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segunda-feira, 8 de abril de 2024

ERA MADRUGADA EM LISBOA: LOUVOR A UM DIA COM TANTOS DIAS DENTRO

 


Era madrugada em Lisboa: louvor a um dia com tantos dias dentro. Lisboa: Poética, 2024


Era madrugada em Lisboa:

Louvor a um dia com tantos dias dentro

Graça Pires

 

Debati-me comigo e com a minha claridade, com as minhas sombras, tentei resgatar o animal emocional que já fui e tentar começar a apresentação do livro” Era madrugada em Lisboa, como convém, temperadamente, da forma mais serena e circunstancial que um acontecimento destes exige.

Disse para mim mesma- vá lá, faz um esforçozinho e concentra-te no essencial que é a poética do livro e rescinde contrato com o demais- Mas eu, sou a Luísa, apenas a Luísa, sem as competências académicas que uma critica literária teria para balizar esta obra sob a perspetiva ajustada, e fazê-lo, - como a enorme autora – a minha querida Graça- merece. Sei, no entanto, que ao lado das minhas dúvidas crescem árvores com as suas raízes antiquíssimas e que se estendem sobre a minha identidade, me atiçam a memória, o que não me deixa alterar a voz do sangue. A minha voz.  E esse é o meu argumento. Ter, também eu, vivido este dia!

Mas, se me permitem, vamos recuar um pouco, não tão pouco assim, para lhes contar o episódio que me deu a conhecer a poesia da Graça Pires.

Foi no ano de 2007, e aconteceu acidentalmente, - aliás como acontecem muitas coisas boas na minha vida- numa biblioteca pública em Alenquer. Levou-me lá a circunstância de estar a acompanhar uma pessoa que lia, como eu, poesia, mas nesse dia, estava à procura de uma obra de filosofia. Enquanto esperava decidi folhear um ou outro livro na secção de poesia. Puxei um, não me disse nada. Peguei outro. Li um primeiro poema, o segundo, virei a página e continuei assombrada com a beleza metafórica, com a elegância imagética na construção do poema e, sobretudo, com um eu poético que nos leva a uma viagem infinita pelas sombras e pela claridade, num diálogo permanente onde o eu existe como reflexo do mundo. Onde o silêncio é o abrigo de todas as dores, mas é também o lugar onde as memórias reconstroem o caminho do presente. E há o rio, esse rumor clandestino de vida, como movimento permanente que purifica e renasce. E há o mar… o mar como alimento, onde, quando se adoece, se descansa o olhar e se resgata da morte,

Foi breve a minha leitura e antes de me chamarem, só tive tempo de reter na memória o nome da autora: Graça Pires. Não podia requisitar o livro- estava muito longe de casa, por isso escrevi num papelinho o nome da autora- não fosse a memória trair-me- para o procurar em Estarreja, na Biblioteca Municipal. Não encontrei e, entretanto, sem acesso a tempo e aos meios de que hoje disponho, acabei por deixar a procura de lado. Porém, sempre que lia poesia, não conseguia deixar de lembrar aqueles poucos poemas lidos, e onde o eu se decifra em demanda permanente. Uma poesia que nos arranha e interroga, que nos descompõe, uma poesia com tal força que me havia atravessado a alma.

Entretanto, talvez um ou dois anos depois, criei uma página onde publicava alguns textos e um dia reencontrei a Graça Pires. Aquela autora…era ela e tinha deixado um comentário no meu texto!

Já passaram muitos anos, a minha admiração pela autora aumentou exponencialmente à medida que conhecia a sua vasta obra poética e uma amizade profundamente afetiva, é hoje a razão de eu estar aqui. Porque só um carinho gigante me faria vir aqui, eu que sou tímida e, em verdade, um desastre a falar em público.

Ah, já existem livros da Graça Pires na Biblioteca de Estarreja.
Eu própria os entreguei, oferecidos gentilmente pela Graça.

Mas vamos então falar sobre o livro que nos trouxe aqui?

E convido todos os presentes à reflexão e à possível explicação do que entendo ser, “Era madrugada em Lisboa”

louvor a um dia com tantos dias dentro.

O subtítulo é, por si só, um hino. Um hino ao tempo, à transgressão do lógico e uma metáfora à medida como se vive a existência. Onde cabem todos os homens, todas as emoções, todas as possibilidades.

 Dizem os entendidos, que as emoções profundas, geram torrentes de palavras e se é verdade que cada imagem vale mil palavras, não menos verdadeiro é que, cada palavra se multiplica em imagens, quando nos ancoramos nas memórias que cada uma delas nos sugere E, quando são genuinamente emocionais, as palavras não têm prazo de validade, as imagens não têm prazo de validade. Neste livro de 25 poemas que a autora dedica aos capitães de abril e a todas as pessoas que amam a liberdade, cabem milhões e milhões de imagens.

Vamos chamar-lhe relâmpago?

A autora abre a sua narrativa poética aludindo ao poema de Sophia de Mello Breyner, que todos conhecemos.

Esta é a madrugada que eu esperava

O dia inicial inteiro e limpo

Onde emergimos da noite e do silêncio

E livres habitamos a substância do tempo

E é desta matéria substantiva, que perdurará no tempo da história e no tempo dos homens, o que as palavras da autora sugerem logo no poema primeiro deste livro.

Quando li os primeiros versos do poema sequente ao maravilhoso poema de Sophia, fui remetida, logo de imediato, para Manuel Alegre e o seu poema “Trova do vento que passa” onde se constata o longo inverno (que inevitavelmente conduz à morte) em que Portugal agonizava, sem encruzilhadas de esperança, - embora pairasse um rumor, de quando em quando, de uma clandestina e almejada primavera- mas que depressa se transformava em queixume aflito de quem vê um país a definhar, e suplica por um milagre.

Apropriei-me de 2 das 16 quadras estrondosamente interpretadas por Adriano Correia de Oliveira, para estabelecer a analogia poética.

 

E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.

E diz ainda o poeta Manuel Alegre

 

Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Peco-lhes a atenção para o poema que a Margarida vai ler.


Sem prazo, sem aviso, sem detença,

aconteceu em abril

o mais esperado tempo

e, com ele, o cheiro

da terra que nos pertence.

No contorno deste chão

um grito abraçou o povo comovido

com o assombro e com os cravos.

Reinventaram-se os sonhos

e as palavras fraternas.

Era madrugada em Lisboa.

E o dia captou a dádiva da luz matinal

para que cintilasse no olhar de toda a gente.

No clamor de cada rua,

a palavra liberdade

passou de boca em boca,

até ao enrouquecimento da alegria.

 

A primeira estrofe do poema de Era madrugada em Lisboa “envia-nos” de imediato, literalmente” numa máquina do tempo, para esse tempo de espera por alguma coisa que venha quebrar o ciclo desse inverno sem fim à vista. O poema termina em festa, com a alusão à dádiva de uma luz matinal que cintila de uma forma absoluta, inequívoca, que toma de assalto o olhar, o corpo, a voz, /até ao enrouquecimento da alegria!

Mais à frente, a poeta diz: Um punhal de transgressão/ derrubou muros antigos/ e o impossível alento foi possível.  Numa referência clara aos capitães de abril, a poeta confirma o que já se intuía nas forças armadas, descontentes com a situação política no país e com a longevidade da guerra do Ultramar, que deixava filhos órfãos, mães permanentes de luto. Estavam distraídos os deuses, / ou encontraram os homens, / a justa medida / da sorte que escolheram? /   Aberta a porta a esta interrogação, a voz poética é convicta, quando afirma que esta ousadia, foi o degelo de uma estação que tolhia a vida.  E que esta ousadia foi absolutamente redentora e os seus protagonistas jamais podem ser esquecidos.

Leitura do 2º poema


Eram militares.

Eram jovens.

Carregavam no peito

o peso da arma e do receio.

Quantos rezaram?

Quantos choraram?

Quantos vacilaram?

O retrato dos filhos perto do coração.

A imagem da mulher a cercar-lhes o corpo.

As mãos das mães cheias de bênçãos.

E todos tão cheios de coragem!

 

Mas até a claridade tem os seus esboços de sombra e eles também estão na voz poética, traduzindo a tensão que, por instantes, digo instantes, porque na dimensão desmesurada deste dia de deslumbre, não há objetividade na contagem do tempo. O tempo é a alegria delirante do povo, é a certeza que o homem faz o tempo dos seus sonhos. É quando, frente a frente, os camaradas se confrontam, uns a abrir-se à definitiva claridade, outros ainda sob o jugo da servidão. Num poema repleto de metáforas, haverá nos céus comuns, possibilidade de harmonia?! Ouvimos a voz da poeta dizer este receio. Duas notas discordantes que acordam o poema e lhe sobem a vitalidade na progressão dos versos. De repente os pombos negros / volteiam em círculos / junto à ribeira das naus /   Num círculo maior / os pombos brancos / sobrevoam o terreiro do paço/ A linha curva traçada em lento rodopio / como se fosse misterioso, / cabalístico, enigmático / o volteio circular dos pombos/.

Insinua-se aqui, o ranger das dobradiças enquanto a janela não se escancara para deixar entrar a luz definitiva. Podemos dar-lhe um nome, podemos dar-lhe um rosto. A autora dá-lhe a essência e o momento decisório, nas palavras que a seguir se vão ouvir

 

Leitura do poema 3

  

Suava-lhe na mão a granada

que apertava com destemor.

Sentia colado na farda

o peso de um país

em esperança, em deriva.

No seu olhar era tão nítida a coragem,

que as armas de fogo

prontas a disparar se renderam.

Houve quem abraçasse o capitão.

E todos o respeitaram.

E muitos lhe chamaram companheiro.

 

E ainda assim o Tejo corria mansamente, alheio ao dilema dos homens, como a corrente inexorável da vida,

 E quem chegava e empoderava os momentos, carregadas de simbolismo e de futuro?! As mulheres! As mulheres com a sua força e o seu equilíbrio. Elas que carregavam braçadas de cravos rubros, vitais e sólidas naquela paisagem humana que se queria inteira. As mulheres fecundas, preponderantes em toda a obra poética da autora, chegam e multiplicam-se em generosidade e paixão oferecendo a flor da alegria que contagiou as multidões.  Os cravos fecundaram os sorrisos de esperança e até os meninos sabiam que era através dele que o futuro se pressentia. Um menino silenciava a morte da metralhadora com uma flor de liberdade. E se já referi que este livro tem milhões e milhões de imagens, esta, de Sérgio Guimarães ficou como símbolo inequívoco de vida e liberdade. Mas foram tantos e tantos os registos que ficaram a solidificar o olhar da memória…Eduardo Gageiro, Alfredo cunha, etc, etc, deixaram-nos testemunhos físicos de beleza arrepiante.

  No olhar da multidão, florescia um verão de contentamento. Nos soldados, nos passantes, nas raparigas, nas ruas, um aroma a puxar a liberdade.

Leitura do poema 4

 

Não havia na cidade sítio algum

onde não cheirasse a cravos.

Na praia, na relva, no campo,

na prumada das casas cheirava a cravos.

Cada mulher, cada homem, cada criança

tinha no hálito e no suor o mesmo aroma.

Os cravos cresciam nas calçadas mais íngremes,

nos becos mais escuros, no asfalto,

nas mãos dos soldados e dos meninos,

nas janelas, nos alpendres, nas portas.

E irrompiam em todos os sorrisos,

como se fossem um clarão de esperança.

Tanto tempo à espera deste dia!

 

  “Unia-se o povo para não mais ser vencido”, relata a autora. E essa promessa, é mais que uma promessa, - porque de tão evidente no rosto de todos, não deixava margem para recuos, - cantou-se em uníssono, espelhou-se nas águas do Tejo e propagou-se nas “trovas do vento que passa “estendendo ao mundo notícias de um país em Liberdade.! E as mulheres fecundas e prenhes de esperança falavam…

Leitura do poema 5

Um brilho inigualável roçava

os olhos das mulheres grávidas.

De respiração descompassada,

a insurgir o brado libertado dos seios,

passavam umas às outras a palavra:

“vamos parir em liberdade”.

Dava-lhes tanta calma essa certeza,

que a certeza ganhou voz

e, a um tempo chorando,

a um tempo rindo, repetiam:

“vamos parir em liberdade”.

 

Estes 25 poemas de “Era madrugada em Lisboa- Louvor a um dia com tantos dias dentro” é uma arqueologia das emoções de quem teve a felicidade e o privilégio de o vivenciar. E honra o passado, porque só o honrando e explicando se consegue construir o futuro.

            

Estes podem ser, - para alguns- os poemas simples, na obra a que a poeta nos habituou, mas, para mim, são a poesia do instante ou, em melhor definição, e penitenciando-me por ir roubar à nossa também poeta e editora presente, Virgínia do Carmo, o título de um livro seu, Poemas simples para corações inteiros!

Para mim, falar deste livro é falar de um alfabeto luminoso!

É falar, como disse, de uma arqueologia de emoções.

É falar de pele e suor. De lágrimas e riso, de fígado, de pulmão, de coração!

É falar da sagração de uma primavera sonhada. De todas as estações de que se alimenta a memória e a emoção.

É falar de rios e caminhos, que transbordam, que levam mágoas e desgraças, mas que acertam finalmente um céu para as aves.

É falar de Salgueiro Maia, é falar dos cravos nas metralhadoras, é falar de um futuro que vai ser medida na esperança das mães.

É o pulsar dos cravos que acende a redenção, como o sangue ou a vital respiração.

É chorar quando se abraça e gritar, gritar uma alegria desmedida que figura como espelho da cidade, da aldeia, do país inteiro...

É acertar o tempo, desacertando o relógio. É fulgor, pulsar e amar, incondicionalmente, a liberdade que chegou e tem de ficar...

É, sobretudo, uma voz plural! De muitos, de tantos, que por mais que passem anos e anos, na voz coletiva do povo e na voz afirmativa da autora se pode cantar, “Foi bonita a festa, pá!”

 

Luísa Henriques

Lisboa, 07 de abril de 2024

 

No lançamento de “Era madrugada em Lisboa: louvor a um dia com tantos dias dentro

                                                        


Há momentos ímpares!
Estar presente na apresentação de mais um livro da estimada amiga e poeta Graça Pires, foi uma honra imensa, e um canto à comemoração dos 50 anos de um Abril marcante.
Edição de POÉTICA GRUPO EDITORIAL, um livro apelativo e dimensionado ao traço de Graça Pires.
Lido numa noite, momentos houve ... bem tocantes, ao lembrar-me do meu "poiso" como militar nas terras da Guiné Bissau, aquando do despertar livre!
Não resisto.

O amanhecer foi tão inesperado
que lisboa vibrou em todos os lugares
antecipando o regozijo.
Nunca se tinha visto uma festa assim,
com carros de combate, chaimites,
com os militares e o povo em euforia
a encher cada rua, cada jardim, cada árvore.
E a cidade era de toda a gente.
Havia palmas, vivas à liberdade a tatuar as bocas,
lágrimas a ancorar o olhar em voos infinitos.
"Foi bonita a festa , pá."

GRAÇA PIRES
"Era Madrugada em Lisboa"
Louvor a um dia com tantos dias dentro
Poesia
2024 - Poética Grupo Editorial

José Luís Outono, poeta
E-mail, 09 04 2024


                        

Graça Pires em novo livro
ERA MADRUGADA EM LISBOA

Com o subtítulo de «louvor a um dia com tantos dias dentro» este recente livro de Graça Pires (n.1946) tem 35 páginas, um desenho de Rosário Alves e é editado pela Poética Edições. Abre com uma citação de Sophia de Mello Breyner Andresen («Esta é  a madrugada que eu esperava») e é dedicado aos capitães de Abril e envolve todas as pessoas que amam a liberdade.
Pode ler-se na p. 11: «Sem prazo, sem aviso sem detença/ aconteceu em Abril/ o mais esperado tempo/ e com ele o cheiro/ da terra que nos pertence». Conclui na página 35: «Agora pertencem ao silêncio/ mais nítido as canções, os gritos/ as lágrimas, os detalhes de uma festa/ acontecida num dia com tantos dias dentro/ numa cidade habitada pelo país inteiro».
Depois de «Espaço livre com barcos», «Uma claridade que cega», «Fui quase todas as mulheres de Modigliani», «A solidão é como o vento», «Antígona passou por aqui» e «O improviso de viver», um novo livro de Graça Pires a celebrar o tempo de Abril.

José do Carmo Francisco, escritor
Correio do Ribatejo, 21 de junho de 2024




quarta-feira, 22 de março de 2023

O IMPROVISO DE VIVER



 O improviso de viver. Lisboa: Poética, 2023


O improviso de viver é um a obra transversal à vida, tão abrangente quanto inteira na sua profunda incursão pela poesia e por todas as coisas que a convocam.  É uma deriva de ideias onde se misturam as memórias com o pensamento desafiante de uma escrita que pretende a simplicidade.

Cada poema segue o seu próprio rumo tanto naquilo que recorda, revisitando lugares e emoções, como nas palavras que dedica, trazendo para o presente anseios pressentidos ou imaginados, como ainda na tentativa de não ser uma voz passiva sobre o que acontece no mundo, sobre o que nos aflige e o que nos emociona.

 

Virgínia do Carmo

Sinopse do livro, Janeiro 2023




O improviso de viver, de Graça Pires

Da poesia mais limpa

Estar aqui, ao lado de uma poeta que admiro desde o primeiro verso – desde o primeiro verso seu que eu li, entenda-se – é de um encantamento incrível, e, ao mesmo tempo, de uma responsabilidade aterradora. Tenho um medo enorme de não interpretar bem as suas palavras, e esta é uma angústia que nunca me abandonará. Mas tranquiliza-me um pouco o próprio teor dúbio do conceito de “interpretação”: “sentido em que se toma o que se ouve ou o que se lê, e que se julga ser o verdadeiro; comentário; versão. Interpretar pode ser, até, entendido como traduzir. Então, peço-vos que entendam o que vou dizer como a tradução do que a Graça escreveu na sua depurada linguagem poética para a linguagem talvez mais pobre, mas honesta, do meu próprio sentir.

Poderá ser diferente este eco das suas palavras em mim e nos outros, em vós, que também lereis este livro maravilhoso, mas a poesia tem este dom de se moldar à nossa alma, de se “afazer” (uma palavra que nós usamos muito em Trás-os-Montes e que eu gosto tanto), à forma do nosso coração. E como o meu coração gosta da forma dos seus versos e de como se afazem ao meu peito.

Este livro que hoje nos junta para minha alegria (tão bom abraçar a Graça depois de tanto tempo!) é mais um dos que se me acomodou no íntimo.

Começa assim:

Um súbito enredo trespassa o olhar

em descritivas formas.

A nitidez do silêncio persegue os lábios.

Decifra as palavras inefáveis.

Ardor em sangramento na língua.

Mistura de linfa e de terra no branco baço

dos crisântemos.

A tracejar de nostalgia a memória desfocada

dos lugares no litoral da infância.

E assim partimos para a aventura de folhear ou devo dizer, “habitar” este livro pelo tempo que nos demorarmos na sua leitura. É autora que nos convida naquele que, a bem de verdade, é o verdadeiro início:

Vem

levar-te-ei para habitares comigo

o improviso de viver

(p.7)

É claro que este “convite” é maior do que o próprio livro, extravasa o seu conteúdo. Não sabemos se é um convite para a leitura, se para a vida. Talvez para ambos.

Mas assim é toda a poesia deste livro: uma incursão pela vida, pela sua intensidade, pelos seus meandros e enredos, pelas memórias, pelas coisas do mundo, também, pelo que dói, às vezes, no mundo.

Visitamos a infância, não a da Graça, mas a minha, a vossa, recordamos não o que foi, mas o que para sempre é em nós, sentimos a sede, saboreamos o pão, por momentos temos asas, e é verão tantas vezes nestes versos.

Diz a poeta:

No rigoroso itinerário da lembrança

a sombra de um lobo espera

instintivamente em teu olhar

que a montanha se erga intacta e branca.

A mesma que trouxeste da infância

e perpetua dentro de ti a neve imaculada.

Contudo foi com um sorriso

deslumbrado e breve

que começaste a amar

a imperfeição da luz perto do mar

enquanto o verão

entornava julho no teu nome.

(A imperfeição da luz, p.30)

E reparem como é sublime, esta poesia, que nos transporta para um plano tão etéreo que as coisas se tornam pequenas e a alma imensa. Talvez como numa experiência de levitação em que, leves, sobrevoamos o nosso ser, as nossas dores, as nossas mágoas, a nossas alegrias e tudo o que sentimos elevado a um estado de pureza tal que se transforma em claridade. E emocionados nesta transparência, vemos melhor.

Sendo pessoal tantas vezes (estou certa de que muitas vezes será), a sua poesia não cabe em si, na pessoa que é, ela torna-se nossa, de cada um de nós, de tão elevada a uma dimensão que transcende a voz para se tornar eco audível apenas por dentro.

E acontece também que às vezes os seus poemas, não sendo pessoais, porque sobre o mundo, sobre os seus gritos e as suas feridas abertas, se tornam também nossos, elevados da mesma forma a esse estado de pureza poética. E damos por nós a tornar nossas as suas perguntas:

Qual o som do mar me questiono

qual o som do mar tão saturado de mortos?

Que sinos soarão por eles?

Quem fará a oração o sinal da cruz o requiem?

(excerto do poema “Múltiplas mortes”, p. 57)

E há outras perguntas:

Olhem para nós. Ouçam-nos.

Não somos vultos sem identidade.

Somos mulheres.

Somos mães filhas irmãs amigas.

Temos um nome.

Indefesas frente ao terror

é silencioso o lamento o arrepio.

Qualquer gesto nos pode destruir.

Ficámos sem chão.

Avistamos a montanha

mas um deserto invisível

acorrenta-nos os pés.

O céu é um abismo.

Onde estão as estrelas

os anjos o nosso deus?

Não. Não choramos.

Temos o olhar parado nos livros proibidos

na inutilidade dos dias que hão-de vir

nas palavras reprimidas

na mais indecifrável prece

tão perto da descrença.

Quem poderá salvar-nos?

(Lamento das mulheres afegãs, p 63)

Este cuidado em cumprir uma espécie de missão poética que também consiste em dar voz aos que sofrem as atrocidades de um mundo assimétrico, marca também esta obra, que, como dizemos na sinopse que fizemos juntas, é uma obra “transversal à vida, tão abrangente quanto inteira na sua profunda incursão pela poesia e por todas as coisas que a convocam. É uma deriva de ideias onde se misturam as memórias com o pensamento desafiante de uma escrita que pretende a simplicidade.”

Desde sempre me recordo de ouvir a Graça falar de simplicidade. Essa simplicidade tão difícil porque exige tamanho trabalho de depuração, de talha da palavra, o burilar do verso até à exaustão para que nada sobre para além dessa vibração de luz a desbravar o silêncio, às vezes escuro.

Um trabalho que solidifica cada verso para nos emocionar de forma inigualável.

E sublinhar, ainda, o quão abrangente é esta obra onde até os outros cabem, os seus amigos, as pessoas dos seus afectos, e onde tenho a felicidade de me encontrar, também. Que privilégio indizível. A minha eterna gratidão, querida, Graça.

Termino como termina o livro, com o texto que remata este desfilar de poemas limpos, poemas sem ruídos e sem impurezas, como se tivessem sido coados pelo linho mais fino:

Pressentir a morte na desmesura de uma afronta

na opressão interminável de cada rua queimada

de cada disparo de cada cerco de cada agressão.

A revolta presa na arma do terror.

A coragem engatilhada nas mãos.

O susto das sirenes no rosto dos filhos

e na correria angustiada das mães.

O clamor sufocado nas lágrimas

e no sangue a quem dói violentamente

o exílio do chão onde nasceram.

A exaustão a golpear o corpo.

A força do silêncio a ensurdecer o grito.

Sem tréguas sem resgate sem sujeição

hão-de abraçar-se fortemente entre as ruínas.

(Entre ruínas, p. 64)

Virgínia do Carmo, escritora

 Na apresentação do livro, Lisboa, 18 de março de 2023






«O improviso de viver»
Graça Pires

Desde o primeiro momento, em que tive a honra de dizer um poema deste recente livro de uma poetisa que muito estimo e admiro, que a ansiedade de o ler totalmente aumentou num teor bem apelativo.

“Que nunca a vida me pareça um lugar indiferente”
José Tolentino Mendonça

Temático e amoroso Graça Pires traça em cada poema “Sentires” provocadores de reflexões pertinentes, no decorrer de cada página. E, se no título a simbologia do “improviso de viver” agarra o leitor, no imediato caminhamos por entre calendários onde acordamos e esculpimos
certezas em simultâneo com interrogações, e a poesia segreda:

- “Detenho no alcance das mãos
a precisão abstracta de cada recomeço.”

Nesta caminhada muito criativa, vemos uma autora ansiosa de traçar paralelos do seu acto de criar, além de eterna sonhadora no sorriso de cada abertura dita, e escultora de certezas puras e tão naturais:

- “E canto baixinho, com o som amarrado
na garganta onde as palavras
quase morrem sob a língua.”

Num olhar atento, cada leitura marca-nos vontades e sonhos … incluindo desafios de pensamentos paralelos onde dimensionamos belezas, e curiosamente improvisamos o calendário de viver sem colapsos temporais.
Permitam-me … num improviso de viver os mundos da escrita, num dizer presente opinando em temáticas futuras, a presente e excelente boa continuidade de Graça Pires, merece o meu aplauso e desejo de viver e continuar a ler-te estimada amiga, que muito admiro.

José Luís Outono, poeta

Comentário no blogue "Ortografia do olhar" 22 Mar 2023




Recebi no final da tarde de ontem seu livro, e fiz a leitura de imediato, não conseguindo desviar os olhos do livro até a última página.

Continua sendo a minha escritora favorita, e essa obra contém os elementos da sua poesia que sempre me fascinaram, mas com um acréscimo que se faz notar a cada página, além da sonoridade e de um senso de ritmo peculiares: é um livro pontuado por uma elegância notável. O passar dos anos tem dado a você uma inspiração fecunda e crescente.

Há inúmeros versos que surpreendem e encantam, como "hoje serei a corrente e a foz", "folhas secas coladas no desvão do telhado por um vento impaciente", "instantes que perturbam a incerta imensidade do tempo", "escolhemos o silêncio para nomear as flores", "perturbação de estrelas no meu olhar", "O choro e o riso na mesma moldura", "sei que cada nome pode ser uma emboscada", dentre tantos outros.

Difícil, praticamente impossível dizer qual poema mais me agradou: "Todos falavam disso", "Música" - cujo desfecho é magnífico, "Deixem-me só", "Palco", "Oferenda", "Dos desejos", "Noite", "A imperfeição da luz", "Rumo ao sul"...É melhor parar por aqui ou copiar o índice do livro. [...]

José d'Ângelo
e-mail 5 Abril 2023





Graça Pires
O improviso de viver


Depois de entre 2014 e 2021 ter publicado «Espaço livre com barcos», «Uma claridade que cega», «Fui quase todas as mulheres de Modigliani», «A solidão é como o vento» e «Antígona passou por aqui», Graça Pires (n.1946) surge com «O improviso de viver» (Poética Edições). Este livro de 64 páginas parte do «eu» («Qualquer barco me devolverá a infância») para alcançar o «nós»: («Não. não choramos./ Temos o olhar parado nos livros proibidos/ na inutilidade dos dias que hão-de vir/ nas palavras reprimidas/ na mais indecifrável prece/ tão perto da descrença./ Quem poderá salvar-nos?». Ou dito de outra maneira: parte de («Era a quinta dos avós./ Nós éramos crianças/ e subíamos às figueiras.») para chegar a «Mas que amor é este tão disponível/ tão inquieto tão discreto tão possessivo/ que resiste aos sobressaltos do sangue./ Um amor para sempre. Até ao fim da vida./ Para lá da vida. Que amor é este.». A organização do volume regista três poemas impressos a negrito (ou bold) de modo a ritmarem o conjunto em três sequências (páginas 8, 28 e 47) como se, num certo sentido, fossem «capítulos» desta narrativa em forma de poema. Passados 33 anos do livro de estreia que recebeu o prémio Revelação da A.P.E. este «O improviso de viver» vem confirmar a altura e e o timbre de uma voz poética em processo de plena consolidação.

José do Carmo Francisco, poeta e jornalista
Correio do Ribatejo, 5 de Maio de 2023




Querida Graça

[...] Estou quase a terminar o seu livro. Tenho-o lido vagarosamente, por vezes leio o mesmo poema três vezes seguidas. É uma belíssima obra poética, de profundo labor na linguagem e com imagens fortíssimas que pedem tempo para as contemplarmos. Fazendo uma retrospectiva, a voz poética das suas obras tem passado por uma metamorfose iniciática, de regresso à terra, ao coração bravio da floresta e à força indomável dos rios, uma voz cada vez mais sibilina, que sabe, vê e escuta, e que está além do tempo cronológico. É uma voz sem senhor, livre e selvagem. Lê-la é um maravilhamento a cada página. Obrigado por isso!

Samuel Pimenta, escritor
E-mail 18 maio 2023



A beleza efêmera da existência

 

O improviso de viver, Graça Pires: Poética Edições, 2023.

 

Os poemas desse livro transmitem uma variedade de sensações, como celebração, prazer, nostalgia, busca, avassalamento, paixão, intimidade e perplexidade. Eles despertam para a efemeridade da existência e a conexão com elementos naturais, como a luz, a terra e as palavras.

Neste primeiro poema, e acho que é um dos mais importantes, há o despertar de um novo dia, sem medo da transitoriedade da vida, abraçando a singularidade do momento presente. Sugere uma disposição para abraçar as novas oportunidades que a vida oferece. Essa sensação é comparada à “força de águas imensas na confluência de rios”, uma energia poderosa e dinâmica.

O poema encerra com a ideia de que qualquer barco que a encontre ao longo do dia irá devolvê-la à infância. Isso pode ser interpretado como uma metáfora da inocência, a alegria e a liberdade que se experimenta ao abraçar plenamente o presente, sem preocupações com o passado ou o futuro.

Encontramos muito sobre infância, rio e água na poesia da poeta Graça Pires. O poeta e professor Alexandre Bonafim Felizardo, da UFG, escreveu uma dissertação sobre a obra dela: “A metáfora da água na poesia de Graça Pires: memória, infância e solidão”.

 

Sensações de um dia claro

Amanheceu.
A janela do quarto inclina-se
sobre o milagre da paisagem.
Acordei festiva
sem recear
a singularidade
efémera da existência.

Detenho no alcance das mãos
a precisão abstrata de cada recomeço.

Semelhante à força de águas imensas
na confluência de rios
hoje serei a corrente e a foz.
Qualquer barco me devolverá a infância.

 

O segundo poema retrata um reencontro com a natureza através da última laranjeira plantada no caminho do vento, evocando a sensação de prazer e a brevidade da adolescência.


Reencontro

Pertence-te a última laranjeira
plantada no caminho do vento
no lado mais próximo do rio.

O aroma espalhado é um sopro
intenso no ar que respiras.

Passeias com prazer.
Cada passo é um convite
a urgentes demandas.

Em qualquer percurso existem
paragens ao acaso onde te reencontras
tão breve que foi a adolescência.

 

No terceiro poema, busca encontrar a nascente que suavize a sede da sua voz arável, no entanto, a busca é inútil. Toda busca é sempre no âmago da infância.

 

Inutilmente

Ignoro se alguma nascente
mitigou a sede em minha voz arável
no barro quente da infância
onde todas as falas eram possíveis.

Há um espaço vazio
nos pormenores desse passado
rasgado na clareira da memória
onde uma luz impiedosa
emerge de si mesma sem aviso.

Agora por mero acaso o procuro.
Inutilmente.


O quarto poema revela a conexão intensa com a terra, em que o cheiro e a presença do barro trazem uma sensação avassaladora.

 

O cheiro da terra

Na orla da luz uma linha contínua
de sombras em labirinto
prende meus pés ao barro do tempo.

O cheiro da terra alastra pela casa.
Mistura o pão com o sangue.
Deixa um rastro na parede e nos lençóis.
Avassala-me.

Como se eu pudesse nascer
incessantemente
no clarão dúctil da morte.

O quinto poema explora a imperfeição da luz e a paixão despertada por ela. A luz trazida da infância, claro.

 

A imperfeição da luz

No rigoroso itinerário da lembrança
a sombra de um lobo espera
instintivamente em teu olhar
que a montanha se erga intacta e branca.
A mesma que trouxeste da infância
e perpetua dentro de ti a neve imaculada.

Contudo foi um sorriso
deslumbrado e leve
que começaste a amar
a imperfeição da luz perto do mar
enquanto o verão
entornava julho no teu nome.

 

O sexto poema retrata a natureza poderosa e envolvente das palavras, capazes de despertar o espanto, revelando a força impactante da linguagem poética. As palavras têm um poder cativante, pois são capazes de envolver e marcar profundamente aqueles que as encontram.

 

Tão íntimas as palavras

Tremendamente obsessivas as palavras.
Permanecem íntimas em sua voz
porque ela lhes ampara a luz.
Porque acende nas sombras
os sinais da melancolia
dos poetas que celebra com amor
em repetido espanto.

Nenhum enigma altera em seu olhar
os poemas que a convocam
para que lhes fulgure
o rosto e o nome o silêncio e o grito.

Tão íntimas.
Tão tremendamente obsessivas.
As palavras.

Por fim, o último poema menciona o “infinito perene do instante”, indicando que mesmo um único momento pode conter uma imensidão de experiências. No entanto, esse instante se dissolve “no colapso do tempo”, gerando uma sensação de perplexidade, pois a transitoriedade é parte da existência.

 

Perplexidade

Nenhuma simbologia pode explicar
o halo da chama antes da cinza.

A luz queimada na estranheza
de tudo o que perece.

O infinito perene do instante
que se dissolve no colapso do tempo
e no mais evidente alvoroço da vida.

  

Texto de Solange Firmino - Rio de Janeiro (RJ). É Professora de Português e Literatura. Venceu dois grandes prêmios de literatura, sendo o último em 2021, com o 2º lugar no Prêmio da Biblioteca Pública do Paraná, na categoria Literatura Infantil. Possui 7 livros de poesia publicados.