas as emoções, todas as
possibilidades.
Dizem os entendidos, que as emoções profundas,
geram torrentes de palavras e se é verdade que cada imagem vale mil palavras, não
menos verdadeiro é que, cada palavra se multiplica em imagens, quando nos
ancoramos nas memórias que cada uma delas nos sugere E, quando são genuinamente
emocionais, as palavras não têm prazo de validade, as imagens não têm prazo de
validade. Neste livro de 25 poemas que a autora dedica aos capitães de abril e
a todas as pessoas que amam a liberdade, cabem milhões e milhões de imagens.
Vamos chamar-lhe relâmpago?
A autora abre a sua narrativa
poética aludindo ao poema de Sophia de Mello Breyner, que todos conhecemos.
Esta é a madrugada que eu
esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do
silêncio
E livres habitamos a
substância do tempo
E é desta matéria substantiva,
que perdurará no tempo da história e no tempo dos homens, o que as palavras da
autora sugerem logo no poema primeiro deste livro.
Quando li os primeiros versos
do poema sequente ao maravilhoso poema de Sophia, fui remetida, logo de
imediato, para Manuel Alegre e o seu poema “Trova do vento que passa” onde se constata
o longo inverno (que inevitavelmente conduz à morte) em que Portugal agonizava,
sem encruzilhadas de esperança, - embora pairasse um rumor, de quando em quando,
de uma clandestina e almejada primavera- mas que depressa se transformava em queixume
aflito de quem vê um país a definhar, e suplica por um milagre.
Apropriei-me de 2 das 16 quadras
estrondosamente interpretadas por Adriano Correia de Oliveira, para estabelecer
a analogia poética.
E
a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.
E
diz ainda o poeta Manuel Alegre
Mas
há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.
Peco-lhes a atenção para o
poema que a Margarida vai ler.
Sem prazo, sem aviso, sem detença,
aconteceu em abril
o mais esperado tempo
e, com ele, o cheiro
da terra que nos pertence.
No contorno deste chão
um grito abraçou o povo comovido
com o assombro e com os cravos.
Reinventaram-se os sonhos
e as palavras fraternas.
Era madrugada em Lisboa.
E o dia captou a dádiva da luz matinal
para que cintilasse no olhar de toda a
gente.
No clamor de cada rua,
a palavra liberdade
passou de boca em boca,
até ao enrouquecimento da alegria.
A primeira estrofe do poema de Era madrugada
em Lisboa “envia-nos” de imediato, literalmente” numa máquina do tempo, para esse
tempo de espera por alguma coisa que venha quebrar o ciclo desse inverno sem
fim à vista. O poema termina em festa, com a alusão à dádiva de uma luz matinal
que cintila de uma forma absoluta, inequívoca, que toma de assalto o olhar, o
corpo, a voz, /até ao enrouquecimento da alegria!
Mais
à frente, a poeta diz: Um punhal de transgressão/ derrubou muros antigos/
e o impossível alento foi possível.
Numa referência clara aos capitães de abril, a poeta confirma o que já
se intuía nas forças armadas, descontentes com a situação política no país e
com a longevidade da guerra do Ultramar, que deixava filhos órfãos, mães
permanentes de luto. Estavam distraídos os deuses, / ou encontraram os
homens, / a justa medida / da sorte que escolheram? / Aberta a porta a esta interrogação, a voz
poética é convicta, quando afirma que esta ousadia, foi o degelo de uma estação
que tolhia a vida. E que esta ousadia foi
absolutamente redentora e os seus protagonistas jamais podem ser esquecidos.
Leitura
do 2º poema
Eram militares.
Eram jovens.
Carregavam no peito
o peso da arma e do receio.
Quantos rezaram?
Quantos choraram?
Quantos vacilaram?
O retrato dos filhos perto do coração.
A imagem da mulher a cercar-lhes o
corpo.
As mãos das mães cheias de bênçãos.
E todos tão cheios de coragem!
Mas
até a claridade tem os seus esboços de sombra e eles também estão na voz poética,
traduzindo a tensão que, por instantes, digo instantes, porque na dimensão
desmesurada deste dia de deslumbre, não há objetividade na contagem do tempo. O
tempo é a alegria delirante do povo, é a certeza que o homem faz o tempo dos
seus sonhos. É quando, frente a frente, os camaradas se confrontam, uns a
abrir-se à definitiva claridade, outros ainda sob o jugo da servidão. Num poema
repleto de metáforas, haverá nos céus comuns, possibilidade de harmonia?! Ouvimos
a voz da poeta dizer este receio. Duas notas discordantes que acordam o poema e
lhe sobem a vitalidade na progressão dos versos. De repente os pombos
negros / volteiam em círculos / junto à ribeira das naus / Num
círculo maior / os pombos brancos / sobrevoam o terreiro do paço/ A linha curva
traçada em lento rodopio / como se fosse misterioso, / cabalístico, enigmático
/ o volteio circular dos pombos/.
Insinua-se
aqui, o ranger das dobradiças enquanto a janela não se escancara para deixar
entrar a luz definitiva. Podemos dar-lhe um nome, podemos dar-lhe um rosto. A
autora dá-lhe a essência e o momento decisório, nas palavras que a seguir se
vão ouvir
Leitura
do poema 3
Suava-lhe na mão a
granada
que apertava com
destemor.
Sentia colado na
farda
o peso de um país
em esperança, em
deriva.
No seu olhar era
tão nítida a coragem,
que as armas de
fogo
prontas a disparar
se renderam.
Houve quem
abraçasse o capitão.
E todos o
respeitaram.
E muitos lhe chamaram
companheiro.
E
ainda assim o Tejo corria mansamente, alheio ao dilema dos homens, como a
corrente inexorável da vida,
E quem chegava e empoderava os momentos,
carregadas de simbolismo e de futuro?! As mulheres! As mulheres com a sua força
e o seu equilíbrio. Elas que carregavam braçadas de cravos rubros, vitais e
sólidas naquela paisagem humana que se queria inteira. As mulheres fecundas,
preponderantes em toda a obra poética da autora, chegam e multiplicam-se em
generosidade e paixão oferecendo a flor da alegria que contagiou as multidões. Os cravos fecundaram os sorrisos de esperança
e até os meninos sabiam que era através dele que o futuro se pressentia. Um
menino silenciava a morte da metralhadora com uma flor de liberdade. E se já
referi que este livro tem milhões e milhões de imagens, esta, de Sérgio
Guimarães ficou como símbolo inequívoco de vida e liberdade. Mas foram tantos e
tantos os registos que ficaram a solidificar o olhar da memória…Eduardo
Gageiro, Alfredo cunha, etc, etc, deixaram-nos testemunhos físicos de beleza
arrepiante.
No olhar da multidão, florescia um verão de
contentamento. Nos soldados, nos passantes, nas raparigas, nas ruas, um aroma a
puxar a liberdade.
Leitura
do poema 4
Não havia na cidade
sítio algum
onde não cheirasse
a cravos.
Na praia, na relva,
no campo,
na prumada das
casas cheirava a cravos.
Cada mulher, cada
homem, cada criança
tinha no hálito e
no suor o mesmo aroma.
Os cravos cresciam
nas calçadas mais íngremes,
nos becos mais
escuros, no asfalto,
nas mãos dos
soldados e dos meninos,
nas janelas, nos
alpendres, nas portas.
E irrompiam em
todos os sorrisos,
como se fossem um
clarão de esperança.
Tanto tempo à
espera deste dia!
“Unia-se
o povo para não mais ser vencido”, relata a autora. E essa promessa, é mais
que uma promessa, - porque de tão evidente no rosto de todos, não deixava
margem para recuos, - cantou-se em uníssono, espelhou-se nas águas do Tejo e propagou-se nas “trovas do vento que passa “estendendo ao
mundo notícias de um país em Liberdade.! E as mulheres fecundas e prenhes de
esperança falavam…
Leitura do poema 5
Um brilho
inigualável roçava
os olhos das
mulheres grávidas.
De respiração
descompassada,
a insurgir o brado
libertado dos seios,
passavam umas às
outras a palavra:
“vamos parir em
liberdade”.
Dava-lhes tanta
calma essa certeza,
que a certeza
ganhou voz
e, a um tempo
chorando,
a um tempo rindo,
repetiam:
“vamos parir em
liberdade”.
Estes
25 poemas de “Era madrugada em Lisboa- Louvor a um dia com tantos dias dentro”
é uma arqueologia das emoções de quem teve a felicidade e o privilégio de o
vivenciar. E honra o passado, porque só o honrando e explicando se consegue
construir o futuro.
Estes podem ser, - para
alguns- os poemas simples, na obra a que a poeta nos habituou, mas, para mim,
são a poesia do instante ou, em melhor definição, e penitenciando-me por ir
roubar à nossa também poeta e editora presente, Virgínia do Carmo, o título de
um livro seu, Poemas simples para corações inteiros!
Para mim, falar deste livro é
falar de um alfabeto luminoso!
É falar, como disse, de uma
arqueologia de emoções.
É falar de pele e suor. De
lágrimas e riso, de fígado, de pulmão, de coração!
É falar da sagração de uma
primavera sonhada. De todas as estações de que se alimenta a memória e a
emoção.
É falar de rios e caminhos,
que transbordam, que levam mágoas e desgraças, mas que acertam finalmente um
céu para as aves.
É falar de Salgueiro Maia, é
falar dos cravos nas metralhadoras, é falar de um futuro que vai ser medida na esperança
das mães.
É o pulsar dos cravos que
acende a redenção, como o sangue ou a vital respiração.
É chorar quando se abraça e
gritar, gritar uma alegria desmedida que figura como espelho da cidade, da
aldeia, do país inteiro...
É acertar o tempo,
desacertando o relógio. É fulgor, pulsar e amar, incondicionalmente, a liberdade
que chegou e tem de ficar...
É, sobretudo, uma voz plural!
De muitos, de tantos, que por mais que passem anos e anos, na voz coletiva do
povo e na voz afirmativa da autora se pode cantar, “Foi bonita a festa,
pá!”
Luísa Henriques
Lisboa, 07 de abril de 2024
No lançamento de “Era madrugada em Lisboa: louvor a um dia com tantos dias dentro”